A FARSA DOS COMBUSTÍVEIS FÓSSEIS

No atual cenário de emergência climática, não há lucratividade que justifique a continuidade de queima de carvão, petróleo e gás (Foto: BEN STANSALL / AFP)

A indústria do petróleo vem se apropriando do discurso ambiental para, com truques semânticos, manter seus interesses em primeiro plano

por Carlos Bocuhy

O Brasil está andando na contramão da história climática. A Agência Nacional do Petróleo (ANP) prevê investimento de R$ 18,31 bilhões para exploração de petróleo e gás entre 2024 e 2027. É preciso analisar o que isso representa no atual cenário de mudança do clima, com o planeta Terra engolfado por 428 ppm por m³ de carbono.

Qualquer estudo primário demonstra que, no atual cenário de emergência climática, não há lucratividade que justifique a continuidade de queima de carvão, petróleo e gás, além de emissões decorrentes da degradação do solo pela agricultura e pecuária.

Apesar da teimosia fóssil do Brasil, alçado recentemente ao grupo de observadores da Opep, o novo relatório da ONU destaca que as políticas climáticas atuais resultarão em um aumento de 3,1ºC até 2100.

O documento "Emissions Gap Report 2024" defende que os países devem usar a COP 29, que acontece no Azerbaijão entre os dias 11 e 22 de novembro, para garantir que as novas Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs, na sigla em inglês) busquem reduzir quase pela metade as emissões de gases de efeito estufa até 2030.

Ao analisar os planos de corte de carbono de 200 países, a ONU concluiu que as emissões globais provavelmente cairão apenas 2,6% até 2030, em relação a 2019. Para alcançar a meta de carbono líquido zero até 2050, a redução de emissões necessária até o fim da década deveria ser de 43%.

Antonio Guterrez, secretário-geral da ONU, atacou com veemência discursos vazios: “No mundo conturbado de hoje, a esperança não é suficiente. A esperança exige ação determinada e soluções multilaterais para a paz, a prosperidade compartilhada e um planeta próspero".

Além de manter a esperança, será preciso combater as más intenções e atitudes fraudulentas dos poluidores, que vêm se apropriando do discurso ambiental para, com truques semânticos, manter seus interesses em primeiro plano enquanto enganam a sociedade com a prática de greenwashing.

Em primeiro lugar, é preciso compreender a extensão das mudanças climáticas. Os impactos são evidentes e comprovados. Temos pela frente um horizonte de incerteza radical. A seca e o calor mergulharam o Brasil nos poluentes das queimadas, provocando, nas últimas semanas, 3,7 milhões de atendimentos nas Unidades Básicas de Saúde de todo o país.

O Brasil degradou, de janeiro a julho de 2024, 12.648 km² de vegetação, enquanto o desmatamento, por si só, foi de 4.315 km². A evolução é dramática, pois enquanto o desmatamento, segundo o governo, diminuiu 46%, a degradação aumentou 341,9%.

As emissões globais de dióxido de carbono (CO²) relacionado à energia cresceram 1,1% em 2023, aumentando 410 milhões de toneladas, para atingir um novo recorde de 37,4 bilhões de toneladas. Isso se compara a um aumento de 490 milhões de toneladas em 2022 (1,3%). As emissões do carvão representaram mais de 65% do aumento em 2023.

O Brasil cai duas vezes em tentação: as práticas ambiciosas de setores do agro e da pecuária em desmatar, e o velho mito do ouro negro, de se tornar um dos maiores produtores de petróleo e gás do mundo. Estamos prestes a entrar para um clube seleto das irmãs do petróleo (Oil Sisters), que não primaram pela ética nas últimas décadas.

É preciso atentar para a forma que se geriu a atividade econômica de extração de petróleo e gás em sua comunicação, por vezes semântica e fraudulenta.

Mais de 30 anos atrás, cientistas da ExxonMobil e de outras empresas de petróleo e gás norte-americanas perceberam que a percepção sobre mudanças climáticas deveria influenciar as decisões sobre a extração dos combustíveis fósseis.

Em vez de agir em defesa da sociedade, a resposta foi corporativa. A indústria se envolveu em uma campanha lobística de três décadas contra a ação climática. Suas táticas incluíam tudo, desde ciência falsificada até assédio de cientistas e incertezas fabricadas sem base científica, conforme informa a Union of Concerning Scientists.

Em primeiro lugar, as empresas planejam campanhas de greenwashing, com alegações enganosas ou totalmente falsas de seu desempenho ambiental, conforme comprovam as investigações do InfluenceMap, um think tank independente que produz dados e análises sobre como os negócios e as finanças estão provocando a crise climática.

