JÊS OU TUPIS-GUARANIS? DESCUBRA OS PRIMEIROS MORADORES DOS BAIRROS DE CURITIBA

Para comemorar o dia 19 de abril, a Câmara Municipal propõe uma viagem à ancestralidade da capital.

São realizadas, em terra kaingang, as sessões plenárias da Câmara Municipal de Curitiba (CMC), pois o Palácio Rio Branco está localizado no Centro, que pertencia aos indígenas da família linguística Jê. Atualmente, famoso pela colonização italiana, o bairro de Santa Felicidade também era Jê, provavelmente com aldeias kaingang e xokleng-laklãnõ, que, nos registros dos séculos 16 e 17, são chamados de campeiros ou de coronados. Praticamente toda a Região Norte de Curitiba pertencia a essas etnias.

Na Região Sul de Curitiba, estavam concentradas as etnias da família linguística Tupi-guarani (possivelmente guaranis, mbya e nandeva), que dominavam do Campo Comprido, Seminário, Água Verde e Jardim das Américas para baixo, até o Umbará, Tatuquara, Campo de Santana e Caximba. A linha perpendicular que separa as famílias Jê e Tupi-guarani corta ao meio os bairros do Mossunguê, Campina do Siqueira, Batel, Rebouças e Jardim Botânico, seccionando as porções superiores do Augusta, CIC e Cajuru.

Dê uma olhada no mapa abaixo e diga para a gente, nas redes sociais da CMC: onde você mora é da família Jê ou da Tupi-Guarani?



História para ser contada

A proposta de enxergar Curitiba como uma grande terra indígena, onde viviam diversas etnias com cultura e tradições próprias, é possível graças à pesquisa de Cláudia Inês Parellada e José Luiz de Carvalho, que, em 2009, no livro “Missões: Conquistando almas e territórios”, publicaram um mapa da distribuição dos povos indígenas no Paraná nos séculos 16 e 17.

A CMC localizou, nesse mapa, a posição dos bairros de Curitiba para ver a capital do Paraná antes da passagem dos bandeirantes e da colonização dos espanhóis e dos portugueses. Apresentamos essa proposta de imaginação do território ancestral de Curitiba para Cláudia Parellada, que, hoje, é coordenadora do Departamento de Arqueologia do Museu Paranaense (Mupa) e passamos no crivo da pesquisadora.

Cláudia Parellada chamou a atenção da reportagem que, por exemplo, “kaingang é um termo do século 19” e que a autodenominação dos povos indígenas, que é respeitada atualmente, não consta nos documentos de época. Por isso, por exemplo, as etnias da família linguística Jê são chamadas de campeiros ou de coronados. Pelo mesmo motivo, há incerteza sobre as etnias do tronco Tupi-guarani.

Então, quando nos referimos aos xokleng-laklãnõ ou aos guaranis-mbya como moradores originários de Curitiba, são aproximações, pautadas por evidências arqueológicas, mas, ainda assim, são aproximações. Elas têm o efeito prático de encorajar a população de hoje a se interessar pela história da terra e do seu rico passado cultural, sensibilizando para a causa indígena. Logo, não são uma tentativa anacrônica de descrever um passado distante.

Família Jê chegou antes

Quem visita o Museu Paranaense aprende que as primeiras populações humanas que chegaram à região em que vivemos hoje, 15 mil anos atrás, provavelmente, vieram margeando a América Latina pela costa do Pacífico. Nômades, eles conheceram uma Curitiba ainda mais fria, embora menos chuvosa, e conviveram com animais da megafauna. Há sítios arqueológicos em São José dos Pinhais com vestígios da passagem humana pela região 13 mil anos atrás.

A presença humana aqui se tornou mais constante quando mudanças no ecossistema levaram ao “ótimo climático”, mais úmido e mais quente que antes, propiciando o desenvolvimento de uma flora mais exuberante. São desse período, cerca de 10 mil anos atrás, os povos arcaicos, também chamados de umbu, humaitá e sambaquieiros. Nômades e caçadores, são atribuídas a eles parte grande das pinturas rupestres encontradas no Paraná.

A ocupação do planalto de Curitiba engrena, para valer, cerca de 4 mil anos atrás, com a chegada dos indígenas Proto-Jê, ou Itararé-Taquara, que, além de serem ceramistas, viviam em aldeias e são os antepassados das etnias kaingang e xokleng-laklãnõ. Por 2 mil anos, as populações da família linguística Jê ocuparam sozinhos esse território, o que explica a profusão de vestígios arqueológicos deles em todas as áreas. As ondas migratórias da família Tupi-guarani começam a aparecer, para se ter ideia, no início da contagem do calendário gregoriano, na época de Cristo, por assim dizer.

“É pensar de uma forma muito colonialista achar que esse espaço começa a ser ocupado quando chegam os primeiros mineradores [em 1630]. Havia uma ocupação muito antiga. Para a arqueologia, observamos isso nas materialidades e na documentação histórica. Temos evidências de grupos caçadores e coletores, pontas e projéteis, lanças e flechas e povos com agricultura e cerâmica já há 4 mil anos”, confirma a arqueóloga do Museu Paranaense.

A lenda do cacique

Com o mapa por bairros pronto, surgiu uma dúvida: o cacique Tindiquera, da lenda da fundação de Curitiba, não era guarani? Diz a história tornada famosa por Romário Martins que, no primeiro assentamento de colonizadores, hoje chamado de Vilinha do Atuba, havia uma capela, onde todas as manhãs a santa acordava com a face voltada para uma região diferente. Mudavam ela de lugar, a imagem de Nossa Senhora da Luz aparecia virada de novo para essa outra área.

