QUADRINHOS, MÍDIA CONTEMPLATIVA E A ARTE DE ZOAR




Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político

A imaginação humana, em matéria de monstros, é limitada.
Jorge Luis Borges

Nenhuma glória para o homem!
Nenhuma glória para mim!
Não para mim!
Não adianta escrever quando o espírito não conduz.
Allen Ginsberg

Num tempo de mídias interativas, os quadrinhos resistem.
Aprecio quadrinhos há muitos anos e quando era jovem via em suas histórias um jeito de sofisticar minha percepção.

Como leitor de livros geralmente era subjulgado e limitado pela página escrita. Havia muita submissão nos livros e em todas as histórias a desigualdade era uma constante. Esse imperativo, com as leituras se sucedendo, involuntariamente me forçava a reconhecer questões de naturalidade que, sem o saber ainda, me incomodavam.

E o poder sempre se fazia presente em todos os livros, exceto os de poesia e fui preferindo os poetas malditos. Os livros me diziam sempre o que fazer. Essa heteronomia era sempre um incômodo, uma coceira, um estorvo.

Os livros replicavam os professores e esses replicavam os livros, numa redundância sem fim.

Fui descobrindo os quadrinhos com as histórias europeias, muito mais interessantes e de incidência temática. Esse foi o primeiro plano que me atraiu.

A imersão nas quadrinizações foi outra dinâmica que me convenceu a mergulhar num universo que só aparentemente é bidimensional.

A imersão se deu aos poucos. Lia os gibis seguindo os protocolos de leitura habituais, conferindo mais importância ao texto do que às imagens. Foram necessários anos para que o equilíbrio ocorresse. As imagens consumiam então a mesma energia que as palavras e as onomatopeias foram também se contorcendo em imagens.

Com o tempo fui me desinteressando pela leitura. No início por pura preguiça, mas fui percebendo os malefícios que me causava, identificando os vínculos coloniais que continham as letras e a saturação de prazeres fúteis que o intelecto proporcionava.

Com movimento inverso, as imagens estavam ali, estampadas e curiosas com seu convite de devaneio. Fui percebendo as camadas que um simples traço poderia ocultar e, mais que tudo, como isso acionava minha imaginação.

Era o princípio da contemplação esse convite e abriu portas dimensionais apenas com uma única chave: a observação tranquila, sem foco, admirada e admirável.


Lanfeust de Troy. Os álbuns apresentam um mundo em que a magia faz parte do cotidiano

Muitos advogam que aprenderam a ler com os quadrinhos. Eu garanto que também podemos superar as limitações impostas pela leitura com eles. As imagens contam histórias bem diversas dos roteiros.

Os desenhos, suas narrativas insuspeitas quando libertas dos textos, fazem parte de uma linguagem universal e acessível a qualquer um, independente de sua alfabetização.

A arte sequencial e simultânea é passível de interpretação e todo mundo entende do seu jeito. As narrativas de papel são mais livres inclusive do que as fílmicas, que mantém fixo na sequência o espectador, submetido a tempos e decisões previamente instituídas.

A condição sempre instituinte das narrativas gráficas visuais, as possibilidades de leituras diversas e interpretações abertas foram me convencendo que ali estava um caminho bastante caótico de cultura e só me bastava abdicar de ler os textos orientadores.

Além do mais, como objeto físico, vem carregado de cheiros, de contatos táteis e de ações colecionáveis. E a cada nova leitura, a história se transforma, na mesma medida em que eu me transformava.

Resolvi escancarar a quarta parede e tomar o controle suave das metalinguagens, tecendo histórias que transitam em vários quadrinhos em que sou eu o autor da trama imagética de histórias que só existem pra mim.

A contemplação então se tornava uma forma de meditação e as páginas em paisagens da memória sempre reeditadas.

Esse ritual contemplativo, além do mais, alimenta outro sistema cognitivo bem diferente do que usamos para aprender as variações coloniais heteronômicas e quanto mais viajamos de modo hermenêutico nos gibis, mais nutrimos esse outro sistema que felizmente não pode ser entendido intelectualmente.

A esse sistema cognitivo misterioso que ocorre de modo independente da racionalidade chamo sistema cognitivo sentimental e é nele que pode ocorrer a autonomia.

Tudo que é gestado aí serve para alimentar a imaginação e a criatividade, diferente dos modelos heteronômicos, que só nos servem para reproduzir o que aprendemos a duras penas.

A contemplação é um estado de tranquilidade, sem objetivo algum, apenas contemplar. Esse movimento deixa em repouso as estruturas racionais e ativam os fluxos sentimentais de modo que num nível muito profundo e sem nos darmos conta, estamos conectados a tudo, não só ao gibi que estamos admirando.


O estado de admiração é também ele uma forma de repouso para a mente, pois cessam aí o julgamento, a moral e os bons costumes.

Nesse sentido, os quadrinhos são narrativas extradimensionais por operarem em múltiplos ambientes, externos ao leitor, internos aos desenhos sequenciais, internos ao leitor e paralelos a ambos. É uma íntima conexão com a diversidade sob uma ótica livre e permissiva, pois carece da imaginação para compor os caminhos disponíveis nesses muitos mundos em encontro.

