FERNANDA MONTENEGRO É ELEITA PARA A ABL; VEJA OS BASTIDORES DA DISPUTA

Com 32 votos de 34 possíveis, Fernanda Montenegro foi eleita a mais nova imortal da Academia Brasileira de Letras. A atriz é apenas a nona mulher eleita para a ABL ao longo dos 124 anos de história da academia

Fernanda Montenegro (Divulgação)


via BBC Brasil

A atriz Fernanda Montenegro foi eleita na quinta-feira (4/11) a mais nova imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL).

Fernanda, que era a única concorrente à vaga, recebeu 32 votos. Aos 92 anos, ela será a primeira mulher a assumir a cadeira 17 e sucederá o diplomata Affonso Arinos de Melo Franco (1930-2020).

Os ocupantes anteriores foram o escritor Sílvio Romero, o poeta Osório Duque-Estrada, o antropólogo Roquette-Pinto, o crítico literário Álvaro Lins e o filólogo Antonio Houaiss.

“Fernanda Montenegro é um dos grandes ícones da cultura brasileira. Intelectual engajada e sensível leitora do real. Sua presença enriquece os laços profundos da Academia com as artes cênicas”, disse o presidente da ABL, Marco Lucchesi.

A atriz é apenas a nona mulher eleita para a ABL ao longo dos 124 anos de história da academia.

Antes de dela, tornaram-se imortais Rachel de Queiroz (1977), Dinah Silveira de Queiroz (1980), Lygia Fagundes Telles (1985), Nélida Piñon (1989), Zélia Gattai (2001), Ana Maria Machado (2003), Cleonice Berardinelli (2009) e Rosiska Darcy de Oliveira (2013).

“Posso estar enganada, mas acho que é inédito algo como o que está acontecendo agora, de ninguém concorrer com Fernanda Montenegro”, observa a acadêmica Ana Maria Machado, ocupante da cadeira 1 e presidente da instituição entre 2012 e 2013.

“Talvez seja um sinal de como ela se constitui num ícone cultural, embora seja uma atriz – a rigor um perfil algo insólito para a Casa de Machado de Assis. Dá ideia de seu valor simbólico hoje”.

Muito antes de Rachel de Queiroz (1910-2003) se tornar a primeira mulher a vestir o fardão de ramos de café bordados com fios de ouro, outras mulheres tentaram.

A primeira delas foi a jornalista Amélia de Freitas Beviláqua (1860-1946). Em 1930, escreveu uma carta ao então presidente da casa, Aloísio de Castro (1881-1959), propondo sua candidatura. Em vão.

Quarenta anos depois, Dinah Silveira de Queiroz (1911-1982) também cumpriu os protocolos da academia: entregou uma carta oficializando sua inscrição e disponibilizou suas obras para os acadêmicos. De nada adiantou. Um ano depois, tentou novamente. E, em 1979, mais uma vez. Só foi eleita em 1980.

“Historicamente, as candidaturas femininas foram não só reiteradamente condenadas e rejeitadas pela esmagadora maioria dos membros da academia, como sua proibição foi incorporada ao regimento interno da ABL em 1951”, afirma Michele Asmar Fanini, doutora em sociologia pela Universidade de São Paulo (USP) e autora da tese Fardos e Fardões: Mulheres na Academia Brasileira de Letras (1897-2003).

“A proibição regimental às candidaturas femininas vigorou até 1976. Em seus primeiros 80 anos de existência, tornar-se ‘imortal’ correspondia a uma prerrogativa exclusivamente masculina”. Hoje, apenas cinco dos 40 acadêmicos, o que corresponde a 12,5% do total, são do sexo feminino.

Em agosto de 2018, Conceição Evaristo bem que tentou, mas não conseguiu se eleger. Ela concorreu à cadeira 7, que pertenceu ao cineasta Nelson Pereira dos Santos (1928-2018), mas só obteve um voto. Cacá Diegues conquistou 22 votos e Pedro Corrêa do Lago, 11.

De nada adiantaram, entre outras iniciativas, o “tuitaço” usando a hashtag #ConceiçãoEvaristonaABL e uma petição online com 40 mil assinaturas. Se tivesse conseguido se eleger, Conceição seria a primeira mulher negra a se tornar uma imortal da ABL.

