BRASIL PLANEJOU SER POLO ECONÔMICO, MAS APÓS LULA DEU AS COSTAS PARA A REGIÃO, QUE DEVE ENCOLHER 0,2 ESTE ANO

Jair Bolsonaro disse em 26 de outubro que se preocupa com a situação política na América Latina. E citou dois casos. A Argentina, que um dia depois votaria para presidente dona de forte sentimento contrário ao neoliberal Mauricio Macri, e o Chile, a pátria inaugural do neoliberalismo, há dias em convulsão social. “Estamos colaborando, na medida do possível, com a estabilidade democrática. O Brasil é muito importante para a América do Sul”, afirmou o presidente.

MANIFESTANTES PROTESTAM CONTRA AS POLÍTICAS ECONÔMICAS DO GOVERNO EM SANTIAGO, EM 26 DE OUTUBRO DE 2019. FOTO: CLAUDIO REYES / AFP

Além de Argentina e Chile, o continente vê turbulências político-sociais também no Equador e no Peru. O governo equatoriano teve de recuar de um pacote de medidas neoliberais após protestos populares liderados por indígenas. Já o presidente peruano, Martín Vizcarra, dissolveu o Congresso e convocou eleições legislativas em uma crise que tem a Operação Lava Jato como ingrediente.

Essas turbulências continentais têm alguma coisa em comum, além das particularidades de cada país? O Brasil de algum modo contribuiu para elas? A resposta é “sim”: em maior grau no primeiro caso, em menor, no segundo.

“Apesar das diferentes motivações em cada país, os acontecimentos na América do Sul, como no Equador e no Chile, têm causas comuns”, afirma o cientista político Gaspard Estrada, diretor de estudos sobre América Latina no Instituto de Estudos Políticos de Paris (Scienses Po).

“Há baixo crescimento econômico, desigualdades sociais persistentes e desconfiança da população com as elites políticas e econômicas”, completa o acadêmico.

A América do Sul deve encolher 0,2% este ano e crescer 1,8% em 2020, conforme previsões de outubro do Fundo Monetário Internacional (FMI). Um número bastante influenciado pela ruína na Venezuela, onde a entidade projeta uma retração de 35% este ano e de 10% em 2020. Outros projeções do FMI: Brasil (0,9% em 2019 e 2% em 2020), Argentina (-3,1% e -1,3%), Equador (-0,5% e 0,5%), Paraguai (1% e 4%), Uruguai (0,4% e 2,3%), Chile (2,5% e 3%), Peru (2,6% e 3,6%), Colômbia (3,4% e 3,6%), Bolívia (3,9% e 3,8%).

Para a América Latina, as estimativas são de expansão de 0,2% em 2019 e de 1,8% em 2020, menores do que o próprio fundo havia divulgado em julho (0,6% e 2,3%). Números incapazes de reduzir a pobreza e a concentração de renda históricas na região.

De cada dez latino-americanos, três vivem na pobreza, informa um relatório de janeiro da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal). Eram 184 milhões de pobres, de um total de 600 milhões de habitantes na região. Uma pobreza de perfil bem definido: camponeses, mulheres, crianças, adolescentes e indígenas.

A miséria (pobreza extrema) atingia 62 milhões de latino-americanos. Isso equivale a 10,2% da população continental. É o maior patamar visto desde 2008 e crescente desde 2015, ano em que o neoliberalismo ganhou fôlego nas duas maiores economias sul-americanas.

No Brasil, Dilma Rousseff foi reeleita em outubro de 2014 e no mês seguinte nomeou um neoliberal para ministro da Fazenda de seu abortado segundo mandato, o Chicago Boy Joaquim Levy. Macri elegeu-se na Argentina em novembro de 2015, com uma plataforma neoliberal.

OS EQUATORIANOS NÃO OBEDECEM AO ESTADO DE EXCEÇÃO. FOTO: MARTIN BERNETTI/AFP

Por aqui, essa rota custou uma queda de 3,5% do PIB em 2015 e outra de 3,6% em 2016. Depois, crescimento medíocre de 1% em 2017 e de 1% em 2018, anos de Michel Temer. Em 2019, já com Bolsonaro no poder, não passará de 1%, segundo o FMI.

