A CHINA E OS DESAFIOS PARA A GESTÃO HÍDRICA NA ATUALIDADE

O rápido crescimento chinês da última década veio acompanhado de um uso crescente de recursos naturais, a água é um dos mais importantes nesse contexto, para falar do tema entrevistamos o professor e economista Demian Castro que vem estudando o país asiático desde 2013

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Cidade de Xiamen na China. Foto: Charlotte/Pixabay

POR RODRIGO CHOINSKI

Odesenvolvimento chinês das últimas décadas colocou o país em um lugar destacado na economia mundial. Apresentando taxas altas de crescimento sustentadas ao longo de vários anos, a China alcançou em 2010 o segundo lugar dentre as maiores economias do mundo, considerando o Produto Interno Bruto (PIB), lugar em que se manteve desde então.

Isso significou um amplo desenvolvimento da agricultura, indústria e comércio, além de um rápido desenvolvimento urbano. Este crescimento refletiu num consumo cada vez maior de recursos. Nesse contexto a água aparece como um fator estratégico para a economia e também para a população.

A escassez de água é um problema mundial. Segundo um relatório das Nações Unidas, 46% da população mundial continuava sem acesso a saneamento adequado em 2020 enquanto 2,2 bilhões de pessoas não bebem água de fontes seguras.

A gestão desse recurso é um fator prioritário nesse contexto. Segundo o artigo “Economia Política da água na China e no Brasil” os recursos hídricos tendem a ser cada vez mais disputados como um recurso natural de grande valor comercial, assim como o petróleo. O artigo analisa os modelos e desafios para a gestão deste precioso recurso na China e Brasil.

Conversamos sobre este e outros temas com um dos coautores do estudo, o economista e professor do Departamento de Economia e do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da UFPR, Demian Castro.
À frente do Centro de Estudos Brasil-China, Castro tem se debruçado desde 2013 sobre aspectos geopolíticos e sociais relacionados ao país asiático. Foto: Marcos Solivan/Sucom-UFPR

Coordenador do Centro de Estudos Brasil-China, Castro tem se debruçado desde 2013 sobre os aspectos marcantes da ascensão do país asiático ao cenário das grandes potências e sua relação com o Brasil. Ele também estuda os aspectos geopolíticos da relação China-Estados Unidos, a economia chinesa, o Estado chinês e o seu sistema de seguridade social, além de aspectos da cultura chinesa, como a literatura e filosofia.

Quais são as principais conclusões que vocês tiveram no estudo sobre a gestão da água na China e no Brasil? O que significa pensar a economia política da água?

Por caminhos diferentes, Brasil e China, se defrontam na atualidade com problemas relacionados ao abastecimento de água. No caso do Brasil, cidades como São Paulo e Curitiba, apenas para citar dois exemplos, tiveram que adotar severas medidas de racionamento em razão de longos períodos de estiagem e quase esgotamento dos seus respectivos reservatórios. Esse problema convive com deficiências crônicas nas áreas de saneamento básico, poluição e contaminação e, não menos importante, um acesso extremamente desigual da população a estes serviços. Apesar de ser considerado um país superavitário em recursos hídricos, os eventos dos últimos anos têm revelado um preocupante paradoxo de “abundância e escassez”, tudo agravado por sinais eloquentes de mudanças climáticas.

No caso da China, a disponibilidade de recursos hídricos é desigualmente distribuída no seu território de mais de nove milhões de quilômetros quadrados, quase metade desse território é carente ou mal servido, obrigando desde tempos imemoriais a obras de transposição. Como citado no artigo, atualmente existem três pontos no rio Yiangtzé a partir dos quais foram construídos canais com mais de mil quilômetros de extensão, levando água para regiões carentes. As mudanças produtivas profundas, as elevadas taxas de crescimento e a acelerada urbanização tornaram ainda mais dramático o problema da disponibilidade hídrica.

Neste cenário de tensionamento colocado pelo sucesso econômico, cabe assinalar o grave problema da contaminação da água com metais pesados. Esta carência estrutural explica uma boa parte da estratégia externa da China guiada pela busca de fontes de recursos naturais e matérias primas. Em síntese, dois gigantes para os quais a soberania e a gestão dos recursos naturais, a água, são questões estratégicas que extrapolam meros cálculos financeiros ou falsas opções “público-privado”. Sob a ótica da geopolítica internacional, com acelerada mudança climática e forças produtivas autonomizadas, a água (como o petróleo) nos obrigam a pensar numa economia política.