Vagas em disputa

Fundada em 20 de julho de 1897, a ABL sempre vira notícia quando um de seus membros morre e a cadeira que ocupava torna-se alvo da cobiça de aspirantes a “imortais”.

Atualmente, além da que será agora ocupada por Fernanda Montenegro, outras quatro são disputadas por 22 candidatos – há desde cantor e advogado até médico, economista e representante indígena.

E esse número não é maior porque dois pretendentes adiaram suas candidaturas: o jornalista Edney Silvestre e a professora universitária Raquel Naveira.

“Quero muito representar meu estado, o Mato Grosso do Sul, mas, por motivos pessoais, deixei para uma próxima oportunidade”, justifica Naveira.

No dia 11, será escolhido o sucessor do jornalista Murilo Melo Filho (1928-2020). São três os pretendentes à cadeira 20: Gilberto Gil, Salgado Maranhão e Ricardo Daudt.

“Seguindo um certo protocolo informal, não pretendo falar sobre a campanha”, respondeu Maranhão, por e-mail. O atual presidente da ABL também declinou do convite. “Por tradição, presidentes não falam da eleição. É uma regra”, justificou Marco Lucchesi, por correio eletrônico.

No dia 18, a disputa será pela cadeira 12, que pertenceu ao crítico literário Alfredo Bosi (1936-2021). Mais três candidatos: Paulo Niemeyer, Joaquim Branco e Daniel Munduruku. “Sou um educador que escreve ou um escritor que educa”, define Munduruku.


“Sempre tive como meta dar visibilidade à temática dos povos indígenas para tentar aproximar nossos saberes dos saberes da cultura ocidental. Ambos têm uma riqueza muito grande e podem se ajudar a construir uma visão de sociedade capaz de estabelecer um caminho novo para o Brasil que queremos”.


Para Joaquim Branco, outro candidato à cadeira 12, a parte mais difícil da campanha é “advogar em causa própria”. “Como alguém dizer que é merecedor disso ou daquilo?”, indaga. “Sei que sou um autor mineiro com 35 livros publicados e alguns prêmios literários no Brasil e no exterior. Escrevi, como de praxe, a cada acadêmico dando meus motivos e pretensões à vaga. Resta aguardar para ver”.

No dia 25, seis candidatos disputam a vaga deixada pelo advogado Marco Maciel (1940-2021). São eles: José Paulo Cavalcanti, Ricardo Cavaliere, Godofredo de Oliveira Neto, Luiz Coronel, Camilo Martins e Leandro Gouveia.

“Estar na Casa onde estiveram o autor de Brás Cubas e o de Grande Sertão: Veredas é uma honra para qualquer escritor. Conviver com intelectuais por quem tenho admiração e respeito, idem. E, de quebra, uma oportunidade para representar literariamente o estado de Santa Catarina”, afirma Oliveira Neto.


No caso de Ricardo Cavaliere, quem o estimulou a candidatar-se foi o acadêmico Evanildo Bechara. Perto de completar 94 anos, Bechara está preocupado com o futuro do setor de Filologia e Lexicografia da ABL. “Os estatutos da Academia conferem-lhe o dever de cultivar a língua e a literatura nacional. Trata-se de uma vocação que a Casa de Machado de Assis não pode olvidar em respeito à vontade de seu patrono maior. Creio poder contribuir para o cumprimento deste compromisso”.

Por último, mais dez nomes disputam o voto dos acadêmicos: Sérgio Bermudes, Gabriel Chalita, Eduardo Giannetti da Fonseca, Sâmia Macedo, Antônio Hélio da Silva, José Humberto da Silva, Eloi Angelos Ghio D’Aracosia, Jeff Thomas, José William Vavruk e Joana Rodrigues Alexandre Figueiredo.


A eleição será no dia 16 de dezembro e quem vencer ocupará a cadeira 2, do filósofo Tarcísio Padilha (1928-2021).

“A campanha por uma cadeira na Academia é árdua porque são muitos os pretendentes e poucos os lugares”, sintetiza Bermudes.


