NÃO BASTA UFANISMO EXPORTADOR DE COMMODITIES. NÃO BASTA AJOELHARMO-NOS

Um relato sobre os passos para frente e para trás na cobertura da Esalqshow, em Piracicaba

Entre os dias 9 e 17 de outubro, pouco mais de uma semana, continuei na saga de entender, visto assim do alto, como queria Paulinho da Viola, e usando a lupa da miserável realidade, o Brasil agrário, visões nunca isoladas, mas em interações aos andores políticos, econômicos, sociais e culturais desta Federação de Corporações.

Por indicação de Sergio Lirio, redator-chefe de CartaCapital, atendi (de 9 a 11) ao Esalqshow, na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (USP), em Piracicaba, SP. Foi a terceira edição. Nas anteriores, participei como exibidor. Agora, como imprensa, tive acesso a todos eventos lá ocorridos, embora não pudesse participar de todos, pela coincidência de horários. Escolhi os que me pareceram mais importantes para uma descrição de como se compartimenta e desenvolve a cadeia alimentar brasileira.

Na semana seguinte, passei quatro dias na região serrana do Rio de Janeiro, conhecendo os projetos de produção orgânica e agroecológica que por lá vicejam.

Hora de escrever, pois. Talvez não como coluna, mas sim relato.

Esalqshow: Passos atrás outros à frente

Razoáveis surpresas e grandes decepções. Foi massiva a série de painéis discutindo startups, integração digital e conectividade. Foi pobre e direcionada aos interesses políticos de instâncias municipais, estaduais e federal a discussão sobre agricultura familiar, assentamentos, e ruralismo entre nações indígenas e quilombolas.

Em plano geral, e em relação às duas edições anteriores, poderia dizer que, como tudo no País, os painéis e temas discutidos caminharam voltados à grande agricultura, numa perseguição implacável às tecnologias digitais, pelos pesquisadores, e no oficialismo avassalador de autoridades pequenas, médias e grandes, ligadas ao governo do estado de São Paulo, ou ao repaginado ministério da Agricultura.

Idealizado pela Fundação (Fealq), cabeça da escola, organizado pela Araiby, empresa de eventos, e com “patrocínio ouro” de Bayer, Case, Coplacana, “prata” da LS Tractor e “bronze” da John Deere, tal pedestal olímpico deixou impressão nítida de esvaziamento, em relação à edição de 2018.

Não será isso que ouvirão das vozes oficiais. Ressaltam o número (112) de palestrantes nos painéis, sem questionar qualificações, os 65 expositores na Feira de Inovação e Tecnologia, sem questionar relevância, e presença massiva de autoridades oficiais e lideranças do setor. O público, no entanto, foi visivelmente menor, menos interessado, e a estrutura montada para atendê-lo insuficiente. Muito provável terem faltado recursos, das instituições oficiais e da iniciativa privada (venda de estandes), para bancar a anterior distribuição de brindes e materiais impressos, a suntuosidade do café nos intervalos, e mesmo o número de trailers com alimentação. Ou seja, tudo mixou.

O fio condutor, “Desafios e oportunidades do agro brasileiro até 2030”, tem sido repetidamente batido em folhas e telas cotidianas, em momento tão conflituoso do país, também pode ter feito minguar o público, na maioria estudantes e profissionais do setor agrícola, prevendo que, exceção a alguns painéis, ocorreria uma série tediosa de apresentações em PowerPoint, ora justificando ações de órgãos públicos, ora projetando futuros duvidosos. Quem assim pensou, acertou.

A manhã do primeiro dia do evento (Abertura) foi dedicada às solenidades e à entrega do Prêmio Novo Agro, oferecido pelo banco Santander, nos itens inovação, empreendedorismo, sustentabilidade e mulher na gestão. Uma boa iniciativa.

Na parte da tarde, desenvolveu-se aquele que, na minha opinião, ficou sendo o ponto alto do evento. Único, porém.

Debateu-se “Relações Internacionais no Agro”, com esclarecedoras apresentações do professor e pesquisador da Universidade Agrícola da China, Guo Pei; do chefe de setor do USDA, Nicolas Rubio; do economista argentino Ricardo Carciofi, membro do Grupo de Países Produtores do Cone Sul; e de Marcos Jank, catedrático da Esalq e especialista em comércio exterior de commodities agropecuárias.

A China deixou de ser autossuficiente na produção de grãos, a partir de 2004, e se tornou um importador líquido. De lá para cá, gradativamente, foi reduzindo suas importações de outros países asiáticos, preferenciais por imposições logísticas, e abrindo suas portas para Brasil, Argentina, EUA. Crescem, também, seus interesses em África, tendente a se igualar aos demais países asiáticos na fatia das importações chinesas.

Confirma-se, assim, permanecer crescente a importação chinesa de soja e milho da América Latina, independente de acordos ou desacordos comerciais com os EUA, seja lá qual for o Trump que vier. Da tal ‘guerra’, pode-se pensar em oscilação de preços, mas nada que comprometa o abastecimento. Se o agronegócio brasileiro, hoje em dia, exporta pouco mais de US$ 100 bilhões, 35% são tomados pela China.

