POR QUE FOI UM CIENTISTA BRASILEIRO, E NÃO AMERICANO QUE CRIOU O TERMO 'ALIMENTOS ULTRAPROCESSADOS'

Carlos Monteiro entrou para a lista das 50 pessoas mais influentes no ranking do jornal americano The Washington Post

Por Maria da Paz Trefaut — Para o Valor, de São Paulo

—                                    Foto:Lula Palomanes

A escolha do restaurante é o primeiro sinal de que o cientista Carlos Monteiro não é um radical à mesa. Criador da expressão “alimentos ultraprocessados”, que hoje faz parte do vocabulário comum, ele sempre se permitiu pequenas indulgências, como um prato mais calórico, um bom vinho e uma sobremesa para coroar uma refeição.

É com esse espírito que ele elege o Ristorantino, endereço de cozinha italiana clássica, no bairro dos Jardins, em São Paulo, para este “À Mesa com o Valor”: “porque a comida é boa e fica perto de casa”, escreve, numa mensagem por WhatsApp. O dia está cinzento e chuvoso, e ele chega vestido com jeans, camisa e suéter de decote em V em tons de azul. É alto, magro, tem cabelos grisalhos e olhos azuis.

Há muito tempo que Monteiro, de 77 anos, é um epidemiologista respeitado mundo afora. Neste ano, entrou para a lista das 50 pessoas mais influentes no ranking do jornal americano The Washington Post. Pesquisador e professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, fundou em 1990 o Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens), que se tornou uma referência internacional.

       Foto: Gabriel Reis/Valor
Monteiro diz que ultraprocessados são formulados para “usar a matéria-prima mais barata que há, fazer as pessoas gostarem” 

Em 2006, o Nupens publicou a primeira versão do “Guia Alimentar para a População Brasileira”, uma pesquisa que promove a alimentação saudável e adequada com recomendações baseadas em evidências científicas.

Enquanto pede uma água com gás, gelo e limão espremido, ele fala dos restaurantes da vizinhança aos quais gosta de ir. Alguns de vez em quando, porque são mais caros, outros mais baratos e acessíveis. E em casa, ele cozinha? “Ah, essa é uma pergunta capciosa”, responde com um sorriso.

“Para mim, a comida é um negócio muito importante e sempre gostei muito de comer. Mas minha mãe não deixava nem eu nem meu irmão chegarmos perto do fogão. Depois casei e com minha primeira mulher, também médica, comecei a fazer alguma coisa. Estudávamos, ficávamos no hospital e não tínhamos tempo: nosso repertório era reduzido.”

Quando se refere às suas pesquisas, Monteiro sempre fala no plural. Assim, conta que, em 2009, sua equipe no Nupens propôs um novo paradigma para ciência da nutrição e da relação entre alimentação e doenças. Foi quando o termo “ultraprocessados” apareceu pela primeira vez na literatura científica, num artigo assinado por ele na revista Public Health Nutrition, editada pela Sociedade Britânica de Nutrição e publicada pela Cambridge University Press.

Esse texto já foi citado em 463 artigos científicos ao redor do mundo. Os artigos seguintes referentes ao mesmo tema, assinados sempre pela Nupens, já foram citados muito mais vezes. Um deles, 1.610 vezes, “o que é uma proeza no meio científico”, acrescenta ele, com orgulho.

A partir desse conceito, alimentos produzidos com substâncias químicas por grandes corporações multinacionais, como refrigerantes, salgadinhos, pães e sorvetes industriais, batata-frita de saquinho, macarrão e sopas instantâneas, hambúrgueres e salsichas, entre vários outros, ganharam o nome de ultraprocessados.

Foto: Acervo pessoal
Com o amigo Michael Pollan, autor de livros como “Cozinhar” e “Como mudar sua mente” 

São produtos diversos daqueles que fazem parte da cultura alimentar de cada povo, que obedecem a condições geográficas e históricas e que, por isso, seguem diferentes padrões no Japão, na Índia, no México ou no Brasil. É o caso de frutas, cereais, laticínios, legumes e carnes.

