CRISTOVÃO TEZZA ENFRENTA

Em entrevista, escritor fala sobre sobre seu novo livro, “Visita ao pai”, e sobre histórias de família que são herdadas e raramente investigadas

Irinêo Baptista Netto


O escritor Cristovão Tezza, que lança “Visita ao pai” na próxima terça (21), às 19h, na Livraria da Vila. 

Quando tinha 20 anos e estava no quartel, João Batista Tezza começou a transcrever em um caderno escolar as cartas que enviava e as que recebia. Ele não parecia ter nenhuma ambição literária, o impulso era mais de um arquivista que de um escritor. Um impulso que durou quase três décadas e 26 cadernos, até João Batista morrer em um acidente de lambreta em 1959.

Esses cadernos estão na origem de “Visita ao pai”, livro que Cristovão Tezza lança na terça-feira (21), às 19 horas, na Livraria da Vila, dentro do Shopping Pátio Batel.

No livro, Cristovão, o filho de João Batista, encara os cadernos do pai como uma espécie de detetive do próprio passado. A partir das anotações, ele entra em contato com esse homem que se tornou adulto no Brasil de Getúlio Vargas e vai criando a figura do pai de que se lembra pouco, quase nada. Ele tinha 6 anos quando perdeu o pai.

Em “O filho eterno” (2007), Tezza se apropriou da autobiografia e do romance, criando um “híbrido literário” para contar a história de um homem pai de um menino com Síndrome de Down. “A própria escrita foi me levando nessa direção”, explica.

Agora, com “Visita ao pai”, definir o gênero do livro ficou um pouco mais complicado. Em entrevista ao Plural, Tezza prefere eliminar hipóteses: o livro não é uma biografia do pai, não é um estudo sobre uma fase da história do Brasil e não é um romance tradicional..

Na entrevista a seguir, o escritor fala sobre como foi lidar com histórias de família que são herdadas, mas raramente investigadas; analisa os caminhos contemporâneos da literatura e da ficção; e define o livro novo como “uma viagem literária”.

Os 26 cadernos do seu pai estavam na família desde sempre. Ao longo dos anos, quatro se perderam. E você começou a ler os 22 que restaram durante a pandemia, quando você já tinha mais de 60 anos. Por que você demorou tanto para ler esses cadernos? E qual foi o impulso que te levou a fazer isso depois de todo esse tempo?

Os cadernos do meu pai eram uma espécie de baú fechado no sótão da família: estavam lá, desde sempre, como parte de uma certa mitologia familiar, uma relíquia afetiva. Nas poucas vezes em que eu os folheava, aqui e ali, não encontrava nada de fato especialmente interessante – eram pura transcrição de cartas e documentos, e não um diário, um espaço de reflexão ou mesmo algum voo literário. Durante décadas, não me detive neles mais do que alguns minutos, ao acaso, garimpando curiosidades, para fechá-los em seguida e cuidar da minha vida.

Mas por alguma razão que desconheço, talvez uma certa maturidade contemplativa que o tempo nos dá, de repente comecei a me interessar pelas cartas. Terminando meu último romance, “Beatriz e o poeta”, em plena pandemia, senti desejo de enfrentar a história do meu pai, com quem de fato convivi muito pouco: ele morreu quando eu tinha seis anos.

Em que momento você teve certeza de que poderia escrever um livro a partir desses cadernos?

Bem, o impulso de mergulhar nos cadernos já era em si um projeto literário, ainda que difuso. Eu não sabia bem o que queria — teria de descobrir lendo a correspondência; ela me daria alguma chave. Há uma família grande de escritores que nunca sabem previamente por que fazem o que fazem; o ato de escrever é que vai dar a resposta. Eu sou deste ramo. De certa forma, igual a meu pai: por que alguém resolve aos 20 anos transcrever em cadernos todas — e são rigorosamente todas — as cartas que escreve ao longo da vida inteira?

Nas primeiras páginas do livro, você define os cadernos como sendo “anotações de um tabelião de si mesmo mantendo uma compulsão infantil de arquivista”. Você acha que seu pai, de alguma forma, estava pensando na posteridade desses cadernos? Você tem alguma teoria sobre os motivos que levaram seu pai a transcrever em cadernos todas as cartas que ele escreveu ao longo da vida inteira?

O que começou como um caderno escolar (no primeiro volume, as cartas se misturam com exercícios e cópias das aulas do quartel) certamente se transformou num projeto: ele "descobriu" a escrita.

Em dois ou três momentos, anos depois, há referências ao "romance da minha vida", mas sempre (defensivamente) como uma brincadeira. Eu acho que essa ideia nunca o abandonou completamente.

Também penso que a transcrição obsessiva era um modo de ele "controlar a vida".

Mas não sei exatamente. O impressionante é que ele jamais deixou de anotar, em nenhum período. No máximo duas ou três semanas sem correspondência anotada, quase sempre porque os amigos (ou a minha mãe) estavam na mesma cidade.

E o interessante é que ele só transcreve “documentos” – não há reflexões soltas ou avulsas em nenhum momento.

Então é isso, Irinêo. Não sei a resposta!

Você descreve “Visita ao pai” como um livro de não ficção, mas com uma “percepção literária do mundo”. Você também se referiu ao livro como um “romance da memória” e uma autobiografia do seu pai. Para complicar um pouco mais, nos dados de catalogação, o livro é definido como “ficção brasileira”. Sei que falar de rótulos às vezes pode ser chato, mas essa questão do que é o livro – ou do que o livro se tornou – me parece fascinante. Você pensou nessa questão enquanto escrevia ou essas definições são também um modo de entender a obra agora que ela está pronta?

