AÇÕES NO TSE CONTRA CHAPA PRESIDENCIAL GANHAM FORÇA COM POSSE DE MORAES

Ações que pedem cassação de Bolsonaro e Mourão por fake news na campanha serão julgadas em duas semanas; colegiado crítico a governo e outras investigações podem complicar votação

Vasconcelo Quadros

O labirinto em que o presidente Jair Bolsonaro se enfiou tem mais um caminho sem saída fácil: dentro de duas semanas o novo presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Luís Roberto Barroso, colocará na pauta de julgamento as ações que pedem a cassação do presidente e de seu vice, Hamilton Mourão, por supostos abusos cometidos pela chapa nas eleições de 2018. O que seria um processo tranquilo pode, no entanto, ganhar contornos dramáticos para o governo em função da estreita conexão entre o grupo que ameaça autoridades e prega abertamente a ruptura do sistema democrático com a campanha do então candidato.

As ações que ameaçam a chapa pedem que o TSE avalie o disparo em massa de notícias falsas e suas implicações no resultado da eleição. Uma delas, apresentada pelos ex-candidatos à Presidência Marina Silva, da Rede, e Guilherme Boulos, do Psol, acusa a campanha do presidente de invadir uma página do grupo Mulheres Unidas contra Bolsonaro, no Facebook, alterando seu conteúdo para “Mulheres com Bolsonaro”. Isso porque o então candidato do PSL tirou um print do perfil adulterado por hackers, supostamente envolvidos com sua campanha, e compartilhou nas redes com uma mensagem em que agradecia o apoio das mulheres.

A acusação em si é frágil e só não foi arquivada à época porque o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), que permanecerá no colegiado do TSE, pediu vistas. De volta à pauta, no entanto, assume o primeiro lugar na fila e poderá ganhar musculatura com o resultado de investigações que esmiúçam o poder de manipulação do grupo bolsonarista conhecido como “gabinete do ódio” tocadas pela Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) das Fake News e pelo inquérito do STF, coordenado pelo ministro Alexandre de Moraes, alvo de fortes ataques dos grupos bolsonaristas nos últimos dias.


       Marcelo Camargo/Agência Brasília
      O ministro do STF Alexandre de Moraes conduz o inquérito das fake news

As investigações são coordenadas pelo delegado Igor Romário de Paula, uma das estrelas da Lava Jato, responsável também pelo inquérito sobre as denúncias do ex-ministro Sergio Moro em que o presidente Jair Bolsonaro é acusado de interferir na Polícia Federal.

O presidente da CPMI, senador Ângelo Coronel (PSB-BA), disse que, caso o TSE solicite, as informações apuradas pelo Congresso podem ser compartilhadas, como a comissão fez com o STF ao disponibilizar os depoimentos dos deputados Alexandre Frota e Joice Hasselmann, ex-bolsonaristas e os primeiros a denunciar a relação de pessoas próximas ao presidente com a rede de notícias falsas. O senador acha que, se as investigações forem aprofundadas, Bolsonaro poderá se complicar no julgamento no TSE.

“O TSE só tomará uma decisão de cassar a chapa com provas circunstanciais. E ninguém senta em cima de provas, nem mesmo os deputados do Centrão”, afirmou o senador em entrevista à Agência Pública.

Com a posse de Alexandre de Moraes como membro efetivo do TSE nesta terça-feira (2/6), em cerimônia acompanhada remotamente pelo presidente do Palácio do Planalto, a composição da corte se completa. Forma-se um colegiado de perfil mais afinado, crítico ao projeto autoritário de Bolsonaro. São ao todo sete membros: Barroso, Fachin e Moraes pelo STF; Og Fernandes e Luís Felipe Salomão, pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ); e os juristas Tarcísio Vieira de Carvalho Neto e Sérgio Silveira Banhos, indicados pelo Palácio do Planalto por meio de listas tríplices submetidas ao crivo do STF. Para a cassação seriam necessários quatro votos.

Nos próximos dias, depois de ouvir Bolsonaro, Mourão e o Ministério Público Eleitoral, Og Fernandes deve decidir se atende solicitação do PT, PCdoB e Pros para juntar numa única Ação de Investigação Judicial Eleitoral (Aije) as denúncias de impulsos ilegais de mensagens, as ofensas e ameaças aos ministros do STF que motivaram, na semana passada, a operação policial que fez uma devassa na rede de apoio bolsonarista.

