QUILOMBOLAS DENUNCIAM EXCLUSÃO DO ESPAÇO DE DECISÕES NA COP30

Comunidades contribuem para o combate à crise climática, mas faltam credenciais para representantes na conferência

Por Isabel Seta | Edição: Bruno Fonseca

A poucos dias do início da Conferência do Clima da ONU, a COP30, lideranças das comunidades quilombolas brasileiras ainda não têm acesso garantido à zona de negociação diplomática, ameaçando a participação efetiva e ampla no debate climático de um dos principais grupos que preservam a natureza no Brasil.

Centenas de quilombolas de diferentes partes do país estarão em Belém, capital do Pará, para a conferência, que começa no dia 10 de novembro. Eles vão participar de eventos na chamada zona verde, área de acesso livre destinada à sociedade civil, empresas e governos subnacionais. Os quilombolas também estarão na Cúpula dos Povos, evento paralelo à programação oficial, organizado por mais de mil organizações nacionais e internacionais.

Para a zona azul, porém, a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) possui menos de dez credenciais – número muito abaixo do garantido a outros grupos, como os povos indígenas, e baixo diante da quantidade de quilombolas no país e, especialmente, na Amazônia.

A zona azul é a área restrita às delegações dos quase 200 países que fazem parte da conferência, por isso, para acessá-la é preciso estar credenciado junto à uma delegação nacional. Tradicionalmente, o Brasil vai às COPs com uma delegação grande, que inclui não só os negociadores, mas também representantes de empresas e de organizações sociais, que acompanham as negociações e procuram sensibilizar os diplomatas para suas demandas. Como as credenciais são limitadas, elas costumam ser disputadas entre diferentes atores.

“Sabemos que o espaço da zona verde vai ser liberado, mas a gente precisa que o nosso povo esteja também na zona azul, que é o espaço das negociações”, disse Biko Rodrigues, coordenador nacional da Conaq, à Agência Pública.

“Esse número [de credenciais] é baixíssimo, perante as demandas dos quilombolas e perante a nossa importância não só para o bioma amazônico, mas para todos os biomas brasileiros”, afirmou ele, que é do quilombo Ivaporunduva, um dos mais antigos do país, no Vale do Ribeira, em São Paulo.
                                                                                       José Cícero/Agência Pública
Comunidades contribuem para o combate à crise climática, mas faltam credenciais para representantes na conferência

Áreas quilombolas preservam floresta

Um estudo inédito, lançado no final de outubro pelo Instituto Socioambiental (ISA) em parceria com a Conaq, mostrou que 92% das áreas dos territórios quilombolas na Amazônia Legal (formada pelos nove estados da região Norte, Mato Grosso e parte do Maranhão) é de florestas e vegetações nativas preservadas.

Desde 1985 até 2022, esses territórios perderam apenas 4,7% de sua vegetação original, enquanto as áreas privadas perderam 17%. Os territórios titulados perderam menos ainda: apenas 3,2%. Esses números colocam os quilombolas na liderança da preservação ambiental no Brasil, ao lado dos povos indígenas, e mostram a contribuição deles para o clima. Isso porque a vegetação em pé absorve dióxido de carbono (CO2), principal gás do efeito estufa. Quando ela é queimada para desmatar, esse gás é emitido para a atmosfera. Por isso, historicamente, a maior parte das emissões brasileiras foi causada pelo desmatamento, principalmente da floresta amazônica.

“É um índice [de manutenção da vegetação] muito bom no sentido da gente preservar, cuidar da floresta”, disse José Silvano, do território Bacabal, titulado em 1997 e localizado em Oriximiná, no Pará.

Apesar de ser da coordenação da Conaq e da direção da Malungu (Coordenação das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Pará), até esta quarta-feira (5 de novembro), Silvano ainda não tinha uma credencial para acessar a zona azul.

“E a gente precisa mostrar isso para o mundo, para as autoridades que pensam a questão climática, para que a gente possa garantir algum tipo de retorno do ponto de vista econômico e social para que a gente possa continuar preservando”, completou ele à Pública.

“Esses territórios não apenas conservam a biodiversidade, mas também regulam o clima, protegem nascentes, evitam emissões de carbono e garantem segurança alimentar para suas comunidades”, afirma o documento elaborado pela Conaq com as demandas do grupo para as metas climáticas do Brasil.

O documento, chamado de NDC dos Quilombos do Brasil, é uma resposta à NDC (Contribuição Nacionalmente Determinada) do Brasil, apresentada à Convenção da ONU sobre Mudanças Climáticas, com os objetivos do país de reduções de emissões dos gases do efeito estufa que causam o aquecimento global.

“Quando o Estado Brasileiro escreveu sua NDC, no ano passado, ficou explícita a invisibilidade dos povos indígenas, quilombolas, do campo, da água e da floresta. Diante dessa ausência, a nossa NDC se fez necessária, para falar do nosso potencial e do que nós temos para contribuir”, afirmou Rodrigues em entrevista à Rádio Nacional dos Povos.

Essa invisibilidade corre o risco de se repetir agora no espaço formal da COP30 com a pequena quantidade de credenciais para os representantes quilombolas. Para comparação, o número de representantes indígenas brasileiros credenciados na zona azul deve chegar a 500, com 360 credenciados na própria delegação brasileira, a partir de um trabalho articulado pelo Ministério dos Povos Indígenas junto às organizações de base dos povos indígenas.

Segundo fontes ouvidas pela reportagem, ministérios e órgãos do governo federal, em especial o Ministério da Igualdade Racial (MIR), não deram a devida atenção à pauta quilombola e falharam em garantir uma maior participação do grupo na COP30. Procurados pela reportagem para esclarecer quantas credenciais serão concedidas aos quilombolas, Ministério da Igualdade Racial, Secretaria Geral da Presidência e Secretaria Extraordinária da COP30 não responderam até a publicação deste texto.

O mal estar vem desde o começo do ano, quando, em sua primeira carta à sociedade, o presidente da COP30, o embaixador André Corrêa do Lago, não citou quilombolas, nem a população negra de forma geral, nem o tema do racismo ambiental, o que provocou críticas do movimento negro.

Depois, a Conaq realizou uma pré-COP, em Macapá, no final de setembro, com lideranças de diferentes estados para fortalecer a participação quilombola nos debates da COP30. Autoridades do governo federal e o presidente da COP30 foram convidados, porém não compareceram.

“Passados já muitos anos, o estado brasileiro ainda tem dificuldade de tratar o tema da população negra”, resumiu Rodrigues à Pública.

                                                                                    Joedson Alves/Agencia Brasil
Quilombolas não apenas conservam a biodiversidade, mas também regulam o clima, protegem nascentes, evitam emissões de carbono e garantem segurança alimentar para suas comunidades


Quilombolas: por que participar importa?

Para os quilombolas, é fundamental estar presente na área de negociação da COP30 para mostrar ao mundo a importância das comunidades na manutenção da sociobiodiversidade e da vegetação nativa e na produção de alimentos saudáveis, para assim garantir mais proteção aos seus territórios, hoje ameaçados por conflitos territoriais e sem acesso pleno a direitos básicos.

Por isso, mesmo sem credenciais suficientes, eles pretendem participar do evento e da programação paralela o máximo possível.

Nos últimos anos, os quilombolas brasileiros vem se articulando, por meio da Conaq, com outros povos afrodescendentes da América Latina, o que levou à criação da Citafro, uma coalizão internacional dos territórios afrodescendentes para uma participação coordenada nas diferentes conferências da ONU, como a do clima e da biodiversidade.

No ano passado, essa articulação obteve sua primeira grande vitória na 16ª Conferência da Biodiversidade, realizada na Colômbia, que, pela primeira vez, citou explicitamente os afrodescendentes na decisão final, reconhecendo a contribuição desses grupos para conservação da biodiversidade – a exemplo do que já acontecia para os povos indígenas.

Para organizações quilombolas e afrodescendentes, esse reconhecimento é um passo importante na proteção, pelo direito internacional, dos conhecimentos, práticas e territórios tradicionais da população, que soma mais de 153 milhões de pessoas na América Latina e no Caribe.

Em junho, na conferência preparatória para a COP30, realizada na Alemanha, as comunidades afrodescendentes tiveram outra conquista: foi a primeira vez que um documento preliminar da diplomacia climática global mencionou diretamente os afrodescendentes como um grupo vulnerável e relevante para a adaptação climática e para uma transição justa rumo a economias menos emissoras de gases do efeito estufa. A Conaq considerou o texto um “marco histórico na nossa luta por justiça climática e racial”.

É para garantir que essa menção se mantenha agora nas decisões finais da COP30 que os quilombolas querem estar na zona azul. Não se trata apenas de uma questão simbólica. O reconhecimento explícito dos afrodescendentes pode possibilitar avanços em outras demandas importantes, como o financiamento direto, a ampliação da presença nas próximas conferências e o reconhecimento de práticas culturais desses grupos como essenciais para a proteção da natureza, além de dar maior proteção a eles no direito internacional.

A presença na conferência também é relevante para que o governo incorpore a titulação de territórios quilombolas como uma política nacional de redução das emissões – uma demanda comum aos povos indígenas, que também pedem o reconhecimento da demarcação de Terras Indígenas como política climática oficial.

“Se a COP fosse só uma questão comercial, o presidente Lula podia ter levado para São Paulo. Mas a COP, além de olhar o futuro, olha todo o equilíbrio da balança climática. Por que está em Belém? Porque é onde a maioria do nosso povo predomina, onde há uma grande diversidade cultural, lá tem indígena, quilombola, seringueiro, pescador, que são responsáveis por proteger todo aquele bioma”, disse Rodrigues à Rádio Nacional dos Povos.

‘Invisibilizados’ para além da COP

Mais de 1,32 milhão de pessoas se identifica como quilombola no Brasil, o equivalente a 0,65% da população nacional. Elas estão presentes em 24 estados, sendo que o Pará, sede da COP30, é o quarto estado com a maior população, segundo dados do Censo Nacional do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2022.

Apenas na Amazônia Legal, a Conaq e o ISA mapearam 632 territórios quilombolas, quase quatro vezes o número registrado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), órgão do governo federal responsável pela titulação dessas áreas. Juntos, esses territórios somam mais de 3,6 milhões de hectares (uma área equivalente ao tamanho de Alagoas), 88% a mais do que os dados públicos oficiais.

“A invisibilidade nos dados oficiais é uma das expressões mais graves do racismo ambiental. Quando o Estado não reconhece esses territórios, nega às comunidades o direito à terra e desconsidera o papel que elas cumprem na proteção da floresta”, afirmou Antonio Oviedo, pesquisador do ISA e um dos autores do estudo.

No entanto, apenas 160 territórios na Amazônia Legal estão titulados integralmente. No Brasil como um todo, há 347 territórios em processo de regularização fundiária para a obtenção do título. No Incra, são mais de 1,9 mil solicitações para a identificação e regularização de áreas ocupadas por quilombolas no país. Cálculo da organização Terra de Direitos aponta que, no ritmo atual, a titulação total das terras quilombolas pode levar mais de 2 mil anos.

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