CHICO BUARQUE DIZ QUE PAROU DE CANTAR MÚSICA APONTADA COMO MACHISTA

Com Açúcar, Com Afeto: Embora seja parte significativa de uma obra que se tornou clássica, Chico Buarque afirmou que canção já não fazia mais parte dos seus shows: "Vou sempre dar razão às feministas". Caso reacendeu debate sobre machismo nas músicas e dividiu opiniões

Foto de Chico Buarque via Shutterstock


Em um documentário recente no Globoplay, Chico Buarque afirmou que parou de cantar a canção ‘Com Açúcar, Com Afeto’ após mulheres apontarem que a letra apresentava conotação machista. “Vou sempre dar razão às feministas, mas elas precisam compreender que naquela época não existia, não passava pela cabeça da gente que isso era uma opressão, que a mulher não precisa ser tratada assim”, afirmou o cantor e compositor.

A declaração de Chico provocou polêmica, reacendeu o debate sobre machismo nas músicas e dividiu opiniões. Algumas pessoas elogiaram o cantor, enquanto outras o criticaram. Isso porque há quem considere a música como machista e quem a veja como uma denúncia contra o machismo. Há também quem ache a escolha do compositor um tipo de autocensura e quem a interprete como parte de um processo natural de revisitação a obras.

“A discussão sobre alterar, mexer ou parar de reproduzir obras é sempre muito complexa. Seja na música, no cinema, na literatura ou em qualquer arte”, diz Simone Pereira de Sá, especialista em cultura pop e música brasileira.

“Vários músicos já fizeram reparos em suas canções. Criolo deixou de usar a palavra ‘traveco’ em ‘Vasilhame’. Roberto Carlos não cantava ‘Quero que Vá Tudo pro Inferno’ por causa da palavra ‘inferno’. Tudo isso é legítimo. O grande problema é quando há uma pressão externa das redes sociais, da cultura do cancelamento.”

Segundo a pesquisadora, a declaração de Chico é fruto dessa onda canceladora das redes, porque surge de forma inesperada, já que não havia nenhum borbulho de críticas à canção —pelo menos, não recentemente.

A história de Com Açúcar, Com Afeto

Com Açúcar, Com Afeto foi composta em 1966 a pedido de Nara Leão, uma das mais expressivas figuras da bossa nova, mas que tentava se descolar do movimento buscando novas referências artísticas.

Após a vitória na segunda edição do Festival de Música Popular Brasileira com A Banda, escrita por um Chico Buarque de 22 anos, ainda estudante de arquitetura, a cantora capixaba encomendou ao novo parceiro musical uma composição para seu disco seguinte.

Nara queria uma canção dentro da tradição que hoje é definida como sofrência, em que alguém (na maioria das vezes uma mulher) padece por suas decepções amorosas e narra mágoas e desilusões na letra.

Para dar uma ideia do caminho imaginado para a música, a cantora indicou a Chico sambas antigos de Assis Valente, como Camisa Listrada, além de Ai! Que Saudade da Amélia, de Mário Lago, e temas de Ary Barroso que retratavam mulheres submissas infelizes. Todos, à época, já considerados pertencentes a uma “velha guarda”.

“A Nara deu uma receita muito direcionada para a ideia de Com Açúcar Com Afeto, quase uma receita de bolo. A Nara especificou que tipo de mulher ela queria que fosse a personagem da música”, diz Dimas Lamounier, que escreveu o livro Chico Com Todas as Letras. “E essa foi a primeira música do Chico com eu lírico feminino, algo que seria uma marca dele.”

As diferentes interpretações

Na entrevista para o documentário, Chico não especifica quais feministas fizeram as críticas sobre Com Açúcar, Com Afeto e quais fatores levam a concordar com elas. Nas redes sociais, mulheres vieram a público para dizer que se consideram feministas e, ao mesmo tempo, afirmam não ver na música uma defesa de um status quo de submissão feminina.

Linha de raciocínio semelhante está em trabalhos acadêmicos sobre a música, sempre analisada por ser o marco zero de um cancioneiro que valeu a Chico Buarque o hoje contestado título de “conhecedor da alma feminina”.

