Repórter mostra impacto da instalação de usinas nas comunidades ribeirinhas onde residem famílias do seu povo, os Mura
Por Tanamak (Márcia Mura)
Ixe Tanamak do paranã Iruri…
Eu sou Tanamak, nome que recebi de Namatuyky, o grande criador para o povo indígena Mura, ao qual pertenço. Sou filha do rio que treme, região ancestral mura e de outros povos que disputavam territórios, como os Munduruku e os Parintintin.
Atualmente, o Iruri é denominado rio Madeira. Ele nasce nos Andes, na Bolívia, e passa por Rondônia e Amazonas, desembocando no rio Amazonas, no território pindorâmico.
Os Mura se encontram em dezenas de territórios demarcados ou em reivindicação para o lado do Amazonas. Na parte que corresponde a Rondônia, estão inseridos em espaços denominados ribeirinhos, que resultaram dos seringais instalados sobre territórios ancestrais dos Mura e de outros povos indígenas.
O tema deste texto, a vida antes e depois das hidrelétricas no rio Madeira, já vem sendo discutido por outros jornalistas. A diferença, em relação a outras reportagens, é que esta foi escrita na perspectiva indígena.
Agabawe (Iremar)
Tanamak desceu o rio Madeira de barco para visitar comunidades menos acessíveis
Em 21 de junho de 2022, eu e Agabawe descemos o rio no barco Marcos Filho. Desta vez, eu viajava como indígena jornalista, acompanhada de mais um comunicador e um documentarista. Definimos que iríamos a comunidades menos acessíveis, como Papagaio, Conceição de Galera no rio Madeira e Demarcação, no rio Machado, um afluente do Madeira.
A partida do porto no centro urbano da capital rondoniense é sempre movimentada. Cargas sendo carregadas, pessoas chegando e saindo, até que o marinheiro vai para o leme e apita, avisando a partida do barco. Vento no rosto, e a satisfação de ver Marcelo, nosso parente Mura, no leme do barco…
Descemos o rio registrando as imagens de destruição: portos graneleiros, dragas de garimpo, balsas de transporte de soja, desbarrancamentos. Navego nesse rio desde criança, no tempo em que a gente enfiava a caneca nas águas e bebia. Hoje, me entristeço de ver nosso rio barrado, sugado, contaminado. Isso tudo que, para empresas e governos, representa o progresso, para nós representa morte.
Numa das conversas com um parente em Nazaré, ele me contou do tempo em que era curumim e brincava com seus irmãos e primos de subir o rio remando. De acordo com ele, dava trabalho remar contra a correnteza. Ele faz essa rememoração sorrindo, mas, de repente, expressa um semblante de lamento e diz: “Hoje em dia o rio nem corre mais. Ele já está morto!”.
Ao ouvir isso me assombrei, pois sempre digo que estão matando aos poucos nosso rio, e ele disse que já está morto. Essa percepção é triste, mas é o que nós, que nascemos e crescemos às margens desse rio, sentimos. Como disse Agabawe ao compartilhar com ele essa percepção do nosso parente: “É, o rio está respirando artificialmente”.
Aprendi com os mais velhos que antes tinha tempo para a água branca entrar na água escura dos igarapés e lagos, e isso era um marcador do período de plantar e colher, de cheia e de seca, assim também como o canto do pássaro e do sapo diziam do tempo de subir e descer as águas, e ainda sabíamos o nível que seria a enchente só observando a altura em que os uruás (caramujos) desovavam. Agora, depois das hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau, construídas acima de Porto Velho e inauguradas em 2012 e 2016, respectivamente, os mais velhos dizem que tudo mudou. A partir do que eu escuto eles falarem e da minha própria observação, posso afirmar que hoje quem comanda o rio são as comportas das hidrelétricas. Nossa temporalidade foi drasticamente afetada.
Agabawe (Iremar)
Indígenas e comunidades tradicionais sentem os efeitos de hidrelétricas e do avanço do garimpo e do desmatamento na região, que impacta diretamente a vida dos rios, lagos e igarapés O encontro com dona Preta, a curandeira respeitada do Madeira
Chegamos à noite ao Distrito de Nazaré. Foi bom voltar mais uma vez para a Maloca Mura, como chamamos nossa casa. No outro dia, fomos articular nossa ida às comunidades. Saímos cedo na voadeira – embarcação de alumínio com motor 25hp. Nossa primeira parada foi na localidade onde dona Preta, uma curandeira antiga, do tempo da minha avó, mora há mais de 50 anos. Eu estava só emoção, pois cresci ouvindo minha avó falando dela e ainda não tinha tido oportunidade de conhecê-la. Na minha tese de doutorado, intitulada “Tecendo Tradições Indígenas”, defendida na Universidade de São Paulo, em 2016, ela é bastante mencionada pelos colaboradores.