O presidente da CPMI das Fake News diz que as suspeitas sobre o uso ilegal de meios digitais e as sucessivas agressões do aparato bolsonarista contra a democracia colocam em xeque as condições de governabilidade do presidente. Na avaliação do senador, no TSE ou no Congresso, o futuro de Bolsonaro depende do resultado das investigações em curso e do rumo que ganhar a crise política.

                                                                                                                                                 Alan Santos/PR
 Ações que pedem a cassação do presidente Jair Bolsonaro e de seu vice, Hamilton Mourão, por supostos abusos cometidos pela chapa nas eleições de 2018, serão avaliadas pelo TSE

“Com prova concreta e aumento de instabilidade política não haverá cargos que segurem o Centrão e nem as redes sociais vão dar sustentabilidade ao governo. Se tiver panelaço e gente nas ruas, parlamentar nenhum vai arriscar a reeleição para proteger o presidente”, diz o senador. Para ele, os acordos que Bolsonaro vem fazendo com o Centrão para evitar o impeachment podem se esfarelar caso o desgaste se acentue.

As investigações até aqui conduzidas pela CPMI, diz Ângelo Coronel, apontam que no entorno do presidente Jair Bolsonaro “há uma quadrilha digital estruturada” e financiada por empresários que bancam os escritórios que disparam notícias falsas. “O país não pode continuar refém de uma ditadura digital que ameaça autoridades”, disse o senador. Ele é também relator do projeto de lei (PL) apresentado por seu colega Alessandro Vieira (Cidadania-SE) que criminaliza as fake news e prevê normas e mecanismos para combater abusos. “A proposta tem a finalidade de desarticular a rede que faz o uso criminoso da internet e evitar que esses problemas se repitam mais à frente”, disse Vieira à Pública. O PL foi retirado ontem da pauta pelo presidente do Senado.

A atuação dos bolsonaristas ficou mais visível com a operação da PF, na semana passada, que apreendeu computadores e documentos em 29 endereços de pessoas próximas ao presidente, que seriam responsáveis pela difusão de ataques ao STF. No mesmo despacho em que determinou a ação da polícia, Alexandre de Moraes quebrou os sigilos bancário e fiscal de empresários que supostamente bancaram o esquema de fake news. O núcleo é encabeçado por Luciano Hang, dono da rede de lojas Havan, mas conta com outros empresários como Edgard Gomes Corona, Reynaldo Bianchi Júnior e Winston Rodrigues Lima. A investigação, segundo o ministro, deve retroagir de abril deste ano a julho de 2018, ou seja, jogará luzes em todo o período eleitoral, época em que a máquina de notícias fraudulentas do bolsonarismo funcionou a todo vapor.

O relatório parcial da Polícia Federal, citado no despacho de Moraes, revela que os empresários formaram um grupo autodenominado “Brasil 200 Empresarial”. Eles teriam se cotizado para arrecadar o dinheiro que bancou as milícias digitais que pregam a ruptura do sistema democrático, difamam e ameaçam autoridades, o que todos eles negam. A CPMI quebrou os sigilos do grupo. “Se pagou e não declarou, é abuso do poder econômico, questão eleitoral”, diz o senador Ângelo Coronel.

As investigações da Polícia Federal e da CPMI já apontam indícios de que tanto a propaganda da campanha de Bolsonaro quanto a difusão de ataques foram produzidas por profissionais do marketing digital com mensagens escolhidas e elaboradas para atingir um grande público com o impulsionamento de robôs. Também são investigadas suspeitas de ligação da campanha bolsonarista com a Cambridge Analytica, acusada no Reino Unido e nos Estados Unidos de usar indevidamente dados pessoais de milhões de usuários do Facebook nas campanhas do Brexit e de Donald Trump por meio de manipulações, inclusive emocionais. A relatora da CPMI, Lídice da Mata (PSB-BA), disse à Pública que a crise do coronavírus acabou adiando o depoimento do congressista britânico Damian Collins, membro da House of Commons (Casa semelhante à Câmara dos Deputados no Brasil), que comandou investigação sobre o uso de campanhas virtuais no referendo do Brexit.
                                                                                                                           Cleia Viana/Câmara dos Deputados
“O país não pode continuar refém de uma ditadura digital que ameaça autoridades”, afirma o senador Ângelo Coronel (PSB-BA)

As suspeitas partiram de uma foto postada no início de agosto de 2018, antes, portanto, da campanha eleitoral, em que o deputado Eduardo Bolsonaro, filho do presidente, posa ao lado do estrategista da campanha de Trump, Steve Bannon, líder de um movimento de direita e um dos sócios originais da Cambridge Analytica. Numa entrevista à BBC News Brasil, Bannon contou ter se encontrado com Eduardo Bolsonaro em meio à campanha do segundo turno de 2018. O contato entre os dois teria sido intermediado pelo autodenominado filósofo Olavo de Carvalho, guru do clã Bolsonaro, que mora na Califórnia. Embora tenha negado a relação dele ou da empresa com a campanha, Bannon admite que fez uma avaliação e deu conselhos a Eduardo.