Talvez, não estejamos muito longe de um tempo de disputas ferozes, entre grandes potências, pelo acesso aos recursos hídricos.

Quais são os desafios enfrentados pela China em relação à água e como tem sido abordado esse tema no país?

A China entende estrategicamente a necessidade de mudança do seu padrão de acumulação em direção a áreas com maior conteúdo tecnológico vis à vis a construção de uma “civilização ecológica”. Equilibrar as mudanças estruturais, crescimento econômico, urbanização e formação de mega metrópoles, aumento do poder de compra ainda incrivelmente baixo da sua enorme população, requer elevadas formas de planejamento e condições de resolução de conflitos. Neste quadro, a água constitui um bem necessariamente ligado às funções estatais, sua carência ou má qualidade tem o poder de implodir o tecido social. Por isso, a gestão hídrica tem vindo acompanhada por elevada capacidade de realização de investimentos e a construção de um complexo tecido institucional em condições de elaborar e executar políticas públicas.

E quanto ao Brasil?

O Brasil possui uma institucionalidade razoavelmente desenvolvida, especialmente a partir da Constituição de 1988, relativa à gestão democrática dos seus recursos hídricos em condições de acolher ativamente as demandas da sociedade civil. Por outro lado, ao longo dos anos foi se perdendo a capacidade de planejamento e realização de investimentos em infraestrutura e, tomou-se mais e mais a “parte pelo todo”, acreditando que arranjos financeiros “público- privado”, “parcerias”, “mais mercado”, etc., dariam conta de questões estratégicas. Falta de visão estratégica dos recursos naturais e energéticos pelo Governo Federal e boa parte dos estados e municípios, certamente não nos aproximam de uma boa navegação no século XXI.

A China investe muito no setor hídrico, especialmente em obras de transposição e represas, esse modelo é sustentável a longo prazo? Não chegará um limite em que se deverá pensar em uma perspectiva de economizar a água e um modelo mais ecologicamente sustentável? O que você pensa sobre isso?
Não é simples projetar no tempo a capacidade da China lidar com problemas econômicos, sociais e ambientais, especialmente, considerando que o cenário internacional encontra-se numa fase de tensão extrema que, certamente, tende a limitar as opções externas de qualquer país que venha a desafiar os poderes constituídos. Não há certeza quanto à capacidade de superar o estrangulamento estrutural no setor hídrico, no entanto, seu sistema de planejamento e capacidade de financiamento, a colocam em condições de evitar os piores cenários.

No artigo, vocês apontam uma diferença importante entre a gestão hídrica no Brasil e na China, com o Brasil adotando medidas formalmente democráticas enquanto a China mantém centrado no Estado. Quais os impactos dessa diferença e o que na sua opinião poderia ser adotado para melhorar a gestão hídrica em ambos modelos?

Em princípio, o caráter “democrático” do arranjo regulatório do setor hídrico não tem se traduzido numa efetiva resolução dos problemas no Brasil. A questão central, é entender a questão hídrica como uma questão estratégica, de Estado, ao qual cabe a função inescapável do planejamento e financiamento. Para além da questão ocidental da carência democrática chinesa, este país mostra que tendo um projeto nacional é possível construir o futuro.

O desenvolvimento da economia chinesa que observamos nas últimas décadas parece ser incomparável, poderia comentar a partir dos seus estudos quais foram os pontos principais para chegar a essas mudanças?

A China é um país territorial e demograficamente imenso com mais de 9 milhões de quilômetros quadrados e, também, mais de 1,3 bilhão de habitantes. Este caldeirão de experiências é longevo, entre quatro e cinco mil anos e, no século XX, em 1949, teve uma revolução vitoriosa que realizou uma reforma agrária definitiva, no sentido da expropriação da oligarquia agrária e, fundamental, “resolveu” a questão nacional, permitindo que essa enorme nave conseguisse enfrentar as pressões das grandes potências e, entre 1980 e os dias de hoje, levar adiante um processo de desenvolvimento das suas forças produtivas até atingir o topo do desenvolvimento industrial, como parte de um “projeto nacional” de longo prazo.

As reformas conduzidas pelo Estado, foram cruciais para “semear” a acumulação de capital em escalas incomparáveis. Elas partiram de uma leitura inteligente do cenário internacional que se abriu a partir da chamada era Reagan. A China aproveitou a relocalização mundial da indústria rumo à Ásia (Japão e tigres asiáticos). A abertura da sua extensa costa ao capital estrangeiro através das zonas especiais de exportação, a criação de um habitat de empresas multinacionais veio acompanhada de forte presença regulatória e produtiva estatal.

