O PARADOXO DA DEMOCRACIA NA ÁFRICA

A África em democracia? Isso é um absurdo, pois hoje ela é dominada por ditadores sanguinários, que matam seu próprio povo, e não fosse o ocidente, este continente estaria pior (...)

Imagem: Pragmatismo Político


Lucien de Campos*, Pragmatismo Político

Você sabia que a África já vivia em democracia quando os europeus chegaram no Século XV?

O mundo ocidental conseguiu difundir uma imagem da África na qual consegue trazer-nos imediatamente pensamentos negativos quando a questão do continente africano é abordada. Logo vem em nossas cabeças imagens da pobreza, má governação, guerras, doenças e fome. No máximo conseguimos lembrar, também, de leões, girafas, animais selvagens e safáris. Os fatos verídicos e históricos, como a África sendo o berço da humanidade, são escondidos ou esquecidos devido à maioria dos noticiários que manipulam a mente daqueles conformados com o que escutam.

Foi assim que os Estados Unidos e a Europa conseguiram passar ao resto do mundo a imagem de que seus respectivos povos são os criadores da democracia, estabilidade e exemplo de governação global. Nos filmes hollywoodianos é visto quase que sempre uma África representada através da guerra, com guerrilheiros armados e comandados por um ditador vilão da história. Na Europa, muitos ainda exaltam a Era dos descobrimentos, afirmando que as Grandes Navegações contribuíram para o progresso civilizacional. Dizem ser os criadores da democracia, e por isso seriam imunes a todas as atrocidades que cometeram.

É claro que não deve-se retirar o mérito europeu na contribuição científica, ou até mesmo religiosa, que tiveram para a humanidade. Porém, é necessário também incluir outros continentes, como por exemplo a África, na lista dos principais contribuidores para a evolução humana. Não somente por serem o berço da humanidade, mas por serem responsáveis pelo desenvolvimento de vários aspectos que hoje são indispensáveis numa sociedade moderna. Nesse sentido, vamos focar somente em um aspecto, a democracia.

Soa esquisito para nossos ouvidos doutrinados pela visão ocidental ouvir dizer que os africanos já praticavam a democracia antes mesmo dos europeus chegarem no Séc. XV.

Os coxinhas devem estar se perguntando: mas o quê? A África em democracia? Isso é um absurdo, pois hoje ela é dominada por ditadores sanguinários, que matam seu próprio povo, e não fosse o ocidente, este continente estaria pior.

Pasmem-se, espantem-se, mas está comprovado que existiu um povo muito influente no norte da Angola, em que já praticava a democracia muito antes de haver o contato com os europeus. Este Estado era chamado de Kôngo, onde os próprios portugueses quando os conheceram apelidaram de “os gregos da África”. Foi um Estado criado e organizado por 12 chefes de 144 tribos africanas que elegeram através de um Grande Conselho (Lûmbu, na língua kikongo falada na época nesta região) seu primeiro líder chamado Nimi’a Lukeni.

Ao chegarem no norte da Angola, os portugueses encontraram uma sociedade organizada através de um aparelho institucional (o Lûmbu) que além de regular as eleições, atuava na esfera militar e na separação dos poderes executivo, religioso e judiciário. A escravidão não era uma questão social, mas sim jurídica, pois ninguém que pertencia ao povo kôngo poderia ser escravizado ou vendido. No entanto, os lusitanos não fizeram questão de perceber tal estrutura social deste povo. Apenas surpreenderam-se ao saber que o rei kôngo era eleito pelo povo e provocaram, assim, desordens e batalhas.

O historiador angolano Patrício Batsikama, autor de oito livros sobre este tema, relata que o Kôngo era estruturado por bairros e municípios com autonomia financeira e integridade territorial. A lealdade dos autarcas municipais para com o governador era indispensável, e a liberdade individual era o princípio vital do diálogo.

Esse povo também consegue dar uma lição de direitos humanos em muitos Estados modernos de hoje, pois os kôngos acreditavam que não fazia sentido um homem decretar a morte de outro homem, ou seja, não existia a pena de morte.

Dados indicam que este era um Estado muito populoso em relação aos padrões europeus e à realidade da época. Em 1513 acreditava-se que já existiam mais de 600 mil habitantes kôngos. Contudo, em 1665 houve uma grande batalha para expulsar os portugueses, mas sem grande sucesso. A dominação portuguesa foi inevitável, e todas as instituições políticas, religiosas e sociais do Kôngo ficaram fragilizadas e extintas com o tempo. Os kôngos, então, foram escravizados e levados para várias partes do mundo, inclusive para o Brasil.

Vale ressaltar que foram os descendentes deste povo que protagonizaram a Revolta de São Domingos (1791-1804) no Haiti. Sabe-se que o Haiti foi o único país que teve uma revolução de escravos bem-sucedida.

Diante disso, ao estudar a história das colonizações e analisar o envolvimento dos Estados europeus neste continente, nota-se que hoje cobra-se muito da África a democracia e o respeito aos direitos humanos. Mas quinhentos anos atrás foram ignorados todos os ensinamentos que a África poderia passar, como a própria democracia, e hoje os cobram pela falta dela.

Assim como na América do Sul, os europeus primeiramente exploraram a África, retirando as riquezas, exterminaram parte do povo nativo, retalharam o continente e construíram grandes impérios. E quando não conseguiram manter as colônias e calar os movimentos independentistas, decidiram deixá-las ao alento, eximindo-se dos problemas pós-independências. Apoiaram líderes totalitários e hoje pedem a democracia.

Porém, se estudar mais fundo, nota-se que os próprios africanos na época colonial estavam envolvidos na captura de escravos. Portanto, a culpa deve ser repartida entre as partes desde o início das colonizações. Sendo que atualmente os líderes africanos deveriam, também, ter mais vontade e coragem política para cumprir seus compromissos sociais. Qualquer tipo de totalitarismo e violação de direitos humanos deve ser condenado.

Antes de tudo, grande parte da mudança na África depende dos africanos. Talvez falte mais transparência por parte dos governantes em relação ao combate das desigualdades sociais e distribuição de riquezas, para que num futuro mais próximo haja uma maior participação ativa na vida política dos cidadãos africanos.

Já em relação ao Ocidente, devemos ter a consciência de todas as especificidades da África, respeitando suas particularidades para que consigamos dar um contributo importante para a estabilidade e boa governação africana. A Europa não deve, portanto, tratar os africanos com um sentimento de paternalismo, e cabe à nós não olharmos para este continente com um espírito de desprezo.

Somente com a ajuda de todos que o berço da humanidade se desenvolverá, assim como todos os cidadãos africanos deveriam ter maior consciência de que será essencial deixarem o lugar da plateia para preencherem o lugar de atores no desenvolvimento da África.

*Lucien de Campos é mestrando em Diplomacia e Relações Internacionais pela Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias – Lisboa e colaborador em Pragmatismo Político

Fonte:

http://www.pordentrodaafrica.com/cultura/o-kongo-vivia-em-democracia-quando-os-portugueses-chegaram-no-seculo-xv-diz-patricio-batsikama

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