Em geral, esses alimentos ligados à dieta tradicional, pouco processados ou processados, se consumidos numa dieta equilibrada, são saudáveis. Ao contrário dos ultraprocessados. Até surgir essa nomenclatura, os alimentos eram classificados apenas por seu teor nutricional: carboidratos, proteínas e açúcares, independentemente do processo industrial pelo qual passavam.

O Brasil, atualmente, tem cerca de 20% de consumo de ultraprocessados na dieta e está numa posição intermediária, de média para baixa. Entre os países com consumo mais baixo está a China, com 10% da dieta, uma média entre cidades como Xangai, onde é mais alto, e outras onde é zero. Os estudos têm mostrado que nos países asiáticos, onde o consumo é menor, há pouca prevalência de diabetes. Mas quando os japoneses vão morar nos Estados Unidos, a diabetes aumenta.

Nos EUA, esse índice de consumo é de 60%. “Nos Estados Unidos se trata a comida como combustível. O que o americano faz? Ele calcula o que vai comer da mesma maneira que abastece o carro no posto de gasolina. Vai no posto mais barato e no mais rápido. Pensa gastar o mínimo de dinheiro e o menor tempo. Isso, no limite, mostra que a cultura alimentar praticamente se perdeu.”

Um dos benefícios do Brasil é ter uma “sociedade civil pujante”, segundo ele. “A gente tem vários grupos que defendem não só a alimentação saudável, mas o meio ambiente e a justiça social.” O Chile foi o primeiro país a ter obrigatoriedade de rótulos de advertência em alimentos ultraprocessados.


“Já nós aqui fizemos isso durante o governo Bolsonaro e só conseguimos graças à sociedade civil e órgãos como o Idec [Instituto de Defesa do Consumidor] e outros. A rotulagem é importante porque produtos assim não podem estar na merenda escolar.”

Foto: Acervo pessoal
Monteiro com toda a família: duas filhas, genros e quatro netos

Na hora de escolher os pratos, ele opta pelo menu executivo. Na entrada, pede polenta com queijo taleggio, seguido pelo risoto de funghi. São pratos que conhece e gosta de repetir. Ele, então, volta para a questão de cozinhar e diz que começou a perceber que “o fazer tem algo interessante”. E passou a cozinhar como forma de bem-estar, um prazer que cultiva com a mulher.

Entre as receitas que gosta de praticar, destaca o risoto: de abobrinha, de camarão. “Enfim, você vai fazendo e descobrindo uma marca de arroz diferente, uma outra combinação. Gosto de comprar ingredientes, de ir à feira, especialmente na época das alcachofras.”

No dia a dia, almoça em restaurantes de comida a quilo perto do trabalho, onde sempre há arroz e feijão com couve, um patrimônio brasileiro, que está se perdendo, o que levou sua equipe a fazer um estudo que acompanha 100 mil brasileiros, de várias regiões, para analisar a cultura alimentar e estabelecer uma relação entre dieta e doenças crônicas.

Para isso, explica: “Não adianta pegar um cara diabético e ver o que ele come. Tem que ver o que ele comia antes. O que ele comeu ao longo do tempo que o levou a desenvolver diabetes? Já estamos no quinto ano desse estudo. Queremos saber qual a diferença entre o cara que come a água do feijão e o que não come. O que acontece do ponto de vista da obesidade, diabetes, doença mental e depressão?”.

Entre 2009 e 2015, o Nupens realizou oito estudos para relacionar o consumo de ultraprocessados com obesidade. Hoje se sabe que a relação é óbvia e foi confirmada.

“O ultraprocessado realmente faz você comer mais. Ele é desenhado para isso. Para você comer compulsivamente, em quantidades enormes. Por isso a gente chama de ultraprocessado, porque não é comida, é uma formulação com corantes, aromatizantes e emulsificantes desenvolvidos em laboratório para durar. A melhor coisa que você tem a fazer é evitar.”