Investigada por fake news, Kicis contratou serviços de mídias sociais de apoiadores do governo
Militante do movimento Nas Ruas, marqueteiro do Aliança pelo Brasil e suplente de vereador pró-Bolsonaro estão entre os que receberam R$ 24,4 mil de verba parlamentar, de acordo com as notas fiscais obtidas pela Pública

“Há semelhança entre as campanhas de Bolsonaro, do Brexit e de Trump, mas o que temos por enquanto é apenas a reportagem sobre o encontro dos dois. É necessário aprofundar”, disse Lídice à Pública. Segundo ela, o depoimento – adiado – de Collins, que seria em abril, pode levar a CPMI à primeira experiência internacional de investigação sobre a influência das fake news na política, um fenômeno que afetou eleições em vários países. Um novo convite será enviado ao parlamentar britânico.

Especialista em direito eleitoral e ministro do TSE entre 1996 e 2000, o jurista José Eduardo Alckmin diz que interromper mandatos de presidentes não é uma tradição na Justiça Eleitoral, embora a corte tenha confirmado decisões de tribunais regionais que resultaram, nos últimos 20 anos, na cassação de seis governadores em exercício. No último julgamento, em 2017, o TSE rejeitou a cassação da chapa Dilma Rousseff e Michel Temer, acusados de veicular publicidade fora do período permitido e não comprovar gastos de campanha.

Movido pelo PSDB em 2014, o caso ganhou corpo com as descobertas da Lava Jato sobre o suposto uso de dinheiro desviado da Petrobras na campanha. “O resultado foi apertadíssimo, de 4 a 3”, lembra Alckmin, que atuou na acusação. Com Dilma já cassada, por pouco Temer também não perdeu o cargo. Alckmin diz que nas decisões do TSE sobre abusos não há margem para individualizar a dosimetria de uma eventual decisão do colegiado. “Se tiver de cassar, alcança a chapa”, explica.

Ele lembra que, embora nem se falasse à época em impulsos operados por robôs ou fake news, o Código Eleitoral criado durante a ditadura, em 1965, no governo do general Castelo Branco, tem uma previsão que se ajusta juridicamente agora, caso se comprove que houve manipulação do eleitor. Trata-se do artigo 242, adequado em 1986 (Lei 7.476), que proíbe em campanhas eleitorais “meios publicitários destinados a criar, artificialmente, na opinião pública, estados mentais, emocionais ou passionais”.

Em 2002, quando a atriz e ex-ministra da Cultura Regina Duarte disse, numa peça publicitária a favor do então candidato José Serra que estava com medo de Lula vencer a eleição, o PT, por meio de seu então advogado Dias Toffoli, hoje presidente do STF, impetrou ação no TSE com base no artigo 242 para acusar o PSDB de explorar “estados emocionais”. A tese foi rejeitada à época, mas, segundo Alckmin, ganha força jurídica agora com a proliferação das fake news e sua influência na política.

O senador Ângelo Coronel diz que a manipulação também alimenta o fanatismo perigoso contra opositores. Ele mesmo, desde que começaram as investigações da CPMI, só anda em carro blindado e com escolta por causa das ameaças. Uma delas foi transformada em inquérito por tentativa de homicídio pela polícia do Congresso contra um homem de Belo Horizonte que enviou para seu e-mail 12 mensagens ameaçadoras. A outra investiga a invasão de sua propriedade rural, no interior da Bahia, por um homem que, apanhado pela polícia, alegou que queria apenas protestar contra o senador. “Tenho receio de fanáticos e de quem age à traição. Vou aguardar o resultado dos inquéritos”, disse o senador.

Uma eventual cassação da chapa, por envolver um vice que também é general, seria o maior teste para a democracia, assustada pelo fantasma da intervenção militar a cada crise política. Ao perceber os movimentos em direção à Justiça Eleitoral diante do avanço das investigações, Bolsonaro postou em suas redes dois textos curtos, mas sugestivos. Disse que o STF estava querendo tirar “a única mídia que tenho a meu favor” e que “tudo aponta para uma crise institucional”, uma previsão realista sobre os dias difíceis que ele tem pela frente

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