PROCESSO COMEÇOU: A TERRA SE ARREDONDA NOVAMENTE

Deve ser essa a tarefa nesses próximos anos de ‘rerredondização’: descobrir e entender as condições de possibilidade do discurso terraplanista. Do contrário, seguiremos vivendo no mundo onde os delirantes são aqueles que acreditam na lei da gravidade e nas leis de Newton

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Imagem: Nara Quental

Fulvio Cesar Garcia Severino*, Brasil Debate

A Terra, numa fantasia delirante de um mundo apartado da realidade compartilhada, foi planificada, de tal maneira, que serão necessários anos e esforços para que se “redondize” novamente. Se olharmos para o governo que [esperamos]deixe o palácio [interessantíssimo esse nome], perceberemos que, a despeito de seu caráter pedagógico, mostrando, na prática, os efeitos de um governo necropoliticamente fascista [redundância?], ele teve anuência de 49,1% [dos votos válidos]da população que votou, pouco mais de 58,2 milhões de pessoas. Talvez “anuência” seja uma palavra muito forte, mas não encontro outra.

Precisamos aprender algumas coisas com esses tempos de trevas planificadas, do contrário, seremos nós que fingiremos que a Terra é redonda. Fizeram-nos, incessante e exaustivamente, ter de provar a existência da realidade – perguntemos: qual realidade quisemos provar? Fizeram-nos, incessante e exaustivamente, ter de desmascarar a fantasia e o delírio [deles], mas e os nossos? Talvez tenhamos todos [nós e eles: sim, há uma polarização, mas ela é mais fluida do que provavelmente supomos], como estava dizendo, talvez tenhamos todos disputado, afinal, a força e o poder dos delírios, das fantasias e das realidades [como se houvesse diferença]… É disso, provavelmente, que precisamos doravante nos dar conta.

Podemos começar com a diferença entre “nós” e “eles”. Nós, em hipótese alguma, pressupõe uma unidade, da mesma forma que eles também não. Há muitos nós que pensam como eles e muitos eles que pensam como nós. Desses muitos nós, embora pensem como eles, agem como nós e lá do lado d’eles, isso também deve ter uma boa quantidade de verdade. É um pouco dessa fluidez [perigosa]que falava há pouco.

É notório e clichê que desde o golpe de 2016 [mais explicitamente]um tipo [do que “nós” chamariam de escória]passou a sentir-se livre e autorizado a cometer inúmeros tipos de atrocidades – discursivas e, com efeito, puderam praticar atos. Mas por que se sentiram livres? O que de fato os autorizou? “O que” não pressupõe uma coisa ou pouca coisa.

Aprendi com Michel Foucault que as coisas acontecem, os discursos são proferidos, os atos são executados simplesmente porque tiveram condições de possibilidade – “simplesmente” é menos simples do que parece. Deve ser essa a tarefa nesses próximos anos de “rerredondização”, descobrir e entender as condições de possibilidade, do contrário, se não fizermos esse exercício, seguiremos vivendo numa Terra plana, onde os delirantes são aqueles que acreditam na lei da gravidade e nas leis de Newton. Permitam-me um hipertexto, fui convidado a escrever um pequeno ensaio, em 2021, em uma revista científica de pouquíssimo impacto, acredito que ele possa ser útil para pensarmos um pouco o papel da ciência nesses eternamente curtos próximos anos.

Também poderíamos nos dedicar um pouco mais a compreender as redes sociais – é lá [ou aqui]que as condições de possibilidade se materializam como discursos, circulam e, com efeito, produzem ações concertadas e materializadas. Acredito que é no ambiente virtual – sobretudo nas redes sociais – que as pessoas se mostram como elas essencialmente não são. Se lerem o pequeno ensaio que escrevi, talvez entendam a aplicabilidade de um conceito que forjei, chamado “capital subjetivo”.

Preciso dele para dar continuidade e finalizar este texto. Digo lá resumidamente que capital subjetivo é “basicamente, o conjunto de vivências e experiências capazes de mobilizar, no sujeito ou indivíduo, a produção de desejos que implicam ambições (como perspectivas e projetos de futuro)”. Nesse conjunto, o futuro é sempre uma espécie de delírio, esforçamo-nos para que o nosso delírio seja concretizado e se torne realidade. Nada, a não ser o nosso capital subjetivo, torna condição de possibilidade [aparentemente individual]para que o futuro seja próximo de como planejamos. O futuro é o capital subjetivo materializado, que implica – para sua realização – condições materiais e psíquicas [uma depende quase sempre da outra].

Acredito que o que precisamos é acabar com a desigualdade de capital subjetivo. Não é uma tarefa fácil. Podemos começar pensando: que capital subjetivo tem acumulado – e qual a base material dele – boa parte das pessoas que deram anuência no voto a esse governo golpista e antidemocrático [e corrupto e genocida e misógino e racista e lgbtfóbico e belicoso e miliciano…]. Quem opera esse conjunto de características cuja engenharia promove a desigualdade de capital subjetivo?

Ah, esse tal de Mercado, onde ele fica nisso?

Contrastemos: para milhões de pessoas, o capital subjetivo se constitui em encontrar ossos para o almoço, quiçá para o jantar também – essa é a perspectiva de futuro: sobreviver a mais um dia. E muitos falam de “insegurança alimentar”, nome bonitinho para evitar falar FOME. Mas podemos começar pensando qual a base material do capital subjetivo de cada um de nós [aqui incluem-se “eles”], qual o capital subjetivo das instituições.

As redes sociais também produziram uma espécie de sloganismo; defendem-se inúmeras causas e as pessoas se mobilizam apenas por meio de slogans, enunciados curtos que as inserem socioafetivamente num grupo e no qual precisam manter consistente sua essência slorgânica [o slogan com aparência de orgânico]: nosso velho e [pouco]conhecido processo de subjetivação ou assujeitamento. É menos a causa do que aquilo que essencialmente não somos que importa. Com efeito, enquanto tornamo-nos essencialmente o que não somos – ou fomos enquanto tentávamos ser– , os slogans se tornam delírios e, devido à carência de capital subjetivo, o slogan toma o lugar do capital subjetivo e se torna perspectiva de futuro, cuja base material é o próprio delírio. Ou se torna uma revolta efusivamente passiva – e slorgânica– ou uma revolta eminente e iminentemente delirante, como os que se amontoavam e [ainda!] se amontoam em diversos locais para pedir [mais]um golpe – se é que é isso que pedem, se é que sabem que é isso que pedem, se é que [no fundo do poço do delírio]pedem, de fato, alguma coisa…

Dizem que, numa avalanche, a neve que escorre vai se tornando uma massa em forma de bola, vai se redondizando – pelo menos era assim que acontecia nos desenhos animados… Temos longos curtos anos pela frente antes que o futuro se torne um delírio quase infantil de soluções mágicas.

*Fulvio Cesar Garcia Severino é formado em Ciências Biológicas e Fisioterapia. Fez doutorado em Educação pela UFSCar com pesquisa sobre o corpo do ponto de vista discursivo- genealógico. Atua como fisioterapeuta clínico e estuda e pesquisa corpo, corporeidades, discurso, saúde, performatividades.

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