A metalinguagem que acontece inevitavelmente promove um diálogo em plena complexidade, com as diversas probabilidades da presença multiespectral entre imagens, observador, observado, o diametralmente outro e a singularidade de aberturas de portais nunca antes entrevistos. E tudo isso com uma ação aparentemente infantil e prosaica.

A infância é o instante em que poderíamos reverter as forças coloniais em zonas de autonomia, mas nos obrigam a sentar numa cadeira, por horas a fio, ouvindo e fazendo o que a autoridade determina. E todos estão coniventes com essa imposição.

Os quadrinhos vistos dessa forma são possibilidades de evasão das hordas do poder, janelas por onde podemos transitar para mundos extraordinários em que a liberdade de escolha foi investida por nós mesmos, seres libertos das prisões cartesianas da razão.

E voamos livremente pelos céus de dezembro.

Esse aprendizado nos leva sem esforço para uma dimensão de liberdade que é ainda mais surpreendente, pois com as narrativas livres dos quadradinhos também aprendemos a zoar.

A ARTE DE ZOAR

Zoe em grego significa vida.

A vida é um caçoar dirigido ao poder. O poder tem origem em thanatos, potencia de morte.
Usualmente, nossa mente colonial nos informa que aqueles que discordam do poder devem enfrentar o poder. Mas enfrentar o poder é usar o poder e o confronto apenas nos vincula ainda mais àquilo que queremos destruir.

Todos que enfrentam o poder se levam muito a sério. Precisam se empoderar para isso e acreditam num ritual de rebeldia. A investidura do confronto é a mesma do status quo.

O poder deseja vencer ou perder, deseja derrotar e confrontar.

Zoar também é a picada dos insetos, atiçam, coçam, aborrecem por sua minúscula insistência. E esse incômodo não pode ser revidado. Está ali como um lembrete, uma chaga, uma cicatriz que ascende quando vai chover.

O poder precisa do confronto pra prosseguir, mas a zueira é como a água diante do poder, ela o contorna e sai onde ele não esperava. E o poder é feito de bobo, um bobo poder. Todo aquele que fizer de bobo o poder vai perceber que ele é enganador em sua força. É fraco e medroso, por isso precisa convencer de sua importância que, no entanto é nula.

A zueira é a ação para ridicularizar o poder. Não é forte, mas é potente. E só aquele que não se leva a sério pode implementar essa zueira.

O ser irreverente não se leva a sério. É capaz de zuar o poder sem nenhum escrúpulo. A irreverência é a potencia contra o poder, pois o desnuda em sua pequenez. E um poder nu é bem ridículo de se ver.

Mas a irreverência é um estado de espírito e só aquele que não se importa com o que pensam dele pode ser assim. Está imune aos ataques moralistas, já que o certo e o errado são compreensivos para os que precisam ser aceitos. Entre o certo e o errado existem universos cinzentos e aproximativos que são ignorados pelo concordo discordo.

Para a zueira não existem anátemas.

Os colonizados acreditam que a razão faz parte do corpo, como um membro de locomoção. A razão, todavia, é o emissário colonial internalizado pelo indivíduo, que precisa desse orientador para gerir o poder e buscar privilégios.

Mas essa é uma questão importante para quem quer zuar. Pois o elemento surpresa da irreverência é o reconhecimento de que não se é humano, no sentido de uma humanidade colonial, mas sim que se reconhece sob um manto muito mais abrangente de uma humanidade compartilhada, em que não existe a soberania humana, esse lugar de altivez e arrogância que marca o ser egóico.

O irreverente já abdicou de sua vestimenta do poder e assumiu sua animalidade, sua condição de humano-terra, em que todos são seus próximos, os seres de carne, de energia, de seivas, de complexos proteicos. Nesse nível, a isonomia é uma bênção, pois equaliza a todos e não separa nenhum.

Os que adoram o poder são já por isso mesmo seres risíveis, pois carregam na sua racionalidade uma inapreensível vontade de dominar e, consequentemente, de destruir.
Quando praticam o bem, provocam sempre o mal, eis a natureza da razão, uma usina produtora de malefícios e junto com cada malefício expurgado, uma esperança de salvação no futuro. É impressionante tamanha ignorância sobre a vida. Só rindo mesmo.

Mas nada podemos fazer contra essa horda de racionalidades ambulantes. Ser irreverente é o único jeito de se imunizar contra seus ataques só aparentemente fulminantes. Seu racismo é inútil para os irreverentes. Assim como todos os preconceitos são inúteis para os irreverentes.

O ser irreverente sabe que a razão não é parte do organismo, é parte da colonização e não há nada a fazer para salvar os inteligentes. Continuarão sua marcha para o futuro, crentes que existe lá a salvação, o bem estar, a igualdade.

Conheço um senhor africano que quando passa ao lado do poder, solta um estrepitoso peido e segue tranquilo sua jornada. Nada pensa, só um estrepitoso peido. Diga se não é um jeito elegante de zoar?

É o momento em que entramos na narrativa gráfica da vida ordinária e alteramos substancialmente o jeito usual de viver.

*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) escritor e compositor

GAZETA SANTA CÂNDIDA, JORNAL QUE TEM O QUE FALAR

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