Agabawe (Iremar)
Agabawe e Tanamak descendo o rio Madeira na voadeira com o piloto Américo Desmoret, indo para as comunidades Papagaio e Conceição de Galera
Quando nosso parente piloto anunciou que tínhamos chegado ao porto da dona Preta, quase não acreditei. Subi o barranco inclinado segurando numa corda, escalando, e, quando cheguei em frente à casa dela, me deu um frio na barriga. Fiquei insegura, com receio de ela não me receber, pois falam que não recebe todo mundo. Em frente à casa dela tem um pé de mucuracaá, que espanta mau olhado e também é utilizado nos banhos medicinais para afastar coisas ruins. Fiquei sentindo aquele cheiro forte, minhas pernas começaram a gelar, comecei a suar frio, tomei coragem, bati palmas… Na janela apareceu o semblante de um senhor desconfiado e com uma expressão meio dura. Ficou me olhando, me apresentei: falei quem era e que meu sonho era conhecer dona Preta. Ele desfez a dureza do rosto e, olhando para dentro da casa, disse: “Tem uma mulher aqui querendo te conhecer”. Depois, voltou-se para mim e indicou que eu e os demais que estavam comigo podiam entrar. Entramos. Ela estava sentada numa cadeira na cozinha. Estava adoentada do estômago. Eu nem acreditei que me encontrava ali diante dela. Pedi sua benção – costume que temos em respeito aos mais velhos –, me apresentei, e os demais também.
Ouvimos um pouco da sua história de vida. Ela nos contou que sempre foi perseguida por causa do seu trabalho de curar as pessoas, ou, como ressalta: “Eu não, os espíritos que recebo!”. Ficamos perplexos de saber que ela já havia até sido presa, porque as pessoas vinham pedir ajuda espiritual diante dos desafios que a realidade longe dos centros urbanos lhes impunha, e isso incomodava as autoridades da época. Presumimos que fosse no período da ditadura, pois ela disse que ainda era nova. Não gravamos nada e nem tiramos foto, porque ela não gosta que tirem foto dela. Eu apenas respeitei, olhei bastante para ela e a ouvi atentamente, com o desejo de que suas imagens e as palavras ficassem gravadas na minha memória. Cumpri meu objetivo.
Agabawe (Iremar)
Tanamak ao desembarcar no porto de dona Preta, curandeira respeitada do rio Madeira Dona Nair, grandiosa como as castanheiras
Seguimos viagem para Papagaio. Nosso parente piloto aportou no lugar onde vive dona Nair, uma mulher de idade, com fenótipo indígena e negro, de palavra forte e sábia. Em respeito, tomei benção dela também, pois estava ali diante de uma anciã guerreira, a resistência em vida.
Ao subirmos o barranco no porto da dona Nair, a primeira coisa que me impressionou foram duas castanheiras-sapucaias grandiosas beirando o barranco e já condenadas, daqui a mais um tempo, a caírem com o barranco. Elas foram as primeiras anciãs do lugar que reverenciei e a quem pedi licença.
Dona Nair apareceu. Veio andando devagar, observando. Ao iniciarmos o diálogo, a primeira coisa que perguntei foi sobre as vovós castanheiras-sapucaia. Com expressão de generosidade e ao mesmo tempo de firmeza na fala, ela contou que foram plantadas ainda quando a comunidade estava sendo formada e foi relatando que já havia enfrentado uns garimpeiros que estavam dragando na frente ao povoado e provocando o desbarrancamento acelerado, o que explica por que as sapucaias estão na beira do barranco, prestes a cair. Isso, a princípio, nos deixou tristes, mas, ao saber que dona Nair plantou muitas outras delas, que já dão frutos e novas mudas, nos alegramos. Ela, inclusive, prometeu nos presentear com mudas antes que fôssemos embora.
O enfrentamento de dona Nair aos garimpeiros mostra a coragem das mulheres anciãs para defender suas comunidades. “Desde que eles começaram a mexer aí, começou a cair tudo”, contou. “Aí eu falei pra eles que podiam se retirar. Eu digo: ‘Olhem, vocês podem se arredar daí! Porque, se vocês não se retirarem, eu vou tomar providência agora.”