É uma pergunta que eu mesmo me faço. E é também uma questão dos caminhos contemporâneos da literatura e da ficção, quando o próprio conceito de realidade se esfarela na “pós-verdade”. Eu já escrevi um pouco de tudo, da poesia de adolescente à solidez do romance, passando por crônicas, ensaios, contos, resenhas e memórias. Há um momento inicial em que todo escritor trabalha sobre gêneros perfeitamente estabelecidos, sob um impulso de imitação de formas, e esse é um período também de dominar técnicas literárias e descobrir a própria voz nessa selva sem fim. De um momento em diante, a questão deixa de ser relevante: a escrita literária se sobrepõe como uma leitura aberta do mundo, uma leitura original, que usa todas as outras linguagens (filosofia, história, ciência, sociologia, psicologia, religião, jornalismo…) sem se identificar exatamente com nenhuma delas. Essa é a alma original do romance, da sua linguagem, que sempre se recria através dos tempos. Ao contrário da Inteligência Artificial, capaz de manobrar todos os dados do mundo e gerar em segundos uma forma neutra final, a escrita da literatura afirma o olhar intransferível do indivíduo e da condição humana. É exatamente, e só isso, que justifica a literatura: uma voz única que se afirma. É com ela que o leitor conversa.

Eu chamo isso de percepção literária do mundo. Tenho pensado sobre isso e é um tema que ainda quero desenvolver. Os temas que eu enfrento definem a sua linguagem e a sua forma. Quando escrevi “O filho eterno”, por exemplo, eu me apropriei da autobiografia e do romance, criando um híbrido literário, porque eu senti que o tema pedia isso. A própria escrita foi me levando nessa direção. A forma fechada do romance, ou a forma fechada da autobiografia seriam insuficientes para dar conta do que eu tentava dizer.

O caso de “Visita ao pai” é mais complicado, porque havia muitas outras variáveis possíveis. Eu posso definir o livro pelo que ele não é: não é uma biografia, porque sua única fonte são as cartas e a memória familiar; não é um estudo acadêmico sociológico ou político de uma fase da história do Brasil, recortada na microhistória do meu pai; não é um romance tradicional, porque todas as figuras do livro são reais e têm certidão de nascimento registrada em cartório. Tem um pouco de tudo isso, mas apenas como cenário. Sobre esse pano de fundo concreto da vida do meu pai eu fui contrapondo a minha própria formação, como espelho e reflexo. É a profunda subjetividade do livro, a construção reflexiva de um pai desconhecido, que define “Visita ao pai”.

Na verdade, a questão do “gênero” não me incomoda mais. Eu brinco dizendo que escrevi a “Autobiografia do meu pai”. “Visita ao pai” é uma viagem literária do começo ao fim, e fico feliz quando o leitor sintoniza com esse espírito.

No livro, você olha para o passado com olhos de século 21, por assim dizer. O efeito disso é que “Visita ao pai” fala de histórias ocorridas há mais de meio século, mas revela coisas também sobre o presente, sobre o estado de coisas no país. Você acha que essa é uma maneira válida de encarar o livro?

Certamente. Ninguém escapa do próprio tempo. A leitura das cartas do meu pai, de 1931 a 1959, acabou por criar uma imagem redundante do Brasil, de uma espécie de eterno retorno. Ele se criou sob a ditadura Vargas; eu sob a ditadura militar. A grande transformação do período, o que por tabela as cartas vão deixando claro, é a passagem turbulenta, frequentemente brutal, de um país rural para um país urbano, levando consigo a mesma cabeça e a mesma cultura de origem. É um país bicéfalo: exportamos soja produzida com a mais sofisticada tecnologia do mundo, e importamos iPhones, que usamos como tacapes pré-históricos.


De certa forma, “Visita ao pai” é também sobre o que fazer com histórias de família que são herdadas e raramente investigadas. Qual foi o impacto que essa investigação teve sobre você? E sobre a sua família?

Meu livro foi avançando por instinto, enquanto eu lia as cartas — não fugi de fato de nenhum dos temas que transparecem na correspondência, das intrigas de família à imagem do país. Questões raciais, econômicas, morais, cada fio que emergia das cartas eu ia puxando para fora e mergulhando neles. Um dos impactos que senti foi a distância entre uma certa mitologia familiar — toda família cria seu imaginário — e o que de fato se revelava nas cartas, a “família profunda”, por assim dizer. O próprio livro avança refletindo com o leitor sobre seus dilemas. Em vários momentos senti que estava mexendo com vespeiros. Mas fui favorecido por dois fatores: o primeiro é o próprio tempo. Tudo aconteceu há praticamente um século; é um livro que só poderia ser escrito a frio, com a defesa da distância. O segundo é o fato de que não tive convivência afetiva com o meu pai que me deixasse alguma importante memória emocional, o que me deu liberdade. Eu me vi diante de um personagem, não do meu pai. Isso é tudo que um escritor precisa.
Livro

“Visita ao pai”, de Cristovão Tezza. Companhia das Letras, 448 páginas, R$ 89,90.

O lançamento do livro será na Livraria da Vila, dentro do Shopping Pátio Batel (Avenida do Batel, 1.868), na terça-feira (21), às 19h. O bate-papo com o autor será mediado pelo jornalista Christian Schwartz, seguido de sessão de autógrafos.

A entrada é gratuita

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