A obra de Macri é digna do Brasil. Retração da economia argentina de 2,3% em 2016, alta de 2,9% em 2017, queda de 2,5% em 2018 e, segundo o FMI, 2019 será de encolhimento também, de 3,1%.

Diante dessa obra econômica, Macri foi para a reeleição “bolsonarizado”, a atacar corrupção, criminalidade, fantasmas comunistas. “Se há uma área em que o Brasil tem sim impacto na América do Sul hoje, é no discurso. O Bolsonaro ajudou a liberar palavras extremistas, a defesa de valores ultraconservadores”, afirma Gaspar Estrada.

Na eleição chilena de 2017, além do neoliberal Sebastián Piñera, que se elegeu presidente, havia um candidato de extrema-direita a la Bolsonaro, José Antonio Kast, fã do ditador Augusto Pinochet, cuja Constituição que deixou de herança não foi enterrada depois que ele deixou o poder. Kast dizia à época que o governo de então do Chile, da socialista Michelle Bachelet, se curvava a uma ‘ditadura gay”. Teve 8% dos votos.

No Peru, diz Estrada, há políticos interessados em uma aproximação com Bolsonaro. É um país cujo poder divide-se hoje entre a direita tradicional, representada pelo presidente Vizcarra, e pela extrema-direita que domina o Congresso através do grupo do ex-presidente Alberto Fujimori. Vizcarra tenta usar o combate à corrupção para dobrar o fujimorismo, e a Lava Jato ajuda nisso.

Keiko Fujimori, filha do ex-presidente e principal líder da oposição, é acusada de ter recebido dinheiro da Odebrecht. A “Lava Jato peruana” investiga três presidentes e levou um quarto, Alan Garcia, ao suicídio, em abril de 2019. Vizcarra dissolveu o Congresso pois cabe ao parlamento nomear juízes da Suprema Corte, o que dificultaria o avanço das investigações.

No Equador, a Lava Jato também se prestou à exploração política. Lenín Moreno foi eleito em 2017 como nome do grupo político do ex-presidente progressista Rafael Correa. Rompeu com ele e usa o combate à corrupção para perseguir “correístas” e adotar medidas neoliberais sem resistência. Mesmo assim, protestos populares, indígenas à frente, obrigaram-no a recuar de um pacote acertado com o FMI, que entre outras coisas dobrou o preço da gasolina e do diesel.

Na polêmica e recente eleição presidencial na Bolívia, havia um candidato “bolsonarista”, o pastor evangélico Chi Hyun Chung. Entre os bolivianos que moram no Brasil, Chung recebeu 16% dos votos. Foi o segundo colocado, na frente do vice-líder geral da eleição, o direitissta tradicional Carlos Mesa.

CHI-HYUN-SUNG, A VERSÃO BOLSONARO BOLIVIANA

Diante das turbulências na América do Sul, o secretário-geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), o uruguaio Luis Almagro, divulgou um comunicado em 16 de outubro a botar a culpa nas “ditaduras bolivariana [venezuelana] e cubana”, que fomentariam as insurgências.

A OEA está à vontade para expressar esse tipo de opinião graças à derrocada da União de Nações Sul Americanas (Unasul). Criada em 2008 por iniciativa de governos progressistas como Lula, Hugo Chavez, Rafael Correa e Nestor Kirchner (Argentina), a Unasul nasceu como uma tentativa de contraponto à OEA, vista como alinhada automática dos Estados Unidos, onde está sediada.

A Unasul pressionou a OEA a aceitar a participação de Cuba nas periódicas cúpulas da Américas, por exemplo, e conseguiu. A ilha esteve no encontro de 2015, realizado no Panamá. Hoje a Unasul só existe no papel. O governo Bolsonaro tirou o Brasil da entidade.

Brasil saiu de cena

Depois dos governos Lula, o Brasil deu as costas ao continente, diz Estrada. Um processo iniciado com Dilma Rousseff, que não tinha o mesmo interesse por diplomacia e geopolítica do antecessor, e que foi reforçada pelos rumos conservadores e neoliberais de Temer e Bolsonaro.

Se postura do Brasil fosse outra, a crise na Venezuela talvez não tivesse chegado ao ponto em que chegou, nem a ruína econômica. Recorde-se: em 2003, seu primeiro no poder, Lula ajudou a criar o grupo “amigos da Venezuela”, para mediar conflitos que já existiam por lá; já Bolsonaro, em seu primeiro ano no poder, botou o Brasil para ajudar os EUA na tentativa de derrubar Nicolás Maduro.