ELY
Dona Nair, moradora antiga da comunidade de Papagaio, é considerada uma “anciã guerreira” pela luta contra o garimpo e a degradação
Mesmo diante do desdém dos homens, ela não se intimidou: “Aí um [deles] disse assim: ‘Vá cuidar da sua casa’. Eu digo: ‘Vou cuidar da minha casa e cuidar da beira do barranco também’. Falei: ‘Por que vocês não estão vendo o que estão fazendo aí? Vou tomar providência agora’. Aí eu digo: ‘Vou em Calama [outra comunidade do rio Madeira] se não tomaram providência. Eu vou pra Porto Velho! Vou!’. Quando eu falei assim, foram saindo tudinho daí”.
Essa é dona Nair, grandiosa como as duas árvores que estão em frente à sua comunidade. Como ela, muitas mulheres do Baixo Madeira e outras partes do rio foram e continuam firmes, mesmo com tudo desmoronando ao seu redor. Enfrentam os que ameaçam seu lugar e vão atrás dos seus direitos coletivos.
Como podemos ver nesta fala de dona Nair, uma das consequências ambientais do garimpo são os desbarrancamentos das comunidades. Esse desbarrancamento não é só físico, mas também é de lugares de memórias, árvores centenárias, roçados, moradias, cemitérios. São interferências na dinâmica da vida das comunidades.
Agabawe (Iremar)
Margens do rio Machado, onde fazendeiros retiraram floresta na beira do rio e causaram desbarrancamentos
Depois de ouvir essa primeira parte da fala de dona Nair, Agabawe perguntou a ela: “Antes de eles construírem essa barragem que começaram em 2008, a senhora sabe se teve alguma inundação grande que chegou aqui em cima, nessa parte alta aqui da comunidade?”. “Não. A única coisa foi essa, em 2014”, respondeu. “Eu tinha três casas ali. Minha casa era bonita!”, contou ela. “Foi quando essa barragem veio. Se o senhor soubesse o que nós passamos…”
Dona Nair relatou que teve muito trabalho para tentar salvar parte de suas posses, como móveis e eletrodomésticos, com ajuda de parentes. “Com dois dias, [a água] estava lavando tudo. Era tudo: fogão, geladeira, freezer, tudo”, rememorou. Um neto a ajudou a construir jiraus para erguer parte dos objetos. “E eu fiquei lá pra dentro do mato, não pude fazer mais nada. Perdi uma porção de coisa”, relatou.
Enchente de 2014, o divisor de águas
Em 2014, pouco tempo após o início do represamento do rio por conta da construção das hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio, aconteceu uma grande inundação no rio Madeira, que afetou os territórios de povos indígenas, populações tradicionais e os espaços urbanos desde a Bolívia. Para o lado do Brasil, foram afetados diretamente Rondônia, Amazonas e Acre, mas, independente dessa divisão, todos os habitantes das margens do Iruri, e dos outros paranãs [rios] ligados à sua bacia hidrográfica, foram atingidos.
Animais como sucuris, jacarés e peixes morreram em grande quantidade, assim como antas, queixadas, pacas e cutias, dentre outros. Foram impactados os povos Mura, Tenharin, Parintitin, Mura Pirahã, Torá, dentre outros, assim como as populações dos espaços territoriais ribeirinhos e extrativistas.
De acordo com as conversas que tive com moradores do Distrito de Nazaré, iríamos precisar de uns 50 anos para recuperar as mortes dos animais, das árvores, dentre outras vidas que se perderam durante a inundação de 2014. Na avaliação das comunidades ribeirinhas, essa enchente foi causada pelas hidrelétricas construídas no nosso rio ancestral e que atravessaram nossas vidas.
Segundo dados do Serviço Geológico do Brasil, o nível do rio Madeira chegou a 19,69 metros em 2014, um recorde histórico, superando em mais de dois metros a máxima anteriormente aferida, de 17,44 metros. As empresas que construíram as hidrelétricas que barraram o rio – Jirau Energia e Santo Antônio Energia – não assumiram responsabilidade pelas tragédias causadas pela enchente, atribuindo-a às chuvas em nível recorde nas cabeceiras do rio Madeira.
