PSICANÁLISE CONSIDERA O INSTAGRAM A REDE SOCIAL MAIS TÓXICA

Em um maremoto de entulho subjetivo misturado com pérolas de intimidade e algumas gotas de bom senso, a posição de sobrevivência encontra-se a perspectiva do próprio eu. Não é apenas a nossa imagem que vemos refletida no espelho do Instagram, mas a nossa não-imagem

Imagem: Getty


Christian Dunker, em seu blog

O advento das redes sociais abriu um espaço inédito para a pesquisa sobre o comportamento das pessoas. Aquilo que antes era produzido artificialmente pela seleção de públicos e grupos de comparação, criando aproximações e distorções muito criticadas começa a ficar parta trás.


A possibilidade de ter acesso a dados massivos em escala real, sem ter que criar, induzir e generalizar perfis, parece ter se combinado com a crescente suspeita de que as generalizações criam sujeitos tendencialmente homens, brancos, europeus, de classe média com orientações religiosas e ideológicas mais ou menos convergentes com a cultura de quem está no poder.


Isso trouxe um efeito novo para as instâncias de produção de conhecimento, tanto universitário quanto as próprias megacorporações digitais.

Resumidamente poderíamos colocar o problema da seguinte maneira: qual a consequência de saber?

Durante muito tempo a indústria de tabaco podia se esquivar dos malefícios causados pelo cigarro alegando que estes eram insabidos. Depois de certo ponto foi necessário comprar pesquisas e casos modelos que pudessem relativizar os dados médicos.

Finalmente vieram os processos e as consequências jurídicas, mas também os meios de reparar danos causados e oportunizar mais clareza naqueles que podem escolher agora, como maior grau de consequencialidade, fumar ou não fumar.

Nas indústrias clássicas o tempo protegia os infratores. Era preciso uma mudança de geração para que os que não sabiam dessem lugar aos que sabiam mas não queriam admitir e finalmente os que se viam obrigados a pagar a conta dos que vieram antes deles.

Isto está mudando de forma inédita com a indústria cultural digital que não pode alegar que não sabia, pois seu negócio é justamente saber.

Elas não precisam contratar pesquisadores externos ou pagar por pesquisas que mostrem uma tendência mais ou menos favorável, porque afinal eles manipulam as tendências.

O argumento de que ninguém pode saber como os algoritmos operam parece estar se esgotando no prazo bem menor do que uma geração. Pois sabendo ou não como eles operam podemos saber os seus efeitos.


Esse ponto de mutação parece ter sido alcançado já e ele se reflete em uma mudança de atitude de Mark Zuckerberg quanto ao modo de se relacionar com os efeitos políticos e sanitários de instrumentos como Facebook e Instagram.

Acabaram-se os pedidos de desculpas, as negociações em torno da filtragem de conteúdo e dar respostas menos conciliadoras em caso de crise.

Ao que tudo indica passamos da fase na qual “não sabemos o que estamos fazendo” para o momento “sabemos muito bem o que estamos fazendo e continuamos a fazê-lo mesmo assim“.

Além do aumento de quadros de ansiedade e depressão, 32% das mulheres sentem-se mal com a imagem corporal depois de usar o Instagram.

A declaração do Facebook é cristalina: “nós pioramos os problemas com a imagem do próprio corpo para 1 a cada 3 garotas adolescentes“.

Encobrindo isso há o que se pode chamar de a nuvem encobridora dos piores fatos.

Pesquisas com metodologias maquiadas podem facilmente produzir dados que comprovem ou desmintam que o impacto do Instagram em 12 áreas, incluindo solidão, ansiedade, tristeza e problemas alimentares, é nulo e que apenas no quesito “autoimagem” o resultado negativo pode despertar alguma preocupação em termos de saúde mental.

Ou seja, pode-se esconder uma evidência tanto pela falta de informações fidedignas como pela multidão de informes contraditórios.

Mesmo assim a versão para crianças do Instagram foi cancelada.

Tenho aqui algumas hipóteses sobre porque ela é considerada a rede mais tóxica que pode haver.

Ela funciona como um acelerador de imagens e representa uma grande encrenca para quem, como eu, funciona em estrutura de textos.

A velocidade de reposição e a aceleração das conclusões que se pode tirar de uma imagem dependem muito de aspectos indiretos como a forma, a luminosidade, o poder inspirador ou aversivo, tudo isso vivido de maneira a mais imediata possível

Ora, sobreviver a uma timeline de Instagram implica criar para si um ponto estável de observação, um ponto de vista capaz de resistir aos solavancos subjetivos pela alternância entre, por exemplo, um ursino de pelúcia fofinho e o corpo de uma criança morta no Mediterrâneo, um assaltante sendo morto pela polícia após perseguição vertiginosa. Notícias do lançamento do livro de seu amigo, depois de músicas, propagandas e anúncios liminares, intercalados por memes e trolagens.

A barreira entre o público e o privado é suspensa, assim como a fronteira entre o negócio e a opinião.

O litoral entre identidade e alteridade tende a se reduzir à polarização de afetos pouco matizados. Ou seja, diante de algo que nos inspira medo mas também certa curiosidade, certa repulsa que pode evoluir para a indignação, mas também para a piedade, tendemos a empacotar nossa partilha social de afetos naquele humor dominante no post ou … invertê-lo ao contrário.

Neste maremoto de entulho subjetivo misturado com pérolas de intimidade e algumas gotas de bom senso, a posição de sobrevivência encontra-se a perspectiva do próprio eu.

A descoberta renascentista das leis da perspectiva inspirou uma série de pinturas que combinavam perspectivas diferentes na mesma tela. Isso convidava o espectador a ver, por exemplo, as Bodas de Caná (1562-1563) ou a Batalha de Lepanto (1571) de Paolo Veronese, desde o ponto de vista do antagonismo terreno entre os humanos ou desde o ponto de vista celestial.

Mas isso não era efeito da sobreposição hierárquica entre duas cenas, mas da modulação do olhar de quem recebia a imagem. O efeito digital do Instagram realiza o contrário: ele mostra que há uma única perspectiva, em cada caso e em cada imagem, resultando no problema de saber qual é e quem a exprime com melhor propriedade.

Funcionando desta maneira, ela imprime uma certa deformação em nosso narcisismo.

Não é apenas a nossa imagem que vemos refletida no espelho do Instagram, mas a nossa não-imagem, ou seja, aquilo que confirma minha própria perspectiva sobre o que falta na imagem que me simboliza.

Esse efeito confirmador é conhecido dos clínicos. Ele é semelhante à autenticação da fantasia, pela agregação da massa de cliques confirmatórios. Cria-se assim um efeito de que o Outro reúne-se neste olhar como um grande tribunal, com o qual não se pode realmente dialogar, modular ou responder.

Cada volta do parafuso narcísico apenas afunda o já sabido em seu mesmo lugar. Isso faz mal às pessoas. Isso faz mais mal porque nossa consciência metodológica para transtornos psíquicos ainda não se aproximou do patamar em que nos sentimos seguros para interpretar a maneira como uma imagem é produzida.

Nos comportamos ainda como aqueles incautos ou mal-intencionados que afirmam: armas não matam pessoas, apenas pessoas matam pessoas.


Assim como há uma vida social dos objetos, que não se resume à forma mais conhecida do fetichismo, existe uma forma social da implicação e da responsabilidade para com o que se sabe.

Estamos entrando nesta fase e ela promete revelar o pior lado das novas indústrias digitais.


GAZETA SANTA CÂNDIDA, JORNAL QUE TEM O QUE FALAR

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