CASAL DE CURITIBA QUE REVOLUCIONOU O CARRINHO DE CATADORES DE RECICLÁVEIS


Acir e Sol com um dos carrinhos: 50 kg mais leveImagem:
 Théo Marques/ UOL


Bruna Bronoski

Colaboração para o UOL, de Curitiba


Com uma máquina de solda e alguns martelos, Sol começa o percurso diário pela periferia de Curitiba. Um dia na Vila Guaíra, vários no Parolin, outros no Capão Raso e na Tiradentes. Chega também à região metropolitana: Colombo, Piraquara, São José dos Pinhais. Onde se concentra o maior número de catadores e cooperativas de material reciclável da cidade, lá está ela.

Solange Vieira dos Santos trabalha com o marido, Acir Pereira dos Santos, na produção de carrinhos para catadores. Além de produzirem vários deles, consertam os que andam pela cidade. "O meu corre é no mesmo dia que dá o problema. É carrinho que quebra, roda que entorta, batida de automóvel e eu preciso consertar. Sem carrinho, eles não rodam a cidade naquele dia, aí chega à noite e não têm o dinheiro do mercado", contou, na sexta (8), dia em que completou 57 anos.

Quando Sol, como é conhecida pelos catadores, e Acir completaram um ano de casados, corria o primeiro ano do terceiro mandato de Jaime Lerner (1937-2021) à frente da prefeitura de Curitiba. Era 1989 e o prefeito, arquiteto e urbanista, já era famoso por ter criado uma rede de transporte integrado na capital paranaense, com canaletas exclusivas para ônibus, sistema copiado por duas centenas de cidades ao redor do mundo.

Lerner também inovou na implantação de um calçadão no centro da cidade, o primeiro do país. A fama de capital ecológica é do seu tempo, pela criação de vários parques verdes. Mas foi um fracasso dessa gestão que fez Sol e Acir mudarem o percurso do lixo dos curitibanos.

O prefeito havia lançado um carrinho para os catadores circularem pela cidade. Mas, para virar outro sucesso da prefeitura, os idealizadores do projeto deveriam ter puxado um desse na subida paralela a uma canaleta, com outros 200 kg de material nas costas.

De ferro, o carrinho chegava a pesar entre 100 e 110 kg. "Vinha com uma chapa no fundo, 'chapona' grossa mesmo. A grade também era pesada. Ainda era baixo, media só 80 cm de altura", detalha Acir, que trabalhava fazendo frete de papelão com uma kombi entre a catedral da cidade, na Praça Tiradentes, até o depósito de uma cooperativa no Parolin, onde morava com Sol à época.

O Parolin é uma "periferia central" de Curitiba. Bem no centro do mapa, ao lado de bairros de classe média e alta, entre o bairro Água Verde e o Jardim Botânico, a vila carrega a marca de um dos menores Índices de Desenvolvimento Humano da cidade. Para catadores de recicláveis, é ponto estratégico: dá para rodar os bairros do entorno e ao fim do dia pesar o material e receber por ele ali mesmo, perto de casa.

Mas 110 kg na saída, sem contar os vários quilos de material a coletar, inviabiliza o trabalho. "Meu vizinho, Arão Machado, tinha um depósito de recicláveis no Parolin. A maior parte dos catadores que trabalhava para ele eram mulheres. Como elas iam puxar aquele peso? Foi aí que ele me pediu pra fazer um mais leve", conta Acir com a solda na mão, terminando outro carrinho 33 anos depois do primeiro pedido.

Acir Pereira dos Santos e a solda que mudou a realidade dos catadores em CuritibaImagem: Theo Marques/ UOL


Uma receita de sucesso nada secreta

Usando peças de ferro de menor espessura que os carrinhos da prefeitura de Curitiba, o piloto deu certo. A chapa do fundo foi trocada por um quadriculado de ferro com espessura de um quarto de polegada. Nas extremidades da estrutura do carrinho, como que fechando uma moldura, as cantoneiras o deixaram resistente. Ficou mais alto, o dobro da medida, e alcançou o maior objetivo: não passa de 60 kg na balança.

Acir conta a receita inteira. "Eu não escondo as medidas, não. Para mim, quanto mais gente souber fazer [o carrinho], mais gente vai ganhar um dinheirinho". O negócio bombou na década de 2000. Tem carrinho desta serralheria do estado de São Paulo ao Rio Grande do Sul.

