DOM QUIXOTE ENSINA O OPERADOR DE DIREITO ACERCA DA LIBERDADE


Heron José Castro Veiga

Franc-Comtois/Pixabay

O Quixote de Cervantes segue importante nos dias atuais. Um dos maiores romances da história ocidental trabalha o tema liberdade de uma maneira única, sendo mais uma amostra de como a literatura é importante para a compreensão dos textos normativos.

A liberdade é um direito fundamental de primeira geração que até hoje encontra previsão expressa em muitas Constituições ocidentais. Vejamos alguns exemplos:

– Constituição brasileira: Artigo 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes.

– Constituição portuguesa: Artigo 27, 1. Todos têm direito à liberdade e à segurança.

– Constituição espanhola: Art. 1, 1. España se constituye en un Estado social y democrático de Derecho, que propugna como valores superiores de su ordenamiento jurídico la libertad, la justicia, la igualdad y el pluralismo político.

– Constituição uruguaia: Artículo 7º. Los habitantes de la República tienen derecho a ser protegidos en el goce de su vida, honor, libertad, seguridad, trabajo y propiedad. Nadie puede ser privado de estos derechos sino conforme a las leyes que se establecen por razones de interés general.

Tal não podia ser diferente, pois o ideal de liberdade permeou boa parte do Ocidente na luta contra o arbítrio, seja no caso da luta sul-americana de países como Brasil e Uruguai contra regimes militares ou no enfrentamento de portugueses e espanhóis ante as opressões de Salazar e Franco.



Spacca


Importância da autodeterminação

No atinente ao direito à liberdade, o Quixote nos mostra como a sua busca é tão importante para conseguirmos ter uma existência digna e nos realizar.

No livro 1 a personagem Marcela nos apresenta uma faceta da libertação de uma mulher contra uma ideia torpe de que ela deveria dar o seu amor a Grisóstomo, que a amava e pelo amor não correspondido veio a tirar a própria vida.

A fala de Marcela no capítulo XIV do Livro I, ao se defender contra as acusações de ser a culpada pela morte do jovem pastor, é fonte de forte reflexão:

“Eu, como sabeis, tenho riquezas próprias e não cobiço as alheias; tenho livre condição e não gosto de sujeitar-me; não amo nem detesto ninguém; não engano este nem solicito aquele; não desfruto de um nem entretenho outro” [1].

Marcela ensina a importância da autodeterminação e de que não temos a obrigação de amarmos ninguém ou de exigir amor de terceiros.

Da mesma maneira a liberdade ainda é vista no capítulo LVIII do Livro II, quando Dom Quixote e Sancho saem de um castelo onde passaram boa parte da história com muito conforto, apesar das peripécias que os anfitriões pregavam. Palavras do próprio protagonista:

“A liberdade, Sancho, é um dos mais preciosos dons que os céus deram aos homens; com ela não se podem igualar os tesouros que encerra a terra nem o mar encobre; pela liberdade, assim como pela honra, se pode e deve aventurar a vida, e, pelo contrário, o cativeiro é o maior mal que pode vir aos homens” [2].

Não se nega que a ideia atual de liberdade não é a mesma da época de Cervantes, muito menos que tal direito não é e nem deve ser absoluto. Há vários momentos em que nosso ordenamento restringe a liberdade de contratar, a liberdade de expressão e a liberdade de dispor do próprio corpo, não podendo nenhum direito fundamental ser exercido colocando em risco outros direitos constitucionais e as próprias instituições.

Não obstante, o que permanece no século 21, fazendo da obra de Cervantes quase uma espécie de manual de vida, é que a liberdade segue encontrando um lugar especial no ordenamento jurídico e há um mandamento constitucional para que o operador do Direito a garanta e permita o seu exercício adequado.

[1] SAAVEDRA, Miguel de Cervantes. O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Manch, Primeiro Livro. 7 ed. São Paulo: Editora 34, 2016, página 193.

[2] SAAVEDRA, Miguel de Cervantes. O Engenhoso Cavalheiro Dom Quixote de La Manch, Primeiro Livro. 7 ed. São Paulo: Editora 34, 2017, página 665.

é bacharel em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (UniCeub), juiz de Direito no estado de Goiás, atualmente titular do Juizado Especial Civil e Criminal de Formosa (GO).

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