O Estado conduziu a estratégia com forte presença de empresas estatais e um sistema de crédito totalmente público, privilegiou os investimentos produtivos em infraestrutura, bens de capital e de consumo, mantendo fechado seu balanço de pagamento aos fluxos dos capitais especulativos internacionais. Seu projeto nacional transformou a China no epicentro da acumulação produtiva global.

Qual o papel do Estado chinês para estes resultados na economia?

Certamente central. O processo revolucionário chinês, a partir de 1949, permitiu a construção de um forte Estado, sob o partido comunista. Com pleno domínio das funções financeiras e de crédito e, um robusto conjunto de empresas estatais, este complexo arco de atividades foi conduzido e formatado através do planejamento estatal.

Quais as características que diferenciam a economia chinesa em comparação com as potências ocidentais e quanto aos países que não conseguem romper o ciclo do subdesenvolvimento?

A experiência chinesa refuta, de raiz, as ilusões construídas pelo neoliberalismo. Seu sucesso, em termos de desenvolvimento industrial, urbanização e redução de pobreza, nenhum país o alcançou depois dos anos setenta. Diferentemente do Japão, submetido a estagnação, as possibilidades de crescimento são muito amplas em decorrência do seu largo e profundo mercado interno. Política industrial ativa, controle sobre os instrumentos de crédito e um extenso número de empresas estatais em setores chaves da concorrência nacional e internacional, são alguns dos principais fatores a serem citados.

Muitos creditaram o sucesso chinês à mão de obra barata, poderia comentar sobre isso. É apenas um mito?
Trata-se de uma verdade parcial relativa a um período que já passou, efetivamente, na década dos oitenta, um dos grandes motivadores da atração de empresas estrangeiras foram os baixos custos do trabalho, essa foi a época da manufatura 1,99. Mas a China não ficou por aí, sua estratégia foi deslocar o pêndulo da acumulação em direção a setores com maior conteúdo tecnológico, o exame da composição da exportações chinesas mostra que, de fato, elas são cada vez mais dominadas por setores de maior conteúdo tecnológico. Mas, ainda a manufatura responde por uma parcela expressiva do emprego. De qualquer formar, os salários reais tem aumentado, fazendo com que a China não seja mais competitiva no atributo “mão de obra barata”, seus fundamentos hoje apontam para um fantástico desenvolvimento tecnológico.

A China tem mantido diversas parcerias com países africanos, isso não pode levar a algum tipo de armadilha de endividamento, como vimos na relação África e Europa Ocidental?
Não podemos esquecer que estamos tratando de relações entre espaços nacionais. A China não impõe o endividamento, ela encontra autoridades nacionais em condições de estabelecer ou negociar condicionalidades. No caso a armadilha principal não é do endividamento mas, como diria o mestre Celso Furtado, do subdesenvolvimento.

A China lançou um projeto ambicioso, que pretende estabelecer novas parcerias e ampliar a presença do país na economia mundial, conhecido como Nova Rota da Seda, como o professor vê esse projeto e quais os impactos dele para o futuro?

O Belt and Road Iniciative é um projeto extremamente ambicioso do governo chinês, especialmente orientado para a Eurásia. Certamente o acirramento dos conflitos e a postura dos EUA, tende a jogar obstáculos à iniciativa. Claramente, os EUA farão todo o possível para destruir as ambições internacionalistas chinesas. Observe-se que a China propõe um tipo de relação econômica colaborativa que os EUA só praticaram no pós-Segunda Guerra Mundial com o plano Marshall, mas não estão mais dispostos a fazer isto: seu poder é exercido pelo caminho militar, guerras híbridas e, o que alguns analistas chamam de “dólar- bomba”. Dentro de uma nova espacialidade institucional sul-sul, iniciativas como a BRI e a dos BRICS, são opções estrategicamente importantes para países como Brasil e Argentina.

Como você caracterizaria as relações Brasil – China na atualidade?
O atual ciclo de governo tem sido nefasto em termo de relações exteriores e de política externa. Particularmente com a China, foi quase que vergonhoso o nível primitivo que prevaleceu. Neste sentido, os chineses, apoiados em sua longevidade, são capazes de esperar (e por muito tempo) a ocorrência de mudanças, mantendo a importância estratégica dos potenciais parceiros. É muito importante retomar a capacidade de implementar politicas multilaterais e aproveitar as múltiplas contradições do atual cenário internacional.

