RESÍDUOS DE MEDICAMENTOS E HORMÔNIOS NA ÁGUA PREOCUPAM CIENTISTAS

Os contaminantes emergentes são objetos de estudos em todo o mundo. Em Porto Alegre, pesquisadores da UFRGS realizam monitoramentos periódicos no Arroio Dilúvio e em estações de tratamento

20 de abril de 2017 · Reportagem: Camila Raposo

Pesquisadores avaliam a presença de 210 produtos diferentes no Arroio Dilúvio - Foto: Maia Rubim/PMPA


Você já parou para pensar no que acontece com os medicamentos que você ingere? Ao tomar um remédio para dor de cabeça, por exemplo, uma parte de seu princípio ativo (nesse caso, a substância responsável pelo alívio da dor) é utilizada para o efeito terapêutico; outra parte é metabolizada pelo corpo; e outra, eliminada inalterada pela urina ou pelas fezes. A partir daí, duas coisas diferentes podem ocorrer. Se sua casa está conectada à rede de esgoto, esse princípio ativo passará por uma estação de tratamento – na qual pode ser total ou parcialmente eliminado, a depender da substância – antes de desembocar em alguma fonte de água. Caso contrário, ele será despejado integralmente no manancial mais próximo. Agora imagine que, além do seu remédio para dor de cabeça, vão parar na água todos os outros remédios para dor de cabeça, antibióticos, anti-inflamatórios e hormônios consumidos pelo restante da população e pelos animais que recebem tratamentos veterinários. Isso sem contar os medicamentos vencidos que são descartados de maneira inadequada e acabam contaminando rios e solo.

Cientistas de todo o mundo têm se dedicado ao estudo dos chamados contaminantes emergentes na água, que são resíduos de fármacos e hormônios (como os artificiais, consumidos como anticoncepcionais ou para fins de reposição) que afetam rios e lagos de todo o planeta. O termo “emergentes” se deve ao fato de que as pesquisas na área são relativamente recentes – iniciadas no final dos anos 90 – e ainda não há legislação específica que regule a presença desses compostos nos recursos hídricos.

Conforme explica a professora do Instituto de Química da UFRGS Tânia Pizzolato, por estarem presentes em concentrações extremamente baixas na água – na faixa dos microgramas ou nanogramas por litro –, esses contaminantes não chegam a afetar diretamente a saúde humana. Para se ter uma ideia, um micrograma equivale a um milésimo de miligrama, e um nanograma é um milhão de vezes menor que o miligrama. “São partes por bilhão de litro, por trilhão, às vezes até por quatrilhão, dependendo do composto”, enfatiza a professora.

O problema é que, apesar de essas concentrações serem consideradas baixas para humanos, elas podem ter efeitos tóxicos para a fauna e a flora aquáticas. “Aqueles resíduos no ambiente vão afetar a base da cadeia alimentar – os micro-organismos, os peixes pequenos… E quando se afeta a base, indiretamente se afeta toda a estrutura”, explica Tânia.

Há inclusive alguns estudos que relacionam a presença de hormônios femininos e outros contaminantes na água com a feminização de peixes e a formação de óvulos em animais machos, indicando que mesmo pequenas quantidades do estrogênio usado em pílulas anticoncepcionais podem levar ao colapso de algumas espécies. Outro grande problema que pode ser causado pela contaminação de fármacos se refere ao desenvolvimento de superbactérias resistentes a antibióticos.

A resistência aos antibióticos surge quando os micro-organismos que causam uma infecção sobrevivem à exposição ao medicamento que, normalmente, deveria matá-los. Esse sobrevivente irá crescer e se reproduzir, difundindo essa capacidade de sobrevivência aos seus descendentes. Apesar de a resistência ser um processo natural que ocorre desde que os primeiros antibióticos foram descobertos, o uso indiscriminado desses medicamentos, assim como o seu descarte irregular, pode acelerar o processo de adaptação e de resistência dessas bactérias, e as doenças causadas por elas, por consequência, ficam cada vez mais difíceis de serem tratadas.

Um relatório elaborado pelo órgão britânico Review on Antimicrobial Resistance indica que 700 mil pessoas morrem todos os anos no mundo devido à resistência das superbactérias a antibióticos. E, em 2050, esse número deve chegar aos 10 milhões. Serão mais pessoas do que as que morrem de câncer atualmente.


Contaminantes emergentes em Porto Alegre

A linha de pesquisa coordenada por Tânia no Instituto de Química realiza estudos sobre contaminantes emergentes desde 2001 e, desde 2006, faz monitoramentos no Arroio Dilúvio, em Porto Alegre. Atualmente, o grupo está trabalhando em seu terceiro monitoramento, com a avaliação da presença de 210 produtos diferentes, entre medicamentos, hormônios, pesticidas e alguns produtos provenientes da degradação e da transformação de fármacos, uma vez que há substâncias cuja degradação pode gerar elementos mais tóxicos que os originais.

As coletas são feitas trimestralmente em seis pontos diferentes do Arroio, que vão do Campus do Vale da UFRGS, onde ele ainda recebe poucos efluentes e mantém a sua mata ciliar e a água transparente, ao local em que ele desemboca no Lago Guaíba, único manancial de abastecimento de Porto Alegre. Com início em junho do ano passado, esse monitoramento deve ser finalizado em meados de 2018.