Dizem que a questão foi levada até um cacique de nome Tindiquera, com a dúvida se ela, a santa, não queria que a vila fosse fundada em outro lugar, ao qual o indígena teria guiados os europeus e os caboclos, do Bairro Alto até o Centro. Chegando na região onde hoje é a praça Tiradentes, o cacique Tindiquera espeta seu cajado no chão, que se transforma em uma frondosa árvore, indicando o início da povoação definitiva.

Só que se Tindiquera era guarani, como explicar que no mapa da ocupação indígena do território paranaense toda aquela região aparece como de domínio da família Jê? “O Tindiquera era [da família linguística] jê, porque o guarani não morava dentro de estrutura subterrânea, mas ele morava”, diz Cláudia Parellada, referindo-se ao texto e às mais recentes descobertas arqueológicas feitas na região central de Curitiba.

“A gente escavou o Belvedere [prédio histórico no bairro São Francisco, ao lado das ruínas] e o que tinha lá embaixo? Materialidades de etnias da família Jê. Curitiba, certamente, teve contribuição das duas populações, e, certamente, havia assentamentos guaranis na cidade, mas, no século 16, a parte central [de Curitiba] é só Jê”, afirma a pesquisadora.

Perguntada sobre a convivência das etnias, Cláudia Parellada explica que “a distância linguística do guarani para o kaingang é tão grande como a do português para o alemão”. As diferenças são visíveis na cerâmica, nos ritos fúnebres, explicou a coordenadora de Arqueologia do Mupa, que enfatizou como a presença guarani aumentou na região, com as alianças que alguns grupos fizeram com os colonizadores enquanto eles avançavam no território.

Indígenas hoje*

A reportagem conversou com Mauro Leno Silvestrin, indigenista especializado da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e mestre em Antropologia Social, sobre a presença dos povos originários hoje, em Curitiba. Ele destacou a existência da aldeia urbana Kakané Porã, “uma aldeia multiétnica onde moram indígenas guarani, xetá e kaingang”, que fica no bairro Caximba e onde vivem, hoje, cerca de 200 pessoas.

“Nossa região metropolitana abriga algumas outras, como a Aldeia Tupã Nhe’é Kretã, localizada dentro do Parque Nacional da Guaricana, em território morretense. Em Piraquara, a Aldeia Araçaí e a Aldeia da Floresta Metropolitana Estadual, A Retomada. A cidade de Campo Largo também abriga no antigo Parque do Mate uma comunidade indígena. No último Censo [de 2010], temos mais de dois mil indígenas vivendo em Curitiba fora de aldeamentos, ou seja, que estão aqui para estudar, para trabalhar ou para tratamento de saúde”, disse.

“É importante colocar a questão da casa de passagem indígena em Curitiba. Infelizmente, a prefeitura fechou quando do início da pandemia e nunca mais reabriu o espaço. Historicamente, os indígenas estão em trânsito, vindo vender seus artesanatos, e [em Curitiba] estão sem um espaço adequado para atendê-los. Os outros, que se vêm e permanecem nas cidades, acabam vivendo nas periferias”, comentou Lays Gonçalves da Silva, mestra em Antropologia Social pela UFPR, consultora na temática indígena e professora de Sociologia.

“Eu acho que falar sobre indígenas na cidade é pensar na ideia de invisibilidade. Então, você tem hoje indígenas nesses espaços vendendo o seu artesanato, no entanto não existe uma condição humana, um direito humano garantido para a venda desses artesanatos. Então, eles estão nos sinaleiros”, reivindica Lays. “Curitiba precisa abraçar essas pessoas. A gente não tem banheiro, não tem um lugar para expor seus artesanatos, muito menos um lugar adequado para dormirem”, conclui cobrando políticas públicas que reconheçam a especificidade da população.

Para Mauro Leno, da Funai, a presença dos povos originários se dá, em Curitiba, “primeiro como indígenas resistentes ao processo de esbulho e à tomada de terras”. “Segundo, como indígenas que vinham ao município para comercializar e para conversar com o Governador da província, para fazer suas estratégias políticas e financeiras, e isso permanece até hoje, nesse fluxo que tem mais de 300 anos”. Para o indigenista, é uma história de resistência, pois, apesar de “todos os roubos de terra, de territórios”, o estado do Paraná conta com aproximadamente 30 mil indígenas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

MUSEU PARANAENSE. Na exposição do Museu Paranaense podem ser observados…. Disponível em: <https://www.museuparanaense.pr.gov.br/Pagina/Departamento-de-Arqueologia>. Acesso em: 10 abr. 2023.

PARELLADA, Claudia Inês. Estética indígena Jê no Paraná: tradição e mudança no acervo do Museu Paranaense. Revista Científica FAP, Curitiba, v. 3, págs. 213-229, 2008.

PARELLADA, Claudia Inês; CARVALHO, José Luiz de. Mapa de distribuição dos povos indígenas no Paraná nos séculos XVI e XVII (1540 -1640). In: PARELLADA; C. I.; CARVALHO, J. L. de. Missões: conquistando almas e territórios. Curitiba: Imprensa Oficial, 2009.

PARELLADA, Claudia Inês. Coleções Arqueológicas no Museu Paranaense: Trajetórias e Memórias. Revista Memorare, Florianópolis, v. 2, n. 1, págs. 72-92, set./dez. 2014.


PARELLADA, Claudia Inês. Paisagens transformadas: a arqueologia de povos Jê no Paraná, sul do Brasil. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, São Paulo, v. 27, págs. 158-167, 2016.

*Trecho elaborado pelo estudante de Jornalismo Mauricio Geronasso*, especial para a CMC
Supervisão do estágio: José Lázaro Jr.
*Trecho revisado pelo estudante de Letras Brunno Abati
Supervisão do estágio: Alex Gruba

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