A EXPERIÊNCIA URUGUAIA : OS VENTOS CIVILIZATÓRIOS DO SUL

Já viajei para quase todos os países da América do Sul, um dos poucos que faltava era o Uruguai. Há tempos tinha em mente que, na primeira oportunidade que tivesse, faria essa viagem, e com um resto de férias a tirar resolvi viver essa experiência: Descansar, desfrutar, e estudar mais sobre esse país que vem surpreendendo o mundo com suas políticas de vanguarda.

A linda e chiquérrima cidade de Punta del Este
Com a ajuda de alguns amigos estabeleci contatos para entender a política e também fui a campo para colher informações. A democracia uruguaia é bastante organizada e é tida como a mais aprofundada da América do Sul. Esse avanço começa com os partidos políticos do país: 

Existem partidos centenários como o Blanco (Nacional) e o Colorado , que são tidos como de direita; e do outro lado existe a chamada Frente Amplio, uma coligação com 13 partidos, de esquerda e de centro, oficializada em 1971. 

Essa frente possui instâncias de democracia interna baseadas na busca de consensos, com posições bastante claras, intensas discussões políticas e grande participação popular. Trata-se de um exemplo de aliança em torno de um programa, e não eleitoreira – como sempre ocorre no Brasil.


A população uruguaia é bastante politizada, vivendo num ambiente de baixa corrupção, preocupação especial deste país com o menor índice da América latina neste quesito.


As políticas de vanguarda desenvolvidas têm suas raízes fundadas no processo histórico de independência desse pequeno país sul-americano, passando pela obrigatoriedade de estudo, em 1950, e contemporaneamente o casamento igualitário, a descriminalização do aborto e a regulação do uso da marijuana, mais recente. 


Coincidentemente, a viagem se deu na mesma semana em que foi aprovada a polêmica lei da Cannabis[1]

 Nas ruas se percebe um clima de brincadeira e liberdade sobre esse assunto que é tabu para a maioria dos países, e que não mais se aplica ao Uruguai. Pude visualizar isso quando me deparei com um casal de meia idade perguntando, sorridente, em uma floricultura, se ali vendia a planta da maconha, e com tom bem-humorado o vendedor salientou: “ainda não!”.

Uruguai-033
Montevidéu (português brasileiro) ou Montevideu (português europeu) (em castelhano: Montevideo) é a capital e maior cidade do Uruguai. É também a sede administrativa do Mercosul, da ALADI e capital do departamento homônimo, o de menor extensão entre os dezenove existentes no país.
Localiza-se na zona sul do país, às margens do rio da Prata e é a cidade latino-americana com a maior qualidade de vida e se encontra entre as 30 cidades mais seguras do mundo.



Aproveitei a viagem, como disse, para conhecer o que está acontecendo nesse país que tem no presidente José Mujica uma figura emblemática. Conversei com alguns dirigentes partidários da Frente Amplio – base de sustentação governista – e também entrevistei os dois deputados que apresentaram o projeto sobre drogas no Uruguai, Sebastian Sabini e Julio Bango.

 A seguir, transcrevo trechos do material gravado para que se possa entender com mais propriedade como funciona a regulação da maconha, bem como a estrutura política do país.


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Eduardo: Quando começou o debate para legalização da maconha, da marijuana, e como foi o trâmite?

Deputado Julio Bango: O tema em si foi levantado por organizações sociais, seja de consumidores ou de organizações que lutam por direitos e lograram conseguir um primeiro projeto de lei que estava relacionado ao auto-cultivo, inclusive esse projeto foi apresentado por dois deputados da oposição. Porém, logo o Presidente Mujica pleiteou que buscássemos uma estratégia maior pela via da convivência com uma série de 15 medidas para redefinir a questão da segurança com um traço mais a esquerda.

 Essas 15 medidas tratam da regulação da cannabis, mas num aspecto mais amplo, que vai muito além do auto-cultivo. Então, o executivo mandou ao parlamento um projeto que tinha somente um artigo, uma fundamentação bastante densa, porém era somente um artigo. 

Não tratava como seria, como se faria, não dizia nada. Então começamos a trabalhar, sobretudo, com o Sebastian ( Sebastian Sabini, Deputado Federal) em construir um projeto que , respeitando o coração desse artigo do projeto do presidente, pudesse desenvolver não só os detalhes que serão frutos de um decreto de regulação, mas também marcar um caminho de como vai ser a questão. 

Dessa forma, apresentamos um projeto com 44 artigos e seguimos trabalhando por um ano e meio, até que saiu no último dia 10 (10/12/14) a aprovação; Aprovamos em 31/07 na câmara dos deputados, e em dezembro no senado e foi para a sanção. Foi um processo complexo de negociação dentro da esquerda, com alguns deputados mais receosos em aprová-lo. Finalmente, após muita negociação, pudemos aprovar o projeto. O processo não foi fácil.


