VOLTA E TRUMP REPRESENTARIA DERROCADA DA ATUAL ORDEM MUNDIAL

Globalização liderada pelos EUA desde a Segunda Guerra é bem mais frágil do que parece

A ordem mundial baseada no ideário ocidental do pós-guerra e na globalização está em crise e, ao que tudo indica, esta não será passageira. As evidências estão por todos os lados.

O clima é de internalização produtiva, reforço das relações comerciais com pares ideológicos e vizinhos, aumento da tensão geopolítica e, acima de tudo, consciência de que a elevação da qualidade de vida e o acesso a valores iluministas ao redor do mundo não se traduz em transição global para uma fase de maior intercâmbio e cooperação para enfrentar os grandes desafios da humanidade.

Porta-aviões chinês Shandong (à esq.), é monitorado por navio de guerra taiwanês - Ministério da Defesa de Taiwan via AFP

Os conceitos em alta no comércio exterior são "reshoring", "nearshoring" e "friendshoring". Eles basicamente sinalizam formas de oposição à expansão do intercâmbio econômico global.

O primeiro significa internalização das etapas do processo produtivo. É o contrário de "offshoring". Apple, GE e Ford são algumas das empresas que embarcaram nessa onda, citando como vantagens o aumento do controle de qualidade e maior velocidade de resposta aos ventos do mercado.

Mais importantes do que o declarado são a escalada da tensão na região do Indo-Pacífico e a robotização das fábricas americanas e europeias, onde a hora trabalhada custa bem mais do que na China. A conectividade tecnológica impulsiona a externalização da produção, enquanto o aumento da automação torna-a menos decisiva para o sucesso empresarial.

"Nearshoring" é o mesmo, só que com transferência de etapas produtivas para os vizinhos. Google, Boeing e Whirlpool são exemplos de empresas americanas fazendo "nearshoring" para o México, que tem se beneficiado imensamente da tendência.

Finalmente, "friendshoring" é a tendência a mover etapas do processo produtivo para nações politicamente alinhadas. Trata-se da antítese da globalização. "A prática tem gerado preocupações pela possibilidade de fragmentação geopolítica e desglobalização da economia mundial em função do declínio na interdependência das nações, instituições e corporações" (Agenda 2023 do Fórum Econômico Mundial).

Os conceitos de globalização e desglobalização são muitas vezes usados para dividir os estágios do desenvolvimento civilizatório. Richard Baldwin, por exemplo, propõe a existência de quatro fases de interdependência crescente. É um exercício interessante, mas o que importa mesmo é o período que começa no pós-guerra e, ainda mais, aquele que se inicia com o fim da Guerra Fria.

O mundo em que a gente vive não é de mera continuidade histórica, ele também é fruto de um desenho particular envolvendo múltiplas instituições e a chamada pax americana, a qual é a conjuntura de baixa reatividade conflitiva sob forte influência militar dos Estados Unidos.

"Após a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos e seus parceiros criaram uma ordem internacional multifacetada, organizada em torno da abertura econômica, instituições multilaterais, cooperação pela segurança e solidariedade democrática. No processo, os EUA viraram os cidadãos de primeira classe dessa ordem, provendo liderança hegemônica" (Ikenberry, J.G., 2018, p. 7).

Esta ordem se escora em instituições dos anos 1940, como a Otan, ONU, OMS, e CIJ (Corte Internacional de Justiça), FMI e o Banco Mundial, além de outras mais recentes, como a OMC (1995) e o G20 (1999). É ela que está em crise, não a tendência de alta do comércio global, século a século, ou o avanço do IDH planetário em função do progresso técnico.

A ideia de um mundo regido por princípios universais, em que uma resolução da ONU condenando alguma ação é capaz de mudar o coisas como são, não passa de fantasia ingênua. Na hora do vamos ver, os Estados são todos implacáveis e os órgãos internacionais mais fracos do que parecem. De norte a sul, de leste a oeste, a empatia pelo "outro" é sempre nula e o nacionalismo é muito mais forte do que qualquer apelo universalista. Que boca têm os realistas!

A democracia não é contagiosa; ela sequer é necessária para a prosperidade, como mostram os chineses. Alienar os russos do Swift (Sistema Global de Telecomunicação Interbancária) não produziu qualquer efeito em seus esforços de guerra, mostrando que sua suposta globalidade é limitada.

