"ATÉ QUE TUDO DEU CERTO": ANTHONY HOPKINS DESAFIOI O PAI, FICOU SÓBRIO E ENCONTROU DEUS



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Publicado por Portal E.M. Cioran 

“Sinceramente, você é um caso perdido. Nunca vai chegar a lugar nenhum, nunca vai ser nada na vida do jeito que está indo […] Qual é o seu problema? Você deveria fazer um exame de cabeça. Você não consegue fazer nada de útil?”

“Sinceramente, você é um caso perdido. Nunca vai chegar a lugar nenhum, nunca vai ser nada na vida do jeito que está indo […] Qual é o seu problema? Você deveria fazer um exame de cabeça. Você não consegue fazer nada de útil?”

Essas palavras de seu pai, narradas na autobiografia Até que Deu Tudo Certo, impactaram profundamente o ator Anthony Hopkins, quando ainda era jovem — à época, um estudante visto, no caro internato em que estava matriculado, como um “caso perdido” por causa de seu comportamento e notas.

Mas Hopkins não se deu por derrotado. Diante do julgamento desanimador de seu pai, testemunhado pela mãe, ele teria respondido, com uma voz “suave e ponderada”: Um dia vocês vão ver. Vou mostrar para vocês dois”.

Sua carreira de sucessso como ator de cinema, superando todas as expectativas, é a prova de que os genitores e professores de Hopkins estavam errados. Em sua autobiografia recém-publicada, aos 87 anos, na qual adota os princípios da chamada “jornada do herói”, Sir Anthony Hopkins narra o percurso que o levou de um “caso perdido” a um dos astros do cinema mais respeitados e premiados de nossos tempos.

Na jornada do herói que estrutura o itinerário existencial de Hopkins, temos o jovem solitário e desajustado que, em determinado momento, recebe um “chamado à aventura” —neste caso, o convite para fazer um pequeno papel numa peça de Páscoa na associação de rapazes cristãos do bairro em que vivia. Muitas provações se seguem na jornada, até que ele finalmente encontre uma recompensa por elas.

É no palco, com sua primeira fala em cena —”Bem-aventurados os mansos, pois eles herdarão a terra”— que o menino, apelidado de “Dennis o Burro” e “Cabeça de Elefante”, começa a vislumbrar um futuro menos sombrio.

Um dos fatos mais marcantes em sua memória é quando toma consciência da morte aos quatro anos de idade. Com riqueza de detalhes, Hopkins narra sua trajetória biográfica, incluindo experiências formadoras, nem sempre alegres, nos primeiros cursos de teatro a partir da década de 1950. Nessa fase, enquanto o talento lhe abria portas, sua tendência ao isolamento e seu comportamento irascível logo as fechavam.

A instabilidade emocional, agravada pelo alcoolismo, o impedia de desenvolver técnicas de atuação mais complexas. A grande virada foi em 1961, quando se tornou aluno da Real Academia de Arte Dramática. Em 1967, foi incumbido de substituir Sir Laurence Olivier em A Dança da Morte, de August Strindberg. Em 1968, graças a um convite de Peter O’Toole, estreou no cinema atuando em O Leão no Inverno.



O alcoolismo é um fator central em sua jornada. Hopkins admite ter chegado ao fundo do poço, com alucinações e o corpo à beira do colapso. Foi então que, em dezembro de 1975, após uma experiência traumática, enquanto dirigia em Los Angeles completamente alcoolizado, ele teve uma epifania. “O desejo de beber se foi”, relata Hopkins. A partir de então, ingressou em Alcoólicos Anônimos, conheceu os 12 passos e “encontrou Deus”.

Uma jornalista brasileira, em sua resenha da autobiografia de Hopkins, se mostra insensível ao afirmar que o fim da dependência é descrito por Hopkins “quase como em um passe de mágica”, como se fosse necessária uma explicação mais “científica” (positivista) para a transformação.

Um dos cofundadores de Alcoólicos Anônimos, Bill Wilson, manteve correspondência com o psiquiatra Carl Gustav Jung, cuja influência foi decisiva na gênese psicológica e espiritual do A.A. Quando programa de 12 passos de A.A. fala de um “poder superior” ou “Deus, conforme nós o entendíamos”, não se trata necessariamente do Deus das Escrituras ou de qualquer representação tradicionalmente reconhecida da divindade. Este princípio sine qua non do programa foi concebido para evitar sectarismo religioso e abrir espaço para qualquer concepção de transcendência — seja pessoal, simbólica, filosófica ou espiritual.

A jornalista, pelo visto, não sabe o que é a experiência do alcoolismo e como, para muitos que sofrem desse mal, superá-lo só poderia parecer um verdadeiro milagre, para o qual seria necessária a intervenção de um “poder superior” (higher power em inglês).