"Algumas prefeituras e ONGs mandavam fazer de monte. Mandei para Sorocaba, Osório, litoral. Chegamos a mandar 100, 150 carrinhos numa encomenda", diz Sol, a responsável pela administração e vendas, enquanto o companheiro força os olhos na luz da solda.

O negócio se expandiu para toda a reciclagem. Hoje, fabricam mesas de triagem e a estrutura metálica dos barracões que recebem materiais recicláveis. Como a cidade ainda depende bastante do trabalho dos carrinheiros para separar o lixo que vai para o aterro do material que serve à indústria de recicláveis, a agenda de pedidos produz até um carrinho por dia.

Esses saem na cor que o cliente preferir. Verde, azul, vermelho, amarelo. "Até rosa, a mulherada pede. Elas pedem, eu pinto da cor que elas querem", Sol abre o sorriso.

Acir e Sol trabalham juntos há mais de 30 anosImagem: Theo Marques/ UOL

Garantia estendida

A vida não é fácil para o catador, conta Sol. "Esses dias eu fui fazer uma manutenção e vi a catadora grávida de sete meses. Perguntei se ela saía para a rua com aquele barrigão. Ela me disse: 'Eu saio, Sol, é com esse carrinho que eu sustento a minha família'. É assim, o catador sai na rua e olha tudo, ela pega tudo nas lixeiras, e no fim do dia tem um dinheiro para ir ao mercado comprar um pão e uma comida, para no outro dia sair de novo".

Por essas condições, os clientes da Sol não podem pagar muito dinheiro pelo produto que ela vende. Mesmo com peças recicladas, cada um sai por cerca de R$ 1.200. Cara para o catador, a compra só é possível porque cooperativas e depósitos de lixo reciclável adquirem os veículos para ceder aos profissionais. Prefeituras, secretarias do meio ambiente e pessoas aleatórias que queiram ajudar também podem tornar possível o sonho do carrinho próprio.

Com exceção do ferro e da câmara que são sempre novos, as demais peças são "garimpadas". "Nas oficinas que consertam máquina de lavar, eu consigo o rolamento do carrinho. Aí eu corro nas oficinas de moto, onde acho as rodas, aro 18. Se tiver meio torta, o Acir ajeita. E se a peça usada estiver cara, eu corro em outro fornecedor para manter o preço", explica Sol.

No dia do aniversário dela, um carrinho antigo chegou para ser consertado. "Esse foi feito em 2002, faz 20 anos que andam com esse carrinho. Eu olho, vejo se é nosso, e aí fazemos a manutenção". E conclui, rindo: "Eu conheço bem a solda do meu marido".

Mãe de cinco filhos, Sol conhece a necessidade das mães catadoras e se solidariza. "Esses dias eu fui soldar um metalon quadrado nos carrinhos das catadoras da Vila Tiradentes, para elas encaixarem a cadeirinha das crianças. Todo mundo que pediu, eu soldei. Agora é época de julho, férias, 15 dias em casa, e aí, como que faz? As mães saem com as crianças pra rua".

A serralheira da periferia curitibana tampouco tem a vida tranquila. Ela lembra de estar, por vezes, sem trabalho, e aparecer um carrinheiro à porta de casa, pedindo um conserto ou um carrinho novo. "Tem serviço que não tem como cobrar. Mas tem uns que me pagam, me dão R$ 50, e eu vou no mercado e supro a minha necessidade. Olha isso, que coisa linda".

Foi assim, nessa troca com os catadores, que Sol e Acir criaram os filhos, tendo formado três deles nas universidades curitibanas. "Eu gosto disso que a gente faz, eu faço com amor. Gosto de ver um catador prosperar", conta Sol.

O catador Antônio Ricardo Coelho de Assis, 45, não sabe, mas anda com um carrinho feito pelo casal, cedido pelo barracão onde ele trabalha diariamente.

"O carrinho tem que estar sempre nivelado, os pneus em dia, sem pintura dá ferrugem, tem que fazer a manutenção. É igual a gente, tem que estar em dia. O meu é levinho, é aro de moto", comenta sem saber que foi o casal do Parolin que deixou seus dias mais leves. "Esse é um serviço braçal, não é fácil. Mas é limpo, o dinheiro sai do meu suor", ele diz. Sol e Acir concordam.

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