Qual a lógica da formulação? Ele responde: “É para o cara ter mais saúde? Não! É para aumentar o lucro. É pra usar a matéria-prima mais barata que há, fazer as pessoas gostarem, fazer propaganda e aumentar a margem de lucro”.

Ele diz que o ultraprocessado é “um modelo de negócios desenvolvido com o avanço da tecnologia de alimentos que permite fazer alimentos que as pessoas adoram por um custo baixíssimo”. Esse desenvolvimento industrial aconteceu simultaneamente a toda “a revolução que houve na agricultura acompanhado pela escala na produção de soja, que é ingrediente básico dos ultraprocessados”.

O ultraprocessado realmente faz você comer mais. Ele é desenhado para isso. Para você comer compulsivamente”

Em novembro, a revista médica inglesa The Lancet, referência no meio científico, vai publicar uma série de três artigos sobre alimentos ultraprocessados e saúde humana, resultado de um trabalho de 43 autores filiados a algumas das mais importantes universidades do mundo.

O primeiro artigo, liderado por Monteiro, faz uma revisão da literatura sobre o consumo de ultraprocessados. Em 104 artigos encontrados na literatura, que envolvem milhões de participantes em diversos países, 92 mostram que o consumo desses alimentos aumenta o risco de, pelo menos, uma doença crônica.

O segundo artigo da Lancet terá como foco opções de políticas para reduzir o consumo de ultraprocessados. E o terceiro vai falar dos obstáculos que existem à implantação dessas políticas e das estratégias das grandes corporações no sentido de escapar da regulação.

Filho de uma família de classe média baixa da zona norte de São Paulo, Monteiro cresceu no mesmo bairro onde os pais nasceram. “Era um bairro bem pobre, bem feio, ali perto da penitenciária do Carandiru. Meu pai tinha um bar, meu avô tinha um bar.” Todos os avós eram portugueses, daí que não podia faltar a bacalhoada de domingo. “Minha mãe cozinhava superbem, meio trivial básico, e qualquer coisa que ela fazia era boa.”

Aos 13 anos, com uma autorização do pai, Monteiro começou a trabalhar como office boy. “Na época era permitido trabalhar só a partir dos 14, mas como a firma de cortiça onde meu pai trabalhava estava precisando de um office boy, eu fui.” Logo depois, migrou para um escritório de advocacia onde atendia telefone e pessoas. Dali seguiu como vendedor para uma loja de camisas. Todos os empregos eram no centro da cidade. “Fui criado no centro de São Paulo.”

No centro e adjacências também ficavam as escolas públicas onde estudou: Caetano de Campos e Marina Cintra. “A gente precisava comer por ali, e eu e meus colegas começamos a procurar lugares que eram baratos. Aí vi que podia escolher e comecei a prestar atenção no gosto. Só no gosto.”

Na Faculdade de Medicina da USP, ele foi um estudante mediano, que fazia “o mínimo para passar de ano”. Era 1967/68, período de grandes movimentos estudantis, e ele foi na onda. No segundo ano já participava do Centro Acadêmico, “pouco interessado no curso e mais interessado no que acontecia no mundo”. Alguns colegas já falavam na especialização que iriam seguir, e ele “não estava nem aí”.

Aos poucos se interessou pela medicina preventiva e decidiu fazer residência nessa área. Foi durante a residência, num estágio num hospital no Vale do Ribeira, que se deparou com a desnutrição.

“Tinha muita criança inchada, aquelas de pele e osso, e a gente começou um programa de recuperação nutricional. Descobrimos ali ao lado uma cidadezinha chamada Pariquera Açu, perto de Registro, que não tinha nenhum centro de saúde, e as pessoas eram obrigadas a ir longe para serem atendidas. Então, criamos um centro de saúde.”

Os residentes se dividiram, e Monteiro ficou na área de pediatria. “Percebi que não sabia fazer nada. Eu não tinha aprendido como manejar um caso de desnutrição.” Em busca de informações, chegou ao professor Yaro Ribeiro Gandra, uma sumidade na Faculdade de Saúde Pública, que lhe deu vários livros para ler que explicavam como diagnosticar a desnutrição e como manejá-la. A base do que aprendeu foi na USP. Depois, fez pós-doutorado na Universidade Columbia, em Nova York, o que serviu mais como experiência fora do país e contatos.