A sobriedade foi sua recompensa por tantos anos de autodegradação. Tudo mudou para o melhor assim que ele entrou em recuperação. Nascia então um novo homem e um novo ator, regenerado, o de performances memoráveis como em O Homem Elefante (1980) O Silêncio dos Inocentes (1991) e Nixon (1995).

A mesma jornalista escreve: “Curiosamente, embora o leitmotif da narrativa seja ‘continue em frente, nunca olhe para trás’, seu norte é o passado no qual os fantasmas da ansiedade, da depressão e da solidão rondavam o ator.” Uma vez mais, demonstra total insensibilidade e ignorância sobre questões fundamentais da condição humana. O passado de uma existência como a de Hopkins, dramática e traumática, não pode ser esquecido nem menosprezado, mas permanece vivo, sempre atual, no presente em que a memória ganha corpo e sentido. Se não, é ilusão de autoajuda new age.

“A vida só pode ser compreendida olhando-se para trás, mas só pode ser vivida olhando-se para a frente”, escreveu Kierkegaard. Olhar para trás é fundamental para saber onde estamos, de onde viemos e para onde estamos indo. É o que parece ignorar essa autora de uma resenha da autobiografia de Sir Anthony Hopkins. “Nunca olhar para trás” não significa, como ela parece supor, ficar preso ao passado, mas tê-lo sempre em mente, vivo na memória, para não repeti-lo, para não recair nos antigos erros. Só alguém que passou pela experiência de alcoolismo, como Hopkins, pode entender isso.

Carl Jung e a origem de Alcóolicos Anônimos

Alcoólicos Anônimos foi fundado em 1935, em Akron, Ohio, por Bill Wilson e Dr. Bob Smith. Não por acaso, A.A. surgiu dois anos após a extinção da Lei Seca, que vigorou nos EUA de 1920 a 1933.

Quando o álcool voltou a circular legalmente, ficou evidente o problema do alcoolismo crônico, que a proibição não havia resolvido — apenas empurrado para a clandestinidade. Muitos médicos e grupos religiosos passaram a buscar formas não punitivas e mais humanas de lidar com a dependência.

Um dos primeiros inspiradores de A.A., Rowland Hazard, um alcoólatra estadunidense, havia sido tratado por Jung na década de 1930. Jung o alertou de que, no caso dele, a medicina e a psicoterapia haviam chegado a um limite — que sua única esperança de recuperação seria uma “transformação espiritual profunda”, um tipo de “experiência vital” capaz de mudar radicalmente sua percepção de si e do mundo.

Rowland levou essa ideia de “cura espiritual” de volta aos Estados Unidos, onde se envolveu com o Grupo de Oxford, um movimento cristão leigo que enfatizava confissão, rendição a Deus e ajuda mútua — práticas que depois seriam adaptadas e secularizadas no A.A.

Anos depois, Bill Wilson soube dessa conversa entre Jung e Rowland e escreveu uma carta a Jung (em 1961) para agradecer-lhe por essa visão. Jung respondeu cordialmente, reconhecendo o papel que sua orientação teve no surgimento do movimento e reafirmando sua convicção de que o vício em álcool era, em última instância, uma “busca mal orientada por experiência espiritual” — a tentativa desesperada de alcançar, por meios químicos, o que deveria ser buscado interiormente.

O próprio Bill Wilson explicou, em várias ocasiões, que a ideia de um “Poder Superior” (Higher Power) foi introduzida para permitir que ateus, agnósticos e pessoas de quaisquer tradições religiosas pudessem participar igualmente do processo de recuperação, sem ter que abandonar suas crenças nem aderir a crenças religiosas que lhes fossem estranhas.

Esse “poder superior” pode ser entendido de muitas formas: o Deus de uma tradição religiosa (para os crentes), a comunidade e a fraternidade de A.A. (para quem não adere a crenças religiosas), ou mesmo um princípio interior de consciência, ordem ou verdade (para quem se considera nem crente, nem descrente, mas está aberto a formas alternativas de espiritualidade e conexão com uma força transcendente).

Há uma carta famosa de Bill Wilson em que ele diz que o A.A. “não tem teologia própria” — e que cada membro é livre para compreender o “poder superior” segundo sua própria experiência. A ideia do “poder superior” é servir como fundamento de uma crença no impossível, não na tutela de um Deus antropomórfico, mas numa transcendência idealmente infinita capaz de redimir uma criatura finita cujo poder é igualmente finito.

Por isso, em A.A., a expressão “Deus conforme o entendíamos” funciona mais como um símbolo de rendição do ego e de abertura ao transcendente, e não como uma imposição de crença no Deus cristão.

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