Deputado Sebastian Sabini: Trata-se da legalização da venda, não só do cultivo. É a possibilidade dos usuários comprarem no sistema regulamentado. Desde que praticamente começamos a legislatura, este tema está sobre a mesa, desde 2010.


Eduardo: Primeiro, então, foi um deputado da oposição que falou obre auto-cultivo e aí foi se agregando. Em outros países já tem a descriminalização do uso, mas não regula como o usuário chegaria até o produto.


Deputado Sabini: No Uruguai o consumo de maconha nunca esteve penalizado. Inclusive na ditadura, em 1974, foi feito um decreto sobre drogas que não penaliza o consumo.


Eduardo: Porque em outros países, por exemplo, na  Holanda, você pode comprar nos coffee- shops mas não se diz da onde vem a maconha. Já aqui haveria todo um sistema, todo um controle.


Deputado Bango: Na verdade se sabe de onde vem, vem do narcotráfico, porque não está regulado o processo de toda a cadeia produtiva como aqui, que estará regulado desde a produção, a guarda, a distribuição, venda e uso. É muito mais complexo e completo


Deputado Bango: A diferença mais importante é que nós tentamos fazer uma regulamentação de todo o sistema produtivo. Desde a plantação, a distribuição, a venda, o consumo, a prevenção, a educação, e a reabilitação. Toda a cadeia que implica os aspectos produtivos, sanitários e educativos.

Eduardo: Você acredita que é uma questão de saúde publica o uso de drogas, e não tanto de polícia?

Deputado Bango: Claro! São três objetivos: um é de saúde pública como disse você, outro tem a ver com os direitos das pessoas, porque no Uruguai há 40 anos se podia consumir, porém não se podia fazer em condições legais para consumir, isso gerava um lugar cativo para o narcotráfico. 

Aos consumidores era permitido consumir marijuana, mas para fazê-lo tinham que comprar do narcotráfico, e aí vem o terceiro objetivo, criar um mercado alternativo ao narcotráfico, um mercado regulado e seguro que vai reduzir a probabilidade das pessoas terem contato com drogas mais duras e também é mais uma vez o objetivo da saúde. Esses são os três objetivos que perseguimos.

Eduardo: Na verdade é só para a marijuana, por enquanto. Mas se prevê algo para outras drogas, como está isso?

Deputado Sabini: Por agora não, vamos centrar na marijuana, que é a droga ilegal mais consumida, 8% da população. É uma substância que sabemos, que conhecemos os efeitos e que comparada com o tabaco e álcool não é mais perigosa. Então nós estamos seguros de que não é um salto vazio ou uma loucura.  Vamos tentar regular uma substancia que conhecemos os efeitos, que são similares ao álcool ou tabaco.


Deputado Bango: A princípio pensamos somente quanto a Cannabis que é a droga ilegal mais conhecida e menos danosa. Outras drogas seria outro debate. 

Eduardo: O debate no Brasil ainda tem muitos preconceitos, ainda está muito raso; você acha que é possível levar esse tipo de debate a países maiores como o Brasil, ou até um modelo global?

Deputado Sabini: Eu acho que todos os países deveriam tentar modificar, regular a política protecionista, porque a política protecionista gera um mercado negro, controlado pelo narcotráfico e logo os recursos vão para o crime organizado, para fomentar a ilicitude, como a compra de armas. Então o mercado negro de marijuana é um instrumento para fortalecimento do crime organizado. 

Por isso todos os países deveriam tentar modificar uma política que gera mais danos que os que queira resolver. Não são só problemas sanitários, de saúde dos usuários, mas também o crime, a violência. A repressão não está dando os resultados que nós esperávamos... você tem potencializado o tráfico e piorada a situação sanitária dos usuários. Então, afinal, todos os objetivos da velha política foram fracassados. 

Eduardo: E também tem a questão da guerra contra as drogas, É uma guerra que nunca tem fim.

Deputado Sabini: Os países que tentaram aprofundar a guerra agora têm uma situação política mais complicada que o princípio, com mais assassinatos, com mais violência, com fortalecimento militar do narcotráfico, e o problema não pára de crescer. É como uma bola de neve que vai crescendo com o tempo, e afinal, eu acho que uma política irracional, vendo as evidências dos resultados da política.

Eduardo: A população vai votar em um plebiscito em 2014, não?

Deputado Sabini: Não. A oposição falou em começar a juntar assinaturas para fazer um plebiscito, mas não sabemos se vão mesmo fazer isso.

Eduardo: Mas podem conseguir?

Deputado: Vão tentar. Aqui foi legalizada a despenalização do aborto no ano passado e eles não conseguiram colocar a lei abaixo.

Eduardo: A questão das conseqüências econômicas; Como você vê essa descriminalização para o Uruguai? Você acha que vai ter um impacto positivo?

Deputado Sabini: Nós vamos poder ter recursos que estão no mercado ilegal para poder fazer políticas de saúde, políticas de educação, e são recursos que terminariam no narcotráfico.

Eduardo: E tem outros recursos da própria maconha que podem ser usados, por exemplo, o uso das sementes, ou de sua fibra com a qual se faz camisetas e cordas, desde muito tempo. Tem algum estudo sobre isso?

Deputado Bango: Basicamente a lei define, regula, a possibilidade de uso da cannabis para quatro fins: investigações científicas, para uso medicinal, para produção industrial, o uso do cânhamo industrial e finalmente o consumo recreativo, que é somente o quarto fim.


Deputado Sabini: Nós vamos licenciar produtores que possam fazer todas essas atividades de forma legal, de forma regulada. É uma oportunidade econômica muito importante.

Eduardo: Como você vê a política Uruguaia, agora mudando um pouquinho de assunto. Você a considera aprofundada? Como que está o debate político? Porque o mundo inteiro, no Brasil inclusive, você vê uma crise de representatividade, em que as pessoas não se sentem mais tão representadas na política. Como você vê o Uruguai, isso é um pouco diferente aqui?

Deputado Sabini: O Uruguai tem um processo de a população ganhar direitos, acho que nós estamos trilhando caminhos importantes, com a redução da pobreza, o aumento do emprego, com uma melhora na infraestrutura, com mais acesso à saúde, acesso a moradia e a educação. Ainda nesse contexto temos o matrimônio igualitário, a despenalização do aborto, e agora temos a descriminalização da venda do cannabi.  

.É um contexto de avanço, com leis progressistas, então eu acho que a população está conforme com o nosso trabalho. Porque numa democracia deve haver respeito às minorias, as políticas públicas têm que respeitar as minorias, nós estamos trabalhando nesse sentido.

Eduardo: São políticas libertárias. E como é a participação da população na política? É obrigatório o voto?

Deputado Sabini: O voto é obrigatório, e nós temos uma alta taxa de participação, 95%, é umas das maiores votações da América latina, e temos uma população que tem muito apego aos partidos políticos, é um dos sistemas democráticos mais fortes da América Latina.


Eduardo: A prova disso é que a Frente Amplio está aí há quarenta anos. Uma última pergunta: Sobre essas políticas libertárias, que mensagem você passaria aos políticos e a sociedade brasileira?


Deputado Sabini: Eu acredito que os países têm que praticar essa discussão interna nos seus contextos. Nós uruguaios podemos fazer a discussão, mas não dizer o que os brasileiros devem fazer. 

Eduardo: Podem servir de exemplo?

Deputado Sabini: Sim, mas somente os brasileiros, com sua cultura, podem discutir e trabalhar para mudar.


Deputado Bango: Cada país deve prover um debate conforme sua realidade.


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Com um beijo na bochecha, cumprimento típico na região, me despedi dos deputados.


O Uruguai já é o país mais desenvolvido da América Latina, e caminha a passos largos para ser o primeiro país de primeiro mundo da América latina, tendo como importantes propulsores suas políticas libertárias.


A indústria de cannabis trará muitos recursos e ajudará a alavancar o PIB Uruguaio, não só pelos impostos, mas pelos subprodutos que poderão ser utilizados. 

Como exemplo, temos a fibra (para produção de tecidos com propriedades melhores que as do algodão no que respeita a absorção dos raios ultravioletas, resistência e absorção da umidade), a mesma fibra sendo utilizada para substituir o plástico (realidade em países como Alemanha, Canadá, França, Austrália e Estados Unidos) fibra que também pode ser utilizada como isolante térmico e sonoro (já aplicado pela BMW e Mercedes Benz em seus veículos), o papel (sendo a celulose de cânhamo um dos poucos polímeros naturais que a humanidade dispõe), a possibilidade de se fazer cordas (como já sabiam os fenícios, há mais de 2000 anos), e ainda o uso da semente do cânhamo, (único elemento do reino vegetal que combina os três tipos de ômega, fundamentais à saúde, além de possuir proporções interessantes de vitaminas B1, B2 e E).


Anseio que a experiência uruguaia sirva de exemplo para que o Brasil aprofunde o debate sobre as drogas, e traga à luz medidas mais racionais e humanas.


Os ventos civilizatórios estão soprando pelo mundo. Como ficará essa discussão em nosso país?



Eduardo Reiner: Auditor Fiscal do Trabalho, bacharel em Direito na UFPR, pós graduado em Direito Constitucional e em Direito do Trabalho, e coordenador do combate ao Trabalho Infantil no Paraná.
 ps: IMAGENS REFERÊNCIA E INDICAÇÃO - JORNAL GAZETA DO SANTA CÂNDIDA
GAZETA SANTA CÂNDIDA,
JORNAL QUE TEM O QUE FALAR

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