Agabawe (Iremar)
Dona Raimunda Nogueira e sua filha Marina Gomes, perderam tudo na inundação de 2014 quando moravam em Calama, comunidade do rio Madeira. Até hoje não receberam indenização das empresas responsáveis pelas hidrelétricas
Além dos prejuízos relacionados à destruição de bens pessoais, animais e plantações, outro efeito da enchente de 2014 para as comunidades ribeirinhas do Baixo Madeira foi a perda de equipamentos públicos. Escolas e postos de saúde destruídos não foram recuperados em algumas comunidades. É o caso de Maravilha, derivada de antigo seringal estabelecido sobre território Mura. Lá, havia escola e posto de saúde, que, durante as inundações, foram destruídos.
Os atendimentos nunca mais foram restabelecidos: os ribeirinhos passaram a ser atendidos em uma vila construída para remanejar um bairro do lado oposto do rio, afetado por um porto graneleiro de soja. Mas, os moradores de Maravilha dizem que é muito difícil chegar a essa nova vila, principalmente para quem não tem transporte próprio. Durante a pandemia, eles relatam ter se mantido vivos com os remédios tradicionais da floresta, sem nenhum atendimento público.
Quando perguntamos para essas pessoas se, nessa situação de 2014, tiveram alguma ajuda do governo ou das empresas das hidrelétricas, elas revelam que não tiveram nenhum retorno do que perderam. E as perdas foram grandes: muita gente perdeu tudo que tinha e não teve apoio governamental para recuperar nada.
No caso da dona Nair, ela diz assim: “Vieram nada! O governo ainda mandava uma cesta básica, uma água, era o que traziam”. Ela conta que chegou a contrair malária e ficou muito mal: “Eu tava pra morrer com malária. Fui pra Porto Velho, a mulher pensou que eu ia até morrer na farmácia”.
No tempo da inundação de 2014, muitos moradores do Baixo Madeira perderam seus roçados, e uma das consequências disso foi o posterior envolvimento de famílias das comunidades com a mineração. “Perdemos abacate, outras coisas, jaca… Cupuaçu dava demais, aí acabou tudo, não escapou nada! Ficou só um pé que não dá nada”, relata dona Nair. “E, se plantar uma planta depois desse alagamento, eu não sei se é por causa da areia, sei que o que dá bem é a mandioca e a macaxeira; mas, das outras, você planta, quando dá fé, ela morre. Não conseguimos recuperar nada depois da inundação”.
Nair conta que os ribeirinhos ouviam rumores, à época, de que receberiam indenizações por conta da perda das plantações. “Diz que iam indenizar tudo pra gente fazer as casas da gente. Até hoje não apareceu nada! Nada! Bem verdade, veio. Veio juiz pra pegar o nome da gente, a foto, fazer perícia, mas não apareceu nada”, narra. A anciã explica que o que houve de recuperação foi por conta dos próprios ribeirinhos: “Saiu do bolso da gente fazer alguma coisinha, né?”.
Agabawe (Iremar)
Enchente em 2014 afetou povos indígenas e populações tradicionais na Bolívia e no Brasil, que perderam casas, pertences, equipamentos públicos e plantações
A construção das hidrelétricas no rio Madeira, iniciada no ano de 2008 – após um processo de licenciamento ambiental cheio de contestações por parte da sociedade civil, pesquisadores independentes, Ministério Público Federal –, aparece como marco divisor na vida das pessoas com quem conversei no Baixo Madeira. Todas elas falam da perda de qualidade de vida, destruição dos roçados, decadência da educação escolar, da saúde, da contaminação e falta de água potável e, o mais irônico de tudo, a falta de uma energia elétrica de qualidade. Poucos quilômetros rio abaixo das duas grandes hidrelétricas, com potência instalada de mais 7.300 megawatts, as populações tradicionais e os povos indígenas que vivem às margens do rio não têm acesso à energia elétrica. As comunidades utilizam, até hoje, geradores abastecidos com óleo diesel.
Quando visitamos Raimundo Junior, liderança da comunidade de Bonfim (parte do distrito de Nazaré), ele estava trabalhando na construção da sua nova casa. “Antes dessa enchente que deu, dessa hidrelétrica que fez esse estrago todo, era muito bonito aqui, tudo era paisagem, tudo era mata, a gente não derrubava. A gente preservava, aí veio essa enchente e acabou com tudo”.
Júnior calcula os prejuízos que teve em função da enchente de 2014: “Só eu perdi mais de seis mil pés de açaí. Banana, castanha. As caças! A gente ia lá, matava uma caça pra comer. Acabou tudo. A nossa fonte de renda era a agricultura, nós mexíamos com banana, açaí, a gente tirava pra vender também o cipó titica, borracha. Acabou! Não tem nada não, só mesmo o capoeirão aí. Agora que tá voltando de novo, mas o negócio de açaí, seringa, não tem mais. Os peixes que tinha lá no lago foram embora”.