O recente crescimento chinês e a tendência dos 230 milhões de pequenos proprietários de terras (média de 0,8 hectares) em seguir para o meio urbano e industrial, fizeram em apenas 5 anos a China aumentar de 6% para 23% a necessidade de importações para atender o aumento da demanda por alimentos.

As tentativas de reverter tal motivação, através de incentivos à produção rural e subsídios, não têm sido suficientes, mesmo com a diminuição nas outrora aceleradas taxas de crescimento do antigo Império do Meio.

Qualquer desequilíbrio na relação entre oferta e demanda na China tem proporções enormes para a economia mundial, sobretudo em países emergentes, e mais ainda naqueles mal geridos, como é o caso do Brasil, que nem mesmo consegue fortalecer sua imagem na preservação ambiental e escolher de forma correta seus parceiros comerciais.

Exemplo no momento da dimensão chinesa na balança comercial brasileira está no crescimento das exportações de carne suína, devido à catástrofe da peste suína, capaz de dizimar metade do rebanho de 430 milhões de cabeças no país.

Por outro lado, e na contramão do Brasil, os países europeus premiam agricultores que se direcionem para a produção sustentável e ameaçam reduzir importações de países tolerantes a agroquímicos e agrotóxicos, daí ser pouco relevante e recheado de restrições o acordo bilateral União Europeia-Mercosul. Os analistas pensam mais importante voltar-se para a Ásia, onde as imposições ambientais seriam menos rígidas.

Enfim, bons conhecimentos, trazidos por todos palestrantes, apenas empalidecidos pelo Secretário Adjunto de Comércio e Relações Internacionais do Ministério da Agricultura, sr. Flávio Bettarello, que lá esteve para fazer um discurso ruralista e de ode à ministra Tereza Cristina. Sua justificativa: “o fato de ter comandado a Frente Parlamentar da Agropecuária, faz com que ela conheça as necessidades do setor”. Ah, pois não, estimado senhor.

Uma anotação pessoal, não apenas desse evento. Em todas as minhas audições sobre agronegócios, percebo que tecnologia virou eufemismo e neologismo para práticas e manejos mais do que manjados. Por exemplo, a palavra transgenia deu lugar à tecnologia; o mesmo para as moléculas químicas e agrotóxicas; e o que mais se preste a escamotear os ativos agrários naturais.

Apesar de as relações comerciais com o exterior poderem ser, em breve, afetadas por um temido período de recessão mundial, como a ocorrida entre 2007 e 2008, a maioria dos palestrantes lá presentes defendem válido o caminho dos acordos bilaterais, à exceção do representante do Cone Sul. Felizmente, além de manter-se fiel ao multilateralismo, ele defende cada país olhar para seu mercado interno e incentivar o consumo, algo esquecido no Brasil atual.

É impossível que todos ali presentes não tivessem um link com a realidade política, econômica e social que, hoje em dia, permeia as instituições no Brasil. Não seria, no entanto, de bons modos tocar no assunto em festividade que se pretendia neutra. E assim se concluiu:

“Se as reformas andarem no Brasil, o país vai crescer enquanto os outros estarão em recessão e os investimentos virão para cá”.

Palmas tímidas, o que me fez pensar: então tá, ilustríssimos.

Esalqshow: No mais … e pra frente

Muito bons os painéis sobre o papel das universidades e institutos de pesquisas para transformação de conhecimento em inovação.

Participações fundamentais do Instituto de Pesquisas e Estudos Florestais, da Fatesp (Faculdade de Tecnologia do Estado de São Paulo), e da EsalqTec. Durante todos os dias se podia visitar uma Feira de Inovação e Tecnologia, ainda acanhada quando comparada à do ano passado.

O leitor e a leitora sabem o que é pitch? Mais modernos do que eu, provavelmente sim. O tradutor me fala em arremesso, o que remete ao desejo que tenho de fazer com as atuais autoridades eleitas para governar o Brasil.

Diz-se de “pequena apresentação de um produto ou negócio para atrair investidores”. Bem, para este escriba ancião, administrador arrependido, no passado, isso se chamava apresentação institucional, que poderia ser à vera ou conversa mole. Mas respeitemos os pitches (creio ser assim, no plural).

Agora, falando sério, onze empresas se apresentaram e, por coincidência de horários com outros painéis, não pude estar presente. Não se impressionem se a maior parte delas não usa o vernáculo português para se autodenominar. Em inglês, o pitch é “mais cruzeiro”, como consta em meu dicionário geriátrico.

O painel “Alimentos Saudáveis, Energia Renovável e Sustentável” teve aspectos interessantes e outros com afirmações suspeitas, de veracidade não comprovada em instituições mundiais de pesquisas. Foram expostas por representante da multinacional alemã Bayer e pelo presidente da Abia, Associação Brasileira da Indústria de Alimentos.

Valeu também, principalmente para os jovens estudantes, o painel “Profissional do Futuro”, nas visões da academia e do mercado. Com um senão: dos nove palestrantes, apenas dois eram professores da Esalq. Os demais representavam empresas que compram estandes para apresentar seus produtos, o que lhes dá direito a palestrar. Sei disso, por que em 2018, como expositor, foi-me oferecido o mesmo. Declinei.

