A BORRACHARIA QUE VIROU BIBLIOTECA

A inusitada mistura de livros e pneus que atrai leitores e escolas em Minas Gerais



LÁ VEM HISTÓRIA Toda quarta-feira tem leitura de livros para alunos de escolas locais. 

Em Sabará, a 25 quilômetros de Belo Horizonte, a Borracharia do Joaquim sempre foi mais que um simples espaço para conserto de pneus. Todos os dias moradores locais passavam por lá para ler jornal e bater papo. Até que, em 2002, Marcos Túlio Damascena propôs ao pai a montagem de uma estante para ter à disposição alguns livros. "Eu queria trabalhar tendo por perto minha grande paixão, a literatura", lembra. Seis anos depois, os 70 exemplares iniciais viraram 7 mil, espalhados em diversas prateleiras entre pilhas de rodas e pneus. 

Na época, Marcos pediu a um amigo jornalista que publicasse um texto divulgando a iniciativa inusitada - e pedindo doações. "Quando li o material, vi a expressão Borrachalioteca. Foi uma surpresa que logo pegou." Na verdade, uma professora de Linguística torceu o nariz para o neologismo. "O correto seria borrachateca", argumentou. Mas todos acharam que o termo mais parecia uma coleção de borrachas e, como a ideia era mesmo representar a mistura de borracharia com biblioteca, a nota do jornal virou certidão de batismo, uai. 

No dia a dia, o barulho do compressor de ar não combina com o silêncio que se espera de uma biblioteca. Mas é preciso reconhecer que o trabalho voluntário tem papel fundamental num país como o nosso, em que o índice médio de leitura é de apenas 2 obras por ano por habitante. Por isso, a borrachalioteca é uma das 29 iniciativas apresentadas na edição especial Leitura, preparada por NOVA ESCOLA para incentivar esse hábito importante entre professores, alunos e a população em geral. 

Todo mês cerca de 120 pessoas levam para casa livros escritos por autores nacionais e estrangeiros, como Machado de Assis, Ziraldo e Mario Vargas Llosa. O sistema é simples: num caderno fica o primeiro nome do usuário com o título escolhido. No retorno, basta um o.k. ao lado. "Aqui é assim, sem sobrenome nem idade exata, tudo muito informal", diz Marcos.

Richard Marques tem apenas 8 anos e está entre os mais assíduos frequentadores. Segundo uma definição do próprio, gosta de ler "demais da conta". E é verdade: aparece por lá quase todos os dias em busca de novidades. Hélio, por sua vez, tem quase 70 anos, é caminhoneiro aposentado e também marca presença com frequência. Chega, senta-se, conta histórias. Às vezes mistura fatos vividos por ele com o que leu nos livros. 

Entre um pneu trocado e um livro emprestado, Marcos (que cursa o último ano de licenciatura em Letras) percebeu que precisava ampliar a oferta de serviços. Assim, convidou a mulher a contar histórias aos alunos das escolas das redondezas. Toda quarta-feira o lugar se enche de crianças.

A próxima iniciativa já tem nome: é a biblioteca comunitária Sala Son Salvador, num bairro de classe média baixa da cidade mineira. O nome é uma homenagem ao chargista homônimo, que promete estar presente na inauguração, agora em maio. "Eu não acredito nessa história de que brasileiro não gosta de ler. O que falta, na minha opinião, é acesso. É preciso deixar as pessoas tropeçarem nos livros." Como na borrachalioteca.

Fernanda Castro
REVISTA NOVA ESCOLA

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