Assim como dona Nair, Junior afirma que, após as perdas causadas pela inundação de 2014, não teve retorno de nada. Ele nos explica como foi que pessoas como ele passaram, então, a se dedicar ao garimpo após as perdas: “Antes a gente vivia da agricultura, agora a gente precisa trabalhar no garimpo. Antes não tinha essa prática de garimpo aqui”.
Mesmo com os altos e baixos dos preços dos combustíveis e da própria cotação do ouro, ele explica que o garimpo se firmou nos últimos anos entre os ribeirinhos. “Se você não trabalhar, não come, tá entendendo? O diesel tu tá vendo a altura, né, e o ouro baixou. E aí é assim, o cabra vai vivendo. Faz aqui, trabalha ali, ganha ali, perde ali, é assim”, relata. “Nos vimos obrigados a ir para o garimpo, com certeza. Foi onde nós recuperamos alguma coisa que perdemos”. Para Junior, trata-se de um “garimpo familiar”: “É da onde a gente sustenta a família, né?”.
A liderança comunitária reforça a impressão de que, desde o início da operação das hidrelétricas, a qualidade de vida só piorou na região: “Tinha lancha [no posto de saúde] ali em Nazaré. Tinha posto de saúde aí. Remédio. Agora não tem nada. Da hidrelétrica pra cá, fez só piorar”, lamenta. “Para eles é bom, que estão mandando energia adoidado pros estrangeiros. Mas pra nós mesmo, essa energia aqui… A gente paga aqui é cento e poucos reais, rapaz! E se tu fizer um miau aí, no outro dia, eles vão te prender.”
Agabawe (Iremar)
Raimundo Junior, que vivia da agricultura até a enchente em 2014, hoje dedica-se ao garimpo. “Se você não trabalhar, não come”, diz Novos projetos de morte
Quem arca com a responsabilidade de duas barragens no rio e todos os problemas decorrentes? “Cadê os direitos humanos? Nós não somos humanos?”: essa pergunta era feita por nossa parenta Neuzete, que antes tinha orgulho de ser ribeirinha, e nas nossas últimas conversas me falou que sua avó era do povo Parintintim. Ela não negociou com as hidrelétricas e, mesmo depois que derrubaram sua casa, continuou lutando. Foi a última que saiu da comunidade Trata Sério. Depois disso, não foi mais feliz, não se adaptou às margens do rio das Garças, sentia falta do seu Madeira e das relações de parentesco às margens do rio grande. No início de 2020, veio a óbito sem ver seus direitos minimamente indenizados.
Navegando nessas águas do rio Iruri, encontramos grandes mestras e mestres conhecedores da vida, que estão percebendo as intensas mudanças dos últimos anos por meio de suas experiências, ao interpretar os movimentos dos pássaros, pela alteração da cor da água, dos sinais que marcam tempo de plantar e colher, do tempo das águas brancas entrarem nas águas pretas, do tempo das águas baixas e altas. Abismam-se com a alteração de toda a nossa temporalidade, pois tudo está acontecendo fora do seu tempo; agora tentam controlar o rio e as nossas vidas com duas barragens, com o abrir e fechar de comportas.
Como se não bastasse, ainda querem nos empurrar, goela abaixo, mais duas hidrelétricas: uma binacional, na Cachoeira do Ribeirão, na fronteira entre Brasil e Bolívia, e outra no rio Machado, afluente do rio Madeira, atingindo a comunidade tradicional de Tabajara. Mas, como o rio, vamos resistindo, apesar de todos os projetos de morte, chamados de projetos “desenvolvimentistas”. Foi por esse motivo que, na segunda etapa de entrevistas, em agosto, fomos até a comunidade de Demarcação, no rio Machado, atingida pela inundação de 2014 e que sofre com a escassez de peixes.
No caminho pelas águas do rio Preto e depois do Machado, o jovem piloto, muito experiente, conduzia atento a embarcação, pois algumas partes do rio estavam muito rasas, já que era época de seca. No deslocamento, vimos grandes áreas desmatadas até nas beiradas do rio; em alguns lugares ainda há árvores, mas, a poucos metros da margem, estão devorando tudo. Ir a esses lugares faz com que nos sintamos devorados vivos.