Uma das falácias utilizadas para perpetuar o uso do petróleo é a suposta captura, uso e armazenamento de carbono (CCUS), que "desempenha um papel central no apoio à transição para um sistema de energia de baixo carbono". No entanto, um memorando interno de abril de 2016 revelou que esta prática na British Petroleum (BP) tem um propósito pouco ecológico, com o objetivo de que essa tecnologia "permita o uso total de combustíveis fósseis durante a transição energética e além".

A ciência é muito clara: o uso de combustíveis fósseis precisa diminuir significativa e rapidamente, segundo o mais recente relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU. "Mas o que vemos dessas empresas é – particularmente nos EUA e em associações industriais – um verdadeiro impulso para que o gás fóssil seja incluído e considerado uma solução 'verde' ou de baixo carbono”, afirma a reportagem da CNN.

Este é exatamente o ponto da transição energética erroneamente defendida para o Brasil, com o falso argumento de que vamos financiar desenvolvimento com extração e venda de petróleo – ou com a implantação de usinas termelétricas a gás, que encarecem as contas do consumidor e poluem muito devido a megaprojetos poluentes, como o que atualmente se pretende para a cidade de Caçapava, no vale do Paraíba do Sul, no Estado de São Paulo.

O greenwashing se revela continuamente: “Como a BP, a ExxonMobil apresenta captura e armazenamento de carbono em suas campanhas publicitárias. Os anúncios da ExxonMobil também mostram a pesquisa da empresa sobre a fabricação de biocombustíveis a partir de algas, outra tecnologia que não pode oferecer cortes acentuados nas emissões do aquecimento global no período crucial entre agora e 2030”.

Um dos pontos cruciais para entender a prática do greenwashing, além da teatralidade empresarial, são os truques semânticos. Segundo a BBC, usar palavras como "promessa", "objetivo" e "ambição" – ou esquemas de isca e troca com cenários teóricos que não representam planos de negócios reais.

As mensagens internas das empresas, divulgadas nas investigações, são reveladoras: a orientação interna de mensagens "Net Zero Emissions" (NZE) da Shell de janeiro de 2020 inclui os seguintes pontos:

Seja explícito ao definir a NZE como um objetivo para a sociedade.

Concentre-se na necessidade de descarbonizar a economia, e não apenas no sistema energético.

Por favor, não insinue, sugira ou deixe aberto para possíveis interpretações errôneas de que a NZE é um objetivo ou alvo da Shell.

A orientação adverte: "Por favor, não dê a impressão de que a Shell está disposta a reduzir as emissões de dióxido de carbono a níveis que não fazem sentido para os negócios", e observa que "exigirá um ato de equilíbrio cuidadoso e contínuo que transmita otimismo credível enquanto estabelece expectativas realistas de quão rápido a Shell e o sistema de energia podem mudar. "

Há um propósito claro para esses truques. Há muita sutileza na tática de mentir dos poluidores e que merece análise cuidadosa. Diante das queixas legais apresentadas nos Estados Unidos e em outras jurisdições, a Shell e os outros alvos da investigação do Congresso americano estão cientes dos riscos de litígio associados a fazer alegações enganosas a consumidores, investidores e ao público em geral. Portanto, esmeram-se na arte do bem mentir.

Mas também encontramos mentiras deslavadas. Quatro grandes empresas de petróleo e gás agora afirmam apoiar o acordo climático de Paris. O CEO da ExxonMobil, Darren Woods, afirmou que sua empresa "apoiou totalmente o Acordo de Paris desde o seu início". Mas só três anos depois, em 2018, a ExxonMobil e a Chevron aderiram à Oil and Gas Climate Initiative (OGCI).

As estratégias de greenwashing também têm sido reveladas pela área acadêmica, como em evento público na Universidade de Harvard: “Está bem documentado que a indústria do petróleo passou décadas tentando encobrir a ciência do clima e obscurecer seu papel no fomento das mudanças climáticas. Mas mesmo que as demandas para responsabilizá-la tenham chegado recentemente a um pico febril – com investigações do Congresso americano, ações judiciais de alto nível, filmes aclamados e campanhas ativistas –, a indústria enfrentou poucas consequências”.

Ainda há posições sindicais ligadas ao petróleo. É claro que a classe trabalhadora que depende do setor petróleo deverá defender seu pão de cada dia. A melhor forma de fazê-lo é exigindo que as empresas, incluindo a Petrobras, migrem para a energia limpa, garantindo qualidade de vida para seus filhos e a sociedade em geral, assim como a manutenção e empregos que se mantenham ao longo do tempo.

No atual contexto, bater na tecla de explorar a “oportunidade fóssil do Brasil” será voo de galinha. Resultará em imensa pegada ecológica, obrigatoriedade futura de reparação de danos e efeitos nocivos que permanecerão na atmosfera por centenas de anos.


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