Tampouco há indícios de que o apedrejamento de mulheres esteja com seus dias contados, ainda que estas estudem em Londres e possam dirigir pelas ruas de Riad. Ninguém se diz fundamentalista, mas fato é que a tendência possui demografia vitoriosa no mundo todo, além de quantidades exorbitantes de energia para se impor, inclusive no ocidente ilustrado.

A tese que se assenta sobre essa conjuntura é que a estabilidade da ordem mundial baseada na narrativa dominante é bem mais frágil do que parece, além de mais recente: ela veio à forja há meros 30 anos com a unipolaridade americana, a qual envolveu as guerras do Iraque e do Afeganistão (perdidas) e a recente guerra por procuração com os russos (em rota de derrota).

Até então, tínhamos a pax americana e a pax soviética e mais de metade da população mundial vivia às margens deste sistema que já chamávamos de global.

Esta ordem recente vem entrando em declínio com (1) a ascensão da China como potência planetária, (2) o fortalecimento dos blocos de poder não alinhados e (3) a crise das instituições multilaterais e do trânsito de mercadorias e pessoas no Ocidente rico, especialmente nos Estados Unidos, onde o ressentimento dos brancos não qualificados frente ao "globalismo", entendido como forma de alienação produtiva, acelera o refluxo da ordem estabelecida.

Muitos no Brasil se comprazem com esse quadro, dado o ressentimento com as intervenções americanas na América Latina e que a conjuntura aumenta nosso poder de barganha, tanto com os americanos quanto com os chineses. Porém, é preciso considerar que a disrupção leva ao tombamento das vias estabelecidas para o enfrentamento dos grandes desafios do nosso tempo e à multiplicação das guerras, as quais são invariavelmente pagas em escala planetária.

Calcula-se que, até março do ano passado, a Guerra da Ucrânia tenha produzido mais de US$ 51 bi em prejuízos ambientais e a liberação de mais de 120 milhões de toneladas cúbicas de gases poluentes na atmosfera, o que equivale a cerca de 27 milhões de carros rodando por um ano —sem contar os efeitos da sabotagem dos gasodutos Nord Stream, em setembro de 2022, que levou à maior liberação pontual de metano da história.

O ano de 2023 foi palco de 183 conflitos regionais. É o maior número dos últimos 30 anos e, como os editores do Financial Times bem notaram, não inclui a guerra em Gaza, que já destruiu mais de 100 mil edificações, cuja reconstrução terá custo planetário equivalente às emissões anuais da Nova Zelândia, além da necessidade de descontaminação de aquíferos e do próprio solo.

Enquanto reforça o "friendshoring" e outras dinâmicas desglobalizantes, a turbulência multiplica o passivo global. Estados Unidos e China estão investindo fortemente em programas militares baseados na possibilidade de entrarem em conflito direto e na certeza de conflitos indiretos. Ambos estão apostando em armas autônomas, igualmente almejadas por outras potências bélicas, as quais rechaçam qualquer acordo internacional para limitar a sua proliferação.

Em alguns anos, deveremos assistir ao fracasso do Pacto de Não Proliferação de Armas Autônomas e à explosão no uso de armas biológicas por grupos insurgentes, confrontados por enxames de drones e outras traquitanas programadas para matar.

John Mearsheimer foi preciso ao dizer que Donald Trump basicamente concorreu contra a ordem mundial baseada no multilateralismo e na globalização. A despeito do cabelo laranja, ganhou uma vez e só não levou a segunda porque a Covid-19 tirou seu cérebro de órbita. Mandatário, ameaçou tirar o país da Otan (2019) e foi às vias de fato em relação ao Conselho de Direitos Humanos da ONU (2018), à Unesco (2018), ao Acordo de Paris (2017) e vários outros.

Se Trump ganhar novamente, você pode apostar que, em alguns anos, estaremos chamando esta de "a velha ordem do Ocidente globalista". É preciso um tipo especial de otimismo ou um plano alternativo verdadeiramente genial para achar isso bom.

FSP
Álvaro Machado Dias


Neurocientista, professor livre-docente da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e sócio do Instituto Locomotiva e da WeMind



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