Quando jovem, utilizava parte do tempo nas viagens para pesquisar CDs. “Uma vez, quando estava em Harvard, em Boston, descobri uma loja que vendia usados por US$ 5. Depois você levava de volta e eles recompravam. Eu vivia lá.” Até hoje é ouvinte de discos que fizeram sucesso na bossa nova, como “Getz/Gilberto”, de João Gilberto e Stan Getz, um clássico que agora ouve no Spotify.

“Adoro música, especialmente MPB, e vou muito à Casa de Francisca. Acho um lugar muito especial. Gosto também de ver pessoas novas cantando e tocando, sabe?”, conta.

“Na minha casa não tinha vitrola, só rádio. Minha mãe ouvia umas cantoras que não me interessavam. Mas, na Faculdade de Medicina, havia uma coleção de discos incrível. Lá descobri o jazz dos anos 50 e 60, a Nina Simone. Ela me abriu um mundo.” Jazz experimental não é a dele. Prefere standards em vozes como as de Billie Holiday e Louis Armstrong.

Outra coisa que cultiva são as idas ao cinema. “Eu e minha mulher vamos principalmente ao Belas Artes, aqui pertinho de casa, onde dá pra ir a pé.” Cita, então, o cineasta alemão Wim Wenders, que classifica como “genial”, e seu filme mais recente, “Dias Perfeitos”.

Chegou a hora de pedir a sobremesa, e ele nem hesita ao escolher o pudim de pistache, um clássico do Ristorantino. “É pistache de verdade”, acentua, como quem conhece bem. Vinho, queijo, café e chocolate são outras de suas paixões. Máquinas de café tem três, algumas trazidas de suas viagens.

Depois que se tornou uma personalidade internacional, muita gente lhe pergunta por que foi um brasileiro a criar o termo “ultraprocessados”. O natural para a maioria das pessoas seria que um conceito assim saísse de universidades como Harvard, Yale ou Columbia.

“Acho que é porque essa mudança da alimentação começou acontecendo nos Estados Unidos depois da Segunda Guerra, e as pessoas jovens não sabem como era antes. O McDonald’s já é a memória deles. Eles foram normalizando isso e não ocorreu aos pesquisadores americanos que aquele tipo de alimentação podia causar doenças, até porque é praticamente o único que há.”

Entre as exceções cita seu amigo Michael Pollan, escritor e ambientalista, que também se dedica a questões alimentares e é autor do livro “Como mudar sua mente”, que virou série documental da Netflix. Mas os americanos, de um modo geral, são “o protótipo do consumidor desejado pelas grandes corporações e pela indústria”. Porque foram “domesticados” no sentido de querer variedade e de acreditar que é só abrir a tampa da felicidade.

“É uma coisa cultural nos Estados Unidos. Mesmo os americanos com os quais eu tenho relação carregam essa cultura. E essa é uma das divergências que temos. Porque hoje há um consenso de que o ultraprocessado é muito ruim, e nós achamos que temos que ter políticas para interromper esse crescimento e que promovam alimentação de verdade.”

Enquanto isso não acontece, Monteiro segue fazendo sua parte. Lê todos os rótulos antes de comprar um produto e volta e meia se depara com surpresas. “Quando você menos espera, às vezes quer comprar um bolinho numa padaria para o café da manhã e percebe que o bolo já não é feito naquele lugar. Eles recebem uma massa, um pó, um negócio que tem tudo quanto é aromatizante, corante, emulsificante, gordura hidrogenada, gordura trans... Isso me aconteceu outro dia, na padaria perto de casa, onde sempre vou nos Jardins. É preciso estar sempre vigilante.”

GAZETA SANTA CÂNDIDA, JORNAL QUE TEM O QUE FALAR

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