O último dia (11) foi praticamente todo dedicado à conectividade (logo a Globo a adotará para unir aos tech, tudo e pop).

Esalqshow: No mais… e pra trás

Além do panorama internacional, meu interesse maior se concentrava no que se abordaria no painel “Agricultura Familiar e Pequeno Produtor”.

Sabem quem, quantos são e como contribuem para a produção agrária brasileira? Não? Deveriam. O IBGE sabe. A conectividade deles é com a pobreza, a não ser quando o Globo Rural, revista ou TV (salve!), mostra suas realidades, ou aparece um movimento corajoso de sem-terra (MST) ou Fetag para defendê-los, no lugar do extinto ministério do Desenvolvimento Agrário.

São mais de 14 milhões de trabalhadores rurais, 75% da mão de obra do campo, que não vieram pedir empregos ou esmolas nas grandes cidades, mas responsáveis por quase 80% do que colocamos nas mesas para servir de repasto.

E foi desse esperado painel que não saiu nada mesmo. Seguiu-se o humorista Barão de Itararé (1895-1971): “de onde menos se espera, daí é que não sai nada”.

Com exceção do representante do Sebrae, pouco se aproveitou. Secretários municipais e estaduais de agricultura expondo seus feitos tucanos. Oficialismo à prova de nada para quem vive em Andanças Capitais, e sabe que em relação a pobres nada se transforma. É mentira mesmo.

Fizeram apresentações as responsáveis pela biblioteca da Esalq, que apesar dos parcos recursos emitem boletins técnicos de grande valia. Um representante do Crea, criado há 85 anos, com 27 regionais no país, que serve aos agrônomos para informá-los serem engenheiros, e não esquecerem de pagar suas anuidades e conhecerem o que podem ou não fazer. Ou seja, trata-se de órgão puramente fiscalizatório.

Daí em diante, o secretário municipal de Agricultura e Abastecimento de São José do Rio Preto/SP, o de Desenvolvimento Regional do Estado, e o de Piracicaba. Cada um deles a defender as próprias gestões, municipais ou estaduais.

Precisava, Fealq?

Falou-se de radiocomunicação, oportunidades de mercado (epa!), sucessão familiar (opa!), e viabilidade de negócio. Gentil, não perguntei: aonde, na agricultura familiar ou no cemitério?

Precisava, Fealq?

Sobrou propagandear os indefectíveis Programas de Alimentação, que conhecemos sempre parciais e falhos.

O tema agricultura familiar não passou de um desfile de autoridades públicas e chapa-branca. Pena e tristeza para uma instituição educacional como a Esalq. Tudo mediado por uma vereadora do PSDB de Piracicaba. Enquanto isso, a ONU declara a década como dedicada a esforços para desenvolver a agricultura familiar

E o que fiz eu, representando CartaCapital? Perguntei sobre interações com os assentamentos produtivos e educacionais do MST. Pularam a resposta. Fui mais longe. E as duas mil famílias, em Presidente Prudente (SP) que, segundo a Fundação Instituto de Terras de São Paulo (Itesp), esperam assentamento? Pularam da mesma forma.

Pergunto ao representante do Sebrae, bom palestrante, jeito de quem vai a campo e faz, sobre os cortes nos recursos do essencial sistema S. Ele, talvez, intimidado pelos seus 27 anos de serviço:

“Sabe, Rui, talvez tenha sido bom para repensarmos nossas atividades”.

Pensei: bom ou apenas preserva seu emprego e a futura aposentadoria, pelo serviço público?

Esalqshow: No mais … e concluindo

Apesar deste ser um olhar crítico, são inegáveis o valor e a importância do evento.

O espremer do caldo traz bons augúrios para o pensamento agrário do país. Da mesma forma, e isso foi novidade, é bem-vinda a interação com pesquisadores de fora da paróquia estabelecida na esplanada dos ministérios, em Brasília.

Estamos vendo acontecerem descalabros diários que atentam contra nossos patrimônios naturais e ativos de interesse para a soberania de um Estado, construído sob pensamento democrático, que sempre soube vencer os percalços totalitários.

Não basta o ufanismo exportador de commodities. Não basta ajoelharmo-nos, de forma mambembe, diante de quem não é cliente, mas concorrente. Não basta jogar para baixo das mentiras e prepotência estes 10 meses de lambanças ambientais sem respostas dignas. Não bastam reformas de caráter neoliberal e que não diminuem a abissal desigualdade que nos é esfregada na cara por décadas.

Tenho para mim que o senhor Luiz Vicente de Souza Queiroz, ao chegar a Piracicaba, empreender e doar ao governo do estado de São Paulo, em 1892, a Fazenda São João da Montanha, preferiria que a Escola Agrícola Prática de Piracicaba, fundada em junho de 1901, continuasse comungando de seus ideais, como apresentados em Luiz de Queiroz – Vida e Obra, uma percepção humanística (Edição Esalq, 2016).

RUI DAHER

Este texto não reflete necessariamente a opinião de CartaCapital.

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