Chega até nós por vário meios e por diversos motivos uma diversidade de informações sobre a China que buscam desabonar o país, especialmente em relação ao trabalho, você poderia comentar um pouco o que acha disso?
Ninguém deve esperar muito das plataformas produtivas atuais, principalmente, no que se refere ao mundo do trabalho. O governo chinês está trabalhando firme para construir uma estrutura pública de salários indiretos na forma de uma seguridade social universal e de qualidade, os resultados na redução da pobreza extrema tem muito a ver, também, com isso. É muito mais recomendado assumir a enorme complexidade dos processos que ocorrem na China, do que cair em clichés desabonadores.

Como você avalia o tratamento que a mídia brasileira dá sobre esses temas? A imagem da China retratada pelo jornalismo brasileiro corresponde à realidade?
Esta pergunta é bem sensível, não apenas no Brasil mas em toda América Latina. Voltemos ao Brasil, infelizmente, como leitor obcecado por informações sinto que há muito tempo a mídia não se interessa em desvendar a realidade nacional e internacional. Seu apego ao neoliberalismo econômico vai na contramão do que muitos países capitalistas passaram a descobrir durante a pandemia: sim, é necessário acabar com o mantra da austeridade e injetar dinheiro na economia, nas pessoas, e manter sistemas de saúde públicos robustos. A mídia não se interessa em mostrar aspectos da vida, do dia a dia, da China.

Vimos que a China foi um dos países que teve melhores resultados no combate à pandemia de covid-19? O que na sua opinião trouxe esse impacto? Como a população encarou as medidas de restrição sanitária?

Todos os sanitaristas e epidemiologistas apontam que numa epidemia é necessário tomar medidas de controle extremo da população, similares a uma “economia de guerra”, para evitar a propagação do vírus. Neste sentido, esse aspecto explica a forma como o governo chines enfrentou a pandemia: não ouve vacilação quanto à decisão de realizar um lockdown. Ao mesmo tempo, rapidamente disponibilizou unidades de saúde para os mais diversos tipos de internação, incluídas UTI’s. Por outro lado, mesmo sentindo os impactos negativos decorrentes da paralisação econômica, buscou-se providenciar o sustento material da sociedade. Deve apontar-se, que em nenhum lugar do mundo a população aceita sem maiores problemas a restrição de movimentos. Os novos surtos registrados em Xanghai mostraram que a população não aceitava as medidas de isolamento. Finalmente, é possível dizer que, em geral, a população asiática é mais disciplinada que a ocidental e que, países como Cingapura, Coreia do Sul e Japão trilharam caminhos similares ao chinês.

Além de estudar o país, você também tem buscado conhecer a cultura chinesa. Na sua opinião, há relação entre este tema e o desenvolvimento chinês que temos visto nas últimas décadas?
Com certeza, o sucesso ou insucesso de um país em relações aos seus caminhos estão intimamente ligados ao legado cultural que pode explicar uma parte importante dos comportamentos sociais. Um sábio como Confúcio, de antes da era cristã, ainda é atual e permite explicar muitas das vicissitudes do mundo chinês.

O atual sistema político e econômico chinês nasceu numa época de grandes conflitos e são marcados pela vitória da revolução chinesa, que teve forte caráter anticolonial e nacionalista, além da defesa do socialismo. Como você enxerga o papel desse período nos desdobramentos que vemos na atualidade?
Creio que ao longo das últimas perguntas fomos jogando luz nestas questões, de qualquer forma, vale ressaltar, que a revolução permitiu exercer a soberania e desenvolver um projeto nacional de longo prazo. Os fundamentos socialistas possibilitam conectar a centralidade do partido com a necessidade de atender as demandas sociais. Isto, obviamente, não elimina a enormidade de conflitos que uma sociedade numerosa e envelhecida coloca no dia a dia, expressando as nuances de uma questão social em rápida mutação.

Desde a revolução é possível ver diferentes fases do desenvolvimento chinês? Na sua opinião este é um processo unitário ou houve mudanças significativas de orientação?
Houveram muitas mudanças de orientação e intensas lutas entre diversos grupos políticos. A partir de Deng Xiao Ping, houve uma drástica inflexão, no que para os incautos seria a derrota da revolução para o capitalismo, Deng enfrentou os radicais (que teriam levado a China a um desmoronamento como a URSS) e os conservadores, que o consideravam um traidor dos ideais maoístas e da revolução. Mas ele alertou que o socialismo não se sustentaria distribuindo pobreza, que era necessário aumentar a riqueza per capita. As inúmeras mudanças mostram, até agora, um processo de desenvolvimento com enorme capacidade de inovação institucional sem abandonar as diretrizes do projeto nacional.


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