Agabawe (Iremar)
Lago Jamari, com acesso ao rio Machado, com desmatamento em suas margens, já apresenta os efeitos das hidrelétricas na região do rio Madeira
Apesar de tudo isso, nos deparamos com pessoas como Zé Bob, um senhor de muita sabedoria. Mesmo que ele não se veja como tal, é um pajé, conhece a medicina da floresta. Recebeu por meio de sonho uma pedra que seu guardião espiritual lhe entregou e, desde então, passou a receber o dom de rezar para as pessoas e preparar medicinas, conhecidas como garrafadas. Eu e outras pessoas da equipe de trabalho recebemos seus rezos. Ele falou de suas preocupações com a ameaça da construção da hidrelétrica de Tabajara – diga-se de passagem, deveria ser considerado um crime colocar o nome de um povo indígena num empreendimento como esse.
Agabawe (Iremar)
Zé Bob, sabedor tradicional da comunidade Demarcação, luta pela preservação do território tradicional
Demarcação também é antigo território indígena, onde um seringal foi estabelecido em sobreposição. Desde que se iniciaram as pressões para a construção da hidrelétrica de Tabajara, uma das coisas que me preocupam são os parentes livres, denominados pela Funai de “isolados”. Pessoas mais velhas do Baixo Madeira dizem que já os viram quando iam caçar, pescar, ou fazer alguma atividade extrativista adentrando mais a floresta.
Encontramos Antônio Lacerda, um senhor de 64 anos que há 50 vive em Demarcação. Ele veio da região conhecida como Kapanã Grande, às margens do rio Madeira, entre Manicoré e Humaitá, municípios do Amazonas, onde ficava um dos antigos territórios dos Mura, marcado no mapa etno-histórico do etnólogo alemão Curt Nimuendaju, que ainda hoje se mantém como território mura. Antônio chegou a Demarcação com o pai maranhense e a mãe, filha de judeus, quando ainda tinha oito anos, para trabalhar no seringal. Ele conta que, quando criança, ainda viu os Mura que viviam de forma livre no Kapanã e apareciam nas proximidades das moradias das famílias seringueiras. A imagem que ele traz diz respeito ao tempo em que os espaços de seringais foram criados sobre os territórios mura, às margens do rio Madeira.
Ao chegar a Demarcação, onde vive até hoje com sua família, Antônio conta que teve contato com um indígena e sua família que viviam ali e já estavam inseridos no espaço do seringal, convivendo com os seringueiros – o homem se chamava Vermundo. Além desse contato, ele diz que também sabia da existência de um grupo “isolado” do qual só se viam sinais na mata.
Quando pergunto se ainda existe algum indígena isolado na região, ele responde com muita exatidão: “Tem, sim! A gente entra na mata e vê palha derrubada, quebrada, isso ai é estiva deles”, descreve. “Mas já faz muito tempo que a gente não vê: tipo um ano. Teve invasão de terra, acabou com tudo. Isso, num tempo atrás, era uma mata muito grande. Hoje em dia você não vê mais mata, não, só é campo de fazendeiro. Antes você não via onça, hoje em dia você vê onça na beira do barranco por não tem mais onde se esconder. Aí vem pra beira do rio”.
Ele fala, ainda, do abandono que a comunidade sofre em relação às políticas públicas. “É difícil, aqui é uma vila esquecida, não tem estrutura de nada. O que nós ainda temos de bom é essa luz aí, mas o resto… No colégio, num mês vem professor, nos outros cinco não vêm. No posto [de saúde], o atendimento é uma disgrama. É um sofrimento”, destaca.
Antônio conta que, na época, perdeu dois hectares de roça, bananal, pé de cupuzeiro, que era um bocado. A água matou roçado grande e muitas plantações. Ele e Dona Maria, uma senhora negra de 66 anos que veio de Minas Gerais e também mora por ali, disseram que, depois de 2020, não deu mais cheia grande. Outra preocupação das pessoas com quem conversamos é com o nível de seca do rio, o que também é uma alteração ambiental que se intensificou após as hidrelétricas, segundo elas. Eu mesma tenho percebido, nesses cinco anos que subo e desço esse rio com frequência. Vejo a dificuldade de navegar no rio no verão, por causa de seu baixo nível, e os vários bancos de areia que surgem em meio às águas nessa época. No inverno, quando o volume de água represada fica muito alto, as comportas das hidrelétricas são abertas, e junto vem o acúmulo de paus, que dificulta a passagem das embarcações.
