COMO CONCILIAR O BRASIL E OS BRASIS DE DARCY RIBEIRO?

Os povos indígenas foram um dos caminhos utilizados por Darcy para chegar ao Brasil. Ele propõe uma teoria do Brasil pelo viés indígena. E lembra a necessidade de o país encontrar-se a si mesmo na diversidade

Imagem: Acervo Correio Braziliense

Thays Fregolent de Almeida*, Brasil Debate

As “várias peles” de Darcy Ribeiro (1922-1997) refletem as profissões e os diversos desafios que ele colocou para si no decorrer de sua trajetória. A própria noção de transfiguração étnica, criada para interpretar o processo de formação do povo brasileiro, talvez seja reflexo das transfigurações pelas quais o autor passou no decorrer de sua vida, em meio aos encontros e desencontros das conjunturas históricas que ele vivenciou.

Na obra “O Brasil como problema” (1995), Darcy afirma: “os escritos espelham seus autores, refletindo sentimentos, ideias e manias“. Essas palavras ajudaram a iluminar meu processo de escrita sobre “como herdar” Darcy Ribeiro, trabalho final do curso “O Brasil e os brasis de Darcy Ribeiro: como herdar seu pensamento”, dos professores Alexandre de Freitas Barbosa (IESB/USP) e Stélio Marras (IEB/USP).

O que mais me chamou atenção na obra de Darcy foi o mesmo elemento presente no título do curso, fator decisivo para meu ingresso: a noção de “Brasil e brasis”. Isso porque essa questão foi o fio condutor para o início da minha trajetória acadêmica, cujo produto foi minha dissertação de mestrado interessada em compreender uma das diversas etapas do processo de integração dos vários brasis do interior com o Brasil do litoral.

Enraizadas naquilo que me mobiliza intelectualmente e inspiradas na obra de Darcy, as linhas que se seguem não têm a pretensão de solucionar contradições, mas de navegar na bricolagem proposta pelo autor.

“Por que o Brasil não deu certo?”

A indagação colocada pelo autor de “O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil” (1995) parece ser respondida no decorrer da obra por meio da reflexão sobre dois elementos da história brasileira: a violência e a desigualdade. Ambos os elementos são lastreados historicamente pelo autor e desembocam no passado escravocrata e colonial, responsável por fundamentar o abismo social do país marcado por questões raciais. 

O autor apresenta uma sociedade rica do ponto de vista cultural, porém marcada pela desigualdade do ponto de vista social – situação sintetizada na noção na qual o Brasil é apresentado enquanto “um moinho de gastar gente”.

Apesar da positivação da miscigenação, Darcy responde duplamente a Gilberto Freyre ao demarcar a participação do indígena (protocélula tupi) na formação miscigenada do Brasil e ao combater a ideia de “democracia racial”, ao afirmar que um dos produtos da “aculturação étnica” brasileira foi a própria desigualdade. De um lado, a diversidade cultural dos brasis (que deu certo), de outro, a desigualdade social do Brasil (que deu errado). Tudo isso formando uma só coisa.

O processo de compreensão do que é o povo brasileiro, ou de como ele se formou e se constituiu, é um processo por si só uniformizador e homogeneizador. Essa dimensão é ainda mais acentuada pela noção de transfiguração étnica, proposta por Darcy, na qual o indígena se desendianiza, o europeu se deseuropeiza e o negro se desafricaniza. Segundo o autor, é, portanto, por meio da rejeição, do não pertencimento ou do que Darcy chamou de “ninguendade”, que nasce uma nova “identidade étnica”: a brasileira.

Por outro lado, o autor é certeiro ao caracterizar os povos indígenas enquanto irredutíveis em sua identidade étnica. O olhar cuidadoso perante os povos indígenas entra em contradição com a noção de “índio genérico”, apresentada pelo autor por meio de um processo aculturativo. De um lado, o Darcy antropólogo e etnólogo, preocupado com os brasis e os povos indígenas, e, de outro, o Darcy homem de Estado, preocupado com o Brasil e o povo brasileiro.

Essa é uma das contradições mais ricas da última obra do autor que pode ser sintetizada da seguinte maneira: “índio ou brasileiro” X “índio e brasileiro”. O primeiro, marcado por um conflito irredutível que jamais dá lugar para a fusão. O segundo é marcado pela noção de “índio genérico”, ou seja, aculturado. Essa discussão é parte importante da reflexão proposta em torno da formação do povo brasileiro e da sua identidade.

Acredito que esse processo, que Darcy procurou lastrear, ainda encontra-se em “fazimento” e, mais do que isso, em disputa. A identidade deve ser percebida a cada vez e não de uma vez por todas. A identidade é política, contrastiva e situacional. Às vezes índio, às vezes brasileiro, às vezes índio e brasileiro.

Conciliar o Brasil e os brasis é uma tarefa desafiadora, mas creio que não seja impossível. Apesar do olhar para o Brasil, vindo de um homem de Estado, político e militante, interessado em produzir uma “teoria do Brasil”, Darcy não perdeu de vista os brasis. Pelo contrário, os povos indígenas foram um dos caminhos utilizados por Darcy para chegar ao Brasil. Portanto, nosso autor propõe uma teoria do Brasil pelo viés indígena, porque o Brasil é um país indígena.

Essa é uma das formas pelas quais herdei o pensamento de Darcy, isto é, por meio das contradições entre os brasis e o Brasil. Sendo o primeiro o fio condutor do segundo. O autor termina o prefácio de “O povo brasileiro”, obra responsável por consolidar boa parte de suas conclusões e contradições intelectuais, da seguinte maneira: “Este é um livro que quer ser participante, que aspira a influir sobre as pessoas, que aspira a ajudar o Brasil a encontrar-se a si mesmo“.

O chamamento certeiro do autor para a construção de uma nova realidade para o Brasil do futuro carrega consigo uma questão em aberto e que é o ponto de partida para a proposta: a necessidade do Brasil de encontrar-se a si mesmo. O que o Brasil precisa encontrar são os brasis – fonte da diversidade que forja a unidade (e até mesmo a identidade) do Brasil.

Em meio aos últimos dias do ano de 2022, meu maior desejo para o ano que virá é que o Brasil possa olhar e aprender cada vez mais com os brasis.

*Thays Fregolent de Almeida é mestre em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).

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