“A mulher de Com Açúcar, Com Afeto ainda está confinada a ser subserviente ao ‘seu’ homem. O que não significa que essa composição pregue ou vanglorie o machismo, pelo contrário, a produção de Chico pode ser entendida como um modelo de relação de gêneros a não ser seguido”, diz a dissertação de mestrado de Andreia dos Santos de Oliveira pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) de 2018.

Marcela Ulhôa Borges Magalhães, no artigo de 2009 A problemática do feminino na lírica de Chico Buarque, escreve que “o bom poeta não se vale da obra literária com a única finalidade de tecer críticas sociais”.

“Seria absolutamente inverossímil se uma voz que destoasse daquela do eu lírico de Com Açúcar, Com Afeto surgisse no texto para criticar a condição submissa e resignada da figura feminina.”

Para Maria Helena Sansão Fontes, professora aposentada da UERJ e autora do livro Masculino-Feminino em Chico Buarque, “o feminismo, com toda a razão, está no momento de rever algumas situações e dizer ‘não’. Eu, como mulher, comungo disso”.

“Agora, Com Açúcar, Com Afeto é de 1966. Naquele momento não havia essa visão do movimento feminista de agora. Nós já passamos por vários feminismos. Mas acho que o Chico estava à frente porque ele já tinha um entendimento da opressão sobre as mulheres”, afirma Sansão Fontes.

“Um Chico Buarque que tivesse surgido hoje seria diferente. Temos que considerar que é uma obra consolidada naquele período e tem que se levar em conta o contexto da época. E ele evoluiu, a cabeça dele evoluiu, mas continua a mesma coerência em termos de denúncia dessas questões.”

A cantora Fernanda Takai, que gravou a faixa em seu disco-tributo a Nara Leão, declarou nas redes sociais que não vai tirá-la do seu repertório. “Fiz a lista do meu novo show. Já tinha colocado Com Açúcar, Com Afeto e ela vai continuar. Adoro a canção, a história sobre como surgiu, muito bem escrita. Uma letra que dá voz a uma personagem. Um espaço bem delimitado na arte.”

A psicanalista Maria Rita Kehl, que há cinco anos já havia defendido Chico diante de acusações de machismo pela canção “Tua Cantiga”, afirma que “Com Açúcar, com Afeto” é uma música genial. “A letra é uma ironia. Não é o mesmo que ‘Ai que Saudades da Amélia’”, diz Kehl. “Não devemos ser tão sensíveis ao humor e à ironia. Senão, não há mais o trato poético. Eu não gostaria de viver com esse tipo de politicamente correto. E isso não quer dizer que defenda as incorreções políticas.”

Confira a LETRA:

Com açúcar, com afeto
Fiz seu doce predileto
Pra você parar em casa
Qual o quê
Com seu terno mais bonito
Você sai, não acredito

Quando diz que não se atrasa
Você diz que é um operário
Sai em busca do salário
Pra poder me sustentar
Qual o quê
No caminho da oficina
Há um bar em cada esquina
Pra você comemorar
Sei lá o quê

Sei que alguém vai sentar junto
Você vai puxar assunto
Discutindo futebol

E ficar olhando as saias
De quem vive pelas praias
Coloridas pelo sol

Vem a noite e mais um copo
Sei que alegre ma non troppo
Você vai querer cantar

Na caixinha um novo amigo
Vai bater um samba antigo
Pra você rememorar

Quando a noite enfim lhe cansa
Você vem feito criança
Pra chorar o meu perdão
Qual o quê
Diz pra eu não ficar sentida
Diz que vai mudar de vida
Pra agradar meu coração

E ao lhe ver assim cansado
Maltrapilho e maltratado
Como vou me aborrecer?
Qual o quê
Logo vou esquentar seu prato
Dou um beijo em seu retrato
E abro os meus braços pra você


GAZETA SANTA CÂNDIDA, JORNAL QUE TEM O QUE FALAR

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