As novas hidrelétricas previstas, além de afetar diretamente vários territórios indígenas, como os parentes Arara e Gavião em Ji-Paraná (a cerca de 370 km de Porto Velho), também podem impactar as famílias dos Mura, Apurinã e outras etnias inseridas nas comunidades ribeirinhas das margens dos rio Machado, Preto, Madeira e toda a sua bacia hidrográfica. Também podem afetar diretamente os parentes Tenharim e consequentemente outros povos indígenas no entorno, como os próprios Mura que vivem às margens dos rios Madeira e Itaparanã, no Amazonas, os Mura-Pirahã, os Jiahui e Parintintim, além de grupos livres que vivem cercados por invasores nessa região.
Juventude sequestrada
Marlon, um jovem Mura de 24 anos, conhecedor da floresta e das águas, mesmo novo carrega consigo os ensinamentos passados pelo avô e a mãe. Ainda assim, não se encontrou na educação formal e é mais um dos jovens que evadiram-se da escola em Nazaré. Embora se mantenha no trabalho com o roçado, a fabricação da farinha, o extrativismo, quando a situação econômica fica muito apertada, se arrisca no garimpo.
Marlon vê a atividade como um elemento que movimenta a economia nas comunidades: “Quem tem as suas tabernas vendeu bastante, e vende, quando o garimpo está [acontecendo]”, relata. Ainda assim, ele não deixa de reconhecer os danos causados pela atividade. “Vai destruindo, né? Trabalho lá porque é um modo de eu sobreviver, mas sei que ele prejudica muito a natureza, vai prejudicar o rio, o meio ambiente, quem sobrevive de peixe, vai prejudicar”, admite. “Às vezes a gente derrama um ‘azouguezinho’ [também conhecido por mercúrio], por ali, escapole, cai no rio.”
Além do mercúrio, ele detalha outros problemas. “Vai escavando, aí você chega em uma certa ponta onde tem uma ilha. Você vai cavar aquela ilha e ela vai cair, vai se acabar, aí já começa a prejudicar. Falam que a gente polui o rio também, derrama muito óleo”, descreve. “Tem o diesel, tem o azougue que prejudica os peixes, que a gente derrama ali, o peixe come, aí a gente vai e come esse peixe infectado. Eu vejo assim, não tem o garimpo, o mercúrio que polui? Mas é isso aí, fazer o quê? Se não trabalhasse no garimpo, estava trabalhando onde?”
Em função da recente operação policial ocorrida em outubro, ele conta que os garimpeiros “tiveram que sair” da região: “Ninguém sabia dessa operação mandada pelo governo”, relata. “Mandaram explodir nós na beira do rio. Já chegaram mandando sair e, se não saísse ia explodir”.
Ele afirma que, com a ação, os pequenos garimpeiros foram os mais prejudicados: “As mais explodidas foram as ‘balsinhas’, as dragas foram pouquinhas, dos ‘ricão’ não explodiram”. “Eles faturam muito mais, a gente não chega nem perto do que eles faturam. E os caras vêm mais em cima da gente, dos ribeirinhos mesmo”, protestou. Aos pequenos garimpeiros, segundo ele, restou fugir. “Quem podia sair fora, saía fora, deixava roupa, deixava tudo”, conta.
Deixo as palavras de Marlon Mura para encerrar esta reportagem. Ele, como tantos jovens, foi “sequestrado” pelo garimpo, pois não foram apresentadas outras possibilidades de vida a ele. Isso não justifica a prática do garimpo, pois, como bem demonstra sua fala, mais uma vez quem ficou prejudicado foi aquela pessoa que perdeu tudo com a inundação de 2014 e investiu na construção de uma “balsa familiar”, como dizem os moradores das comunidades ribeirinhas que trabalham no garimpo. Para voltarmos para Porto Velho, como não havia embarcação descendo o rio, subimos de barco e viajamos parte de uma puranga pituna (bonita noite) com uma lua cheia e muitas estrelas, até desembarcarmos em Humaitá, Amazonas. O barco seguiu viagem subindo o rio com destino a Manicoré, onde vivem muitos Mura, e nós pegamos uma lotação voltando via terrestre para Porto Velho, que renasceu Mura, para relembrar nosso território de memória.
Outros lados
Quase nove anos após a ocorrência das grandes cheias de 2014, com consequências que, como vimos na reportagem, ainda hoje impactam os ribeirinhos e indígenas do Baixo Madeira, a Justiça não decidiu em definitivo se haveria algum tipo de responsabilidade das usinas hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio quanto aos danos causados pelas enchentes.