Um diplomata brasileiro que viveu a política externa da era petista diz: a integração sul-americana arquitetada na era Lula tinha como premissa o Brasil ser o polo econômico em torno do qual orbitariam os vizinhos. Agora, segue esse diplomata, virou um cada um por si na América do Sul, com cada nação a buscar pontos de apoio diferentes (Estados Unidos, China, Europa), devido ao que aconteceu diplomática e economicamente com o Brasil nos últimos anos.

Em um artigo recente sobre “O protagonismo do Brasil na integração sul-americana”, um pesquisador e dois bolsistas do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) examinaram as relações comerciais na América do Sul de 2000 a 2018. “Entre 2000 e 2011, houve forte expansão das exportações e importações brasileiras com seus vizinhos”, escrevem Pedro Silva Barros, o pesquisador, e Sofía Escobar Samurio e Luciano Wexell Severo, os bolsistas. “Nos últimos anos, porém, a América do Sul tem perdido importância relativa no comércio exterior brasileiro.”

O total comercializado na América do Sul pelo Brasil encolheu 18 bilhões de dólares de 2011 a 2018, tendo sido de 57 bilhões no ano passado. A queda foi causada sobretudo pelas transações com Venezuela e Argentina. Os pesquisadores não identificam iniciativas brasileiras para reverter essa situação, ao contrário do que aconteceu em outras ocasiões, “prevalecendo um quadro de omissão”.

Barros debruça-se agora sobre 2019 e já constata “o pior momento do comércio interregional desde que há estatísticas”. Dois exemplos: até setembro, as exportações do Brasil para o Chile tinham caído 17% e para a Argentina, 38%. Ex-diretor da Unasul, Barros acredita que as turbulências políticas recentes na América do Sul apontam o início de um ciclo de instabilidade na região.

Mudanças à vista?

Será também o prenúncio de um novo ciclo de governos progressista na América do Sul? A adoção do neoliberalismo e do Consenso de Washington na região na década de 1990 daria origem às vitórias de líderes progressistas logo em seguida: Chavez na Venezuela (1999), Lula (2003), Kierchner na Argentina (2003), Evo Morales na Bolívia (2006), Correa no Equador (2007).

Há, porém, uma diferença geopolítica entre o neoliberalismo dos anos 1990 e o de agora, comenta um diplomata. Antes, a Casa Branca patrocinava medidas neoliberais. O ex-presidente Bill Clinton, no poder de 1992 a 2000, fez isso. Donald Trump não. Sua guerra econômica com a China é feita à base medidas heterodoxas, como o aumento de tarifas comerciais.

Por outro lado, Trump pode até não ter uma política externa clara para a América Latina, conforme anota Estrada, mas ressuscitou a chamada “doutrina Monroe”, aquela da “América para os americanos”. Trump citou Monroe em seu discurso na Assembleia Geral da ONU de 2018.

QUINTAL DOS EUA NÃO E SIM DE DONALD TRUMP, COM EXCLUSIVIDADE. FOTO: ALAN SANTOS/PR

“Desde o Presidente Monroe, é política formal de nosso país que rejeitemos a interferência de nações estrangeiras neste hemisfério e em nossos próprios assuntos. Os Estados Unidos reforçaram recentemente nossas leis para rastrear melhor os investimentos estrangeiros em nosso país em busca de ameaças à segurança nacional, e agradecemos a cooperação com os países dessa região e do mundo que desejam fazer o mesmo. Você precisa fazer isso para sua própria proteção”, disse.

O avanço político de forças progressistas na América do Sul na década passada foi possível graças a uma espécie de cochilo dos EUA. Em um debate Brasília em 24 de outubro, o sociólogo português Boaventura de Souza Santos disse que os americanos concentraram-se nos desdobramentos do ataque de 11 de setembro de 2001, como a guerra no Iraque e ao mundo islâmico, e deixaram de lado seu “quintal” tradicional, a América do Sul.

“Os Estados Unidos acordaram tarde. Hoje a China é o maior investidor na América Central, é o maior parceiro comercial do Brasil”, afirmou Boaventura. O que acontece agora, prosseguiu, é uma tentativa de “controle estrito de seus aliados sul-americanos” por parte de Washington.

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