A professora menciona que as substâncias encontradas com mais frequência no Arroio Dilúvio são antibióticos, anti-inflamatórios, betabloqueadores (tipo de medicamento usado principalmente em tratamentos cardíacos) e corticoides, mas também são detectados hormônios, tanto naturais quanto sintéticos. “O Arroio Dilúvio é praticamente um esgoto a céu aberto”, comenta Tânia, fazendo referência ao grande aporte de efluentes domésticos e de esgoto in natura que o rio recebe, principalmente nas áreas de maior densidade populacional. “Onde é que temos, então, mais problemas com resíduos de fármacos no meio ambiente? Nos grandes centros urbanos. Nas cidades menores, esses contaminantes acabam se diluindo”, observa.

Os pesquisadores também comparam a quantidade de contaminantes encontrados nos diferentes períodos desde que se iniciaram os monitoramentos. Segundo Tânia, a tendência, de modo geral, tem sido de estabilidade: “Piorou um pouco, mas não muito. Estatisticamente não há muita diferença entre os monitoramentos, o que é razoável, se se pensar que a população de Porto Alegre não variou muito nesse período”.

O grupo também realiza estudos em estações-piloto de tratamento de esgoto, como a do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da UFRGS e uma localizada no munícipio de Canoas. Nesses locais, os pesquisadores analisam o efluente urbano em dois momentos: logo que ele chega à estação e depois que passa pelo processo de tratamento. Esse processo analisado é o de tratamento tradicional – o mesmo que é aplicado pelos órgãos municipais responsáveis pelas redes de esgoto.

Enquanto alguns fármacos são completamente removidos pelo tratamento tradicional, outros têm somente uma remoção parcial. Os índices variam bastante, em função das diferentes características químicas dos contaminantes presentes no meio ambiente, mas, de modo geral, pode-se afirmar que o tratamento reduz de maneira significativa a carga poluidora do efluente urbano.

“O tratamento do esgoto urbano é fundamental para resolver várias questões ambientais, não só em relação aos fármacos. O esgoto tem patógenos, detergentes, resíduos de produtos de limpeza, de higiene pessoal… Tem muita coisa ali dentro. Além do efluente gerado nas nossas residências, há toda a contribuição da cidade ali. Há um aporte de uma carga orgânica muito grande. E, quando você trata, você reduz tudo isso”, enfatiza Tânia.

A pesquisadora lembra que um grande problema nesse sentido é o fato de que, ao menos em Porto Alegre, muitas pessoas não solicitam ligação de suas residências à rede de esgoto, por não haver normas que tornem essa ligação obrigatória. “Existe uma rede de coleta bastante grande, mas tem que usar essa rede”, ressalta. Segundo dados do Departamento Municipal de Águas e Esgotos (Dmae), a capacidade de tratamento de esgoto em Porto Alegre é de 80%, mas, atualmente, somente 56% do esgoto produzido na cidade é tratado.

O grupo de pesquisa de Tânia também já desenvolveu alguns monitoramentos na água potável da cidade. O último foi realizado no final de 2016, e nunca foram encontrados vestígios dos contaminantes emergentes estudados. Atualmente, os pesquisadores trabalham com análises de toxicidade e com a investigação da presença de superbactérias resistentes a antibióticos no Arroio Dilúvio. Os primeiros resultados desses levantamentos devem estar disponíveis até a metade deste ano.

As pesquisas já envolveram mais de 60 pessoas no Instituto de Química, incluindo alunos de graduação, mestrado, doutorado e pós-doutorado. Também colaboram com os trabalhos pesquisadores da Escola de Engenharia da UFRGS.

Técnicas avançadas de tratamento

Como foi explicado anteriormente, o tratamento de esgoto tradicional, apesar de ajudar bastante, não é capaz de eliminar completamente todos os contaminantes. Por isso, os pesquisadores estudam também o desenvolvimento de novas técnicas, capazes de degradar os que não são eliminados pelo tratamento tradicional. Substâncias diferentes requerem procedimentos diferentes.

São vários os processos avançados de tratamento, redução e degradação de substâncias, que podem incluir a oxidação, os eletroquímicos, os catalíticos, a fotocatálise, entre outros. “Eles têm eficiências diferentes. Normalmente, quando trabalhamos com isso, testamos vários deles e vemos qual é o mais eficiente para determinado grupo de compostos que seja mais problemático em relação à remoção”, explica Tânia.

A professora ressalta também que, por lidarem com concentrações muito baixas, esses processos requerem métodos altamente sensíveis: “Estamos falando de uma química analítica extremamente requintada, avançada e específica”. São processos que exigem um investimento muito alto. “Não é qualquer equipamento, não pode ser qualquer reagente, não é qualquer pessoa que consegue trabalhar nisso. Tem que ter um treinamento bastante longo, precisa de equipamentos bem específicos, e esses equipamentos são caros. É uma área de trabalho cara, que acaba envolvendo recursos bastante elevados. Então, não é qualquer lugar que faz essas análises. Dentro da própria Universidade, nós levamos muito tempo para conseguir construir a estrutura para o que fazemos hoje”, comenta.

Por isso, ela explica, a dificuldade em disponibilizar os métodos em escala industrial para a utilização nos tratamentos tradicionais de esgoto. Mesmo em nível mundial, há essa dificuldade. Em alguns países, como Alemanha e Estados Unidos, pioneiros na área, já há alguns processos avançados sendo aplicados, mas, de modo geral, ainda não são procedimentos de rotina. “Tem muito trabalho sendo feito na área, e esses estudos objetivam não só encontrar as técnicas mais adequadas, como