Uma ação civil pública (ACP) movida pelo Ministério Público Federal segue em tramitação na Justiça Federal em Rondônia, solicitando que, em função das cheias, sejam refeitos os estudos de impacto ambiental relacionados às usinas (EIA/RIMA), eventualmente ampliando as áreas de influência direta previstas nesses documentos. Na decisão mais recente, de julho de 2022, o juiz Dimis da Costa Braga determinou nova perícia para determinar se o EIA/RIMA foi efetivamente refeito, conforme liminar anteriormente expedida no caso, e quais populações, conforme os novos estudos, deveriam ser incluídas ou não nos processos de indenização e realojamento.
A Santo Antônio Energia enviou nota à Agência Pública, apontando que “várias perícias contratadas” comprovaram que as enchentes de 2014 foram resultantes de elevados volumes de chuva observados no centro-norte da Bolívia e sudeste do Peru. Como a usina opera em um regime de “fio d’água”, a empresa explica que, na época das cheias, o reservatório simplesmente manteve seu nível estável.
A empresa também cita dois recentes processos, movidos individualmente por moradores da região afetados pelas cheias, em que, em decisões colegiadas, por maioria, o Tribunal de Justiça de Rondônia reconheceu que não há como estabelecer o vínculo causal entre a operação das usinas e as enchentes de 2014.
Já a Jirau Energia diz entender que, segundo o “entendimento dos órgãos reguladores”, não se configura “qualquer associação das referidas inundações com a existência dos empreendimentos hidrelétricos do rio Madeira”.
Veja abaixo a íntegra da nota da Jirau Energia
A cheia histórica ocorrida em 2014, conforme o entendimento dos órgãos reguladores, fiscalizadores e entidades técnicas especializadas como: ANA, CENSIPAM, CPRM, ONS entre outros, foi resultado de um evento meteorológico extremo ocorrido na bacia do rio Madeira.
Não se configurando qualquer associação das referidas inundações com a existência dos empreendimentos hidrelétricos do rio Madeira.
Veja abaixo a íntegra da nota da Santo Antônio Energia
A Hidrelétrica de Santo Antônio opera sob o regime fio d´água, por meio do qual o volume de água que chega à usina (vazão afluente) é sempre o mesmo liberado ao passar pela barragem (vazão defluente). Ou seja, não há represamento adicional do curso do rio em sua operação.
Nesse sentido, várias perícias contratadas pela Santo Antônio Energia comprovam que pelos dados pluviométricos as inundações ocorridas ao longo do rio Madeira em 2014 foram resultantes de elevados volumes de chuva observados no centro-norte da Bolívia e sudeste do Peru.
Durante o período da cheia de 2014, o reservatório da hidrelétrica manteve o nível estável, o que significa que usina liberou o volume de água recebido, sem influenciar diretamente nas consequências decorrentes das fortes chuvas registradas nos afluentes do rio Madeira nos países vizinhos.
Este é, inclusive, o posicionamento majoritário do Poder Judiciário de Rondônia após analisar demandas que tentavam responsabilizar a operação da usina após as inundações de 2014. As decisões judiciais apontaram que a “enchente fora ocasionada por fenômeno natural”.
Decisões:
Tribunal de Justiça de Rondônia – Processo nº 7041819-44.2016.822.0001. Acórdão: Desembargador Raduan Miguel Filho. Data de julgamento: 11/07/2019
Tribunal de Justiça de Rondônia – Processo nº 7045783-45.2016.822.0001. Acórdão: Desembargador Raduan Miguel Filho. Data de julgamento: 18/06/2019
Conheça a autora
Márcia Mura
Márcia Mura, ou Tanamak (nome dado por Namatuyky, o grande criador, recebido por meio do Pandé (pajé) no território Mura Itaparanã) significa “grande guerreira” e representa a atuação de luta em defesa dos territórios Mura e de outros parentes. Tanamak é escritora e educadora, além de doutora em História Social pela Universidade de São Paulo. Atua nas comunidades de contexto ribeirinho no processo de recuperação de memória do Povo Mura e de outros povos indígenas. Pratica a pedagogia da afirmação indígena nas instituições escolares e debaixo das árvores, seguindo o caminho das águas amazônicas e em outros lugares onde é convidada.
GAZETA SANTA CÂNDIDA, JORNAL QUE TEM O QUE FALAR
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