Ainda em dezembro, outra eleição: a do próximo presidente da ABL. O nome mais cotado para substituir Lucchesi é o do jornalista Merval Pereira. O ocupante da cadeira 31, se confirmado, será o 47º presidente da ABL. Quem ocupou o cargo por mais tempo foi Austregésilo de Athayde (1898-1993): 34 anos.
Como ocorre a votação

Cada um dos candidatos precisou enviar carta, telegrama ou e-mail ao atual presidente da instituição, Marco Lucchesi, no cargo desde 2018. Para ser eleito, o postulante precisa ter metade dos votos mais um. O voto, a propósito, é secreto e a sessão, híbrida.

Há acadêmicos que moram em outros Estados, como Lygia Fagundes Telles, em São Paulo, e países, caso de Paulo Coelho, na Suíça. No total, podem ser realizados até quatro escrutínios no mesmo dia. Se ninguém conquistar a maioria dos votos, a eleição é encerrada e tem início uma nova fase de inscrições. Terminada a contagem dos votos, as cédulas são queimadas.

Antes da pandemia, cada acadêmico podia receber até R$ 12 mil, considerando uma ajuda de custo mensal de R$ 3 mil, mais participação em duas reuniões semanais, uma às terças e outra às quintas, além de um bom plano de saúde. No chá das quintas-feiras, entre um gole e outro, histórias que mais parecem anedotas.

Como a vez em que Aurélio Buarque de Hollanda (1910-1989), vestido de fardão, apanhou às pressas um táxi e ouviu do motorista que se acalmasse: “Do jeito que o senhor está vestido, a cerimônia não vai começar enquanto o senhor não chegar”.

Segundo o artigo 2º do estatuto da ABL, “só podem ser membros efetivos da Academia os brasileiros que tenham, em qualquer dos gêneros de literatura, publicado obras de reconhecido mérito ou, fora desses gêneros, livro de valor literário”.

“Para ser candidato, duas condições são essenciais: ser brasileiro e ter escrito pelo menos um livro”, resume o acadêmico Arnaldo Niskier, o ocupante da cadeira número 18 e presidente da instituição entre 1998 e 1999. “Por causa disso, o teatrólogo Pedro Bloch (1914-2004) não pôde se candidatar. Era nascido na Ucrânia”.

Machado ressalva que “não há a menor pretensão ou obrigação de ler todos os livros de todos os aspirantes”. “Não precisamos ler todos os livros de todos os aspirantes a vagas para sabermos quem é quem. Levamos em conta outros aspectos. Como, por exemplo, a busca de um certo equilíbrio de saberes ou a possibilidade de um convívio ameno. Isso pode eventualmente dificultar a entrada de um rabugento notório ou de um briguento insuportável”.

Secchin afirma que “não há receita infalível” para ingressar na ABL. Até o ritual das visitas, pondera, deixou de ser norma. “A convivência entre nós é vitalícia e compulsória, até que a morte nos separe: não há divórcio na Academia”, diz.

“O ideal é que o postulante tenha algum convívio prévio com os acadêmicos, pois o voluntarismo quase sempre dá errado: alguém supor que tem de entrar simplesmente porque se considere merecedor, independente das circunstâncias. E elas são importantíssimas. Saber perder com elegância hoje pode ser trunfo para uma vitória amanhã”. Palavra de imortal.
Barrados na academia

A mais disputada eleição da história da ABL ocorreu no dia 21 de agosto de 2008. Dezenove inscritos, como Antônio Torres e Ziraldo Alves Pinto, disputaram a cadeira 23, que pertencia à escritora Zélia Gattai (1916-2008). O escolhido foi o jornalista Luiz Paulo Horta (1943-2013).

Uma curiosidade: quando Horta morreu, cinco anos depois, quem assumiu sua vaga foi Torres. “A ABL é uma das instituições culturais mais respeitadas do país. E fala de modo muito intenso ao imaginário da nação”, explica Ana Maria Machado.

“Celso Furtado (1920-2004) contava que os feirantes da rua onde ele morava se orgulhavam de dizer que ali residia um membro da ABL, como se nada mais do que ele fez na vida tivesse importância”.

Ingressar na ABL não é nada fácil. Muitos tentaram e não conseguiram. Monteiro Lobato (1882-1948) foi um deles. O mais importante nome da literatura infanto-juvenil brasileira tentou duas vezes: em 1922, perdeu para Eduardo Ramos (1854-1923) e, em 1926, para Adelmar Tavares (1888-1963), ambos juristas.

“A ABL é uma confraria. Consegue votos suficientes para entrar nessa confraria quem cumpre certos rituais de ‘beija-mão’ e se mostra afável e prestigioso o suficiente para ser aceito no ‘clube’. E isso tem pouquíssimo a ver com a qualidade da obra de quem entra ou não ali”, observa o jornalista e crítico literário Rodrigo Casarin.

Lima Barreto (1881-1922) é outro bom exemplo. O autor de Triste Fim de Policarpo Quaresma (1911) bateu à porta da ABL em três ocasiões. “Na última, desistiu”, conta a historiadora Lilia Moritz Schwarcz, autora de Lima Barreto – Triste Visionário (2017).


“Penso que Lima não tinha o ‘modelo moral e bem-comportado’ da academia”. Em compensação, o inventor Santos Dumont (1873-1932), o político Getúlio Vargas (1883-1954) e o empresário Assis Chateaubriand (1892-1968) conseguiram se eleger.

Em 1940, o poeta Manuel Bandeira (1886-1968) tentou ingressar na ABL. Como manda o protocolo, redigiu carta ao então presidente da casa, o historiador Celso Vieira (1878-1954), se declarando candidato à sucessão de Luiz Guimarães Filho (1878-1940).


Quando soube da decisão de Bandeira, Menotti Del Picchia (1892-1988) retirou sua candidatura. Com isso, sobrou, apenas, Oswald de Andrade (1890-1954). Contados os votos, Bandeira ganhou de lavada: 21 a um. Há controvérsia sobre quem teria votado em seu oponente: se Cassiano Ricardo (1895-1974) ou Guilherme de Almeida (1890-1969).

“Nesse ano, Oswald de Andrade chamou a academia de ‘asilo de impotentes'”, escreveu Daniel Piza (1970-2011) no livro Academia Brasileira de Letras – Histórias e Revelações (2003). “Certamente, sua pouca aceitação vinha de sua língua bipartida”.


Em 1980, outro poeta, Mário Quintana (1906-1994), também tentou a sorte. Encorajado pelo Prêmio Machado de Assis, que recebera um ano antes pelo conjunto da obra, anunciou sua candidatura à vaga aberta pela morte de Otávio de Faria (1908-1980).

Teria como concorrente o ex-ministro da Educação do governo Figueiredo, Eduardo Portella (1932-2017). Quintana, porém, não teve o mesmo êxito de Bandeira. Perdeu por 31 a 6. Abalado, deu entrada numa clínica de repouso em Porto Alegre.

“Quintana apresentou-se em ocasiões pouco propícias”, avalia o acadêmico Antônio Carlos Secchin, ocupante da cadeira 19, “desconsiderando que muitos acadêmicos, que certamente votariam nele em outro momento, não poderiam fazê-lo por já estarem previamente comprometidos”.

A ideia de “academizar notáveis” partiu de Joaquim Nabuco (1849-1910), um dos fundadores da ABL. Em 1898, ele sugeriu a Machado de Assis (1839-1908) o nome do Barão de Rio Branco (1845-1912), ministro das Relações Exteriores. Segundo relato do acadêmico Carlos Heitor Cony (1926-2018) no artigo A Academia e o Tempo Brasileiro, Machado hesitou, alegando que “o barão não tinha livro publicado”. Nabuco argumentou: “Rio Branco está escrevendo o mapa do Brasil”. E o barão tornou-se acadêmico.

Por outro lado, houve quem nunca sonhou em tomar o tradicional chá das quintas-feiras, com direito a bolo, suspiros e biscoitos, entre outros quitutes saborosos. Caso de Graciliano Ramos (1892-1953), Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) e Clarice Lispector (1920-1977).

Em Todas as Cartas (2020), a escritora ucraniana naturalizada brasileira admite, em bilhete escrito a Lygia Fagundes Telles, em novembro de 1977: “Quero dizer que, apesar do grande respeito que tenho pela Academia, eu jamais aceitaria entrar nela”. “A gente dá um espirro, já pensam que estamos morrendo e querem a nossa vaga”, completou a autora de A Paixão Segundo G.H. (1964).

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