CADÊ A NOSSA BOLA?

Acho que o brasileiro nunca enxergou o futebol só como um jogo. Vivendo, absorvi o jogo de bola como um dialeto especialmente forjado para quem joga falar de si, do mundo e com o mundo.

Foto: registro de um campo de várzea brasileiro.


Lucio Massafferri Salles*, Pragmatismo Político

Acho que o brasileiro nunca enxergou o futebol só como um jogo.

Futebol sempre foi conversa, invenção, intuição, poesia brasileira com o corpo pensando, para além da paixão.

Vivendo, absorvi o futebol brasileiro como um dialeto especialmente forjado para quem joga falar de si, do mundo e com o mundo.

Para falar, cantar e jogar (em alguns casos, assoviar) é preciso ter equilíbrio entre forma e liberdade.

Traduzindo para o duro real: suspeito fortemente que nosso problema não é do tipo “tática versus técnica”.

Apesar de sedutoramente conflitante, essa oposição não satisfaz para aprofundarmos a depressão, a ladeira abaixo, o abismo, o deprimente declínio do futebol da seleção que nos representa.

Parece que quando a tática virou manual e a técnica virou execução, o Brasil começou a viver o desaparecimento do dialeto da bola, outrora fluente.

Os gringos (europeus) aplicaram o que se chama de apropriação produtiva do saber alheio: traduziram nossa espontaneidade em sistemas, transformando essa linguagem de dizer sobre si e o mundo, em método; reescreveram o improviso, a ginga e a intuição, como se reorganiza uma gramática.

Nos campinhos de terra, nas ruas inclinadas, nas praias, nos quintais tortos (na grama do Parque da Lagoa, que saudade…) praticava-se esse dialeto único, brasileiro, que não cabia em manuais — o verbo do corpo e as linhas da criação. Quem jogou sabe: o vento, a poeira e os gritos formavam o público invisível — e cada drible era como uma resposta ao mundo.

Cada movimento parecia uma frase improvisada, dita nessa língua da ginga e do ludíbrio, onde o improviso jamais era desordem, mas inteligência raiz em estado puro de jogo.

Foi dessa matéria viva que o futebol brasileiro se fez, fala e metáfora com o dialeto, antes de virar sistema.

Quando a tática virou norma e os campinhos viraram laboratórios, a criação parece ter silenciado — e, com ela, o Brasil perdeu até mesmo o seu sotaque do futebol.
Hoje o jogador brasileiro médio é produto, coisa para ser vendida. Com cada vez mais raras exceções, não é mais autor.

Enquanto isso, o futebol europeu joga forte, com traços evidentes da “nossa língua” (impondo sua gramática, sua sintaxe).

Falam algo parecido com o nosso sumido dialeto da bola, mas sem sotaque e sem pausa (para mim, sem alma também).

Nos anos 70, o Brasil importou a “ciência” europeia e, junto com ela, uma filosofia do controle, da máxima racionalização.

Treinamos mais os músculos do que as mentes (e haja apagão, dispersão…); o drible virou protocolo. Acreditem: há quem se ofenda, em sua sagrada honra, com uma sequência de dribles. O gesto livre foi sendo aos poucos engolido pela norma, e o erro — berço da invenção! — virou tabu.

Tendo a ver também com estilo, essa mudança parece ter marcado o fim da mediação entre técnica e tática — a passagem limitadora da liberdade à obediência.

Não intento negar os avanços táticos, tecnológicos ou o profissionalismo, mas reconhecer o alto preço que estamos pagando: a perda do improviso como força criadora. O futebol brasileiro está dissolvendo a sua raiz, o seu motor.

Nem toda tática é prisão — fato. Mas, no que a filosofia pode adentrar o mundo da bola, cabe dizer que sistemas só vivem se derem espaço à imaginação.

Recuperar o equilíbrio, sem medo, é devolver à técnica o sopro do espírito criador.

E isso não é lembrança nostálgica, embora eu tenha escutado bastante artistas da bola hoje veteranos — é o que falta em campo (ouço as vozes de todos, ecoando…).

No Brasil, a bola nunca foi só um objeto: foi uma forma de expressão. Fora do ato consagrador, foi sempre uma grande amiga.

Assim, dá para ver que o que perdemos não foi a posse (a pose?). Perdemos a maneira de comunicar essa arte. Nessa perda, foi-se o caminho (o método).

Talvez eu diga isso por memória — ou por saudade do que parecia tão natural quando o jogo ainda cabia na infância.

Reencontrar “a nossa bola” pode significar refazer uma ponte entre cálculo e intuição, entre o que se treina e o que nasce, brota. Esse é o poder da criação.

Porque o Brasil não perdeu só títulos — perdeu o jeito especial de sonhar com a bola, abraçado com ela.

*Lucio Massafferri Salles é jornalista, cronista esportivo, psicólogo e professor da rede pública de ensino/RJ. Doutor e mestre em filosofia pela UFRJ, especialista em psicanálise pela USU, realizou o seu estágio de Pós-Doutorado em Filosofia Contemporânea na UERJ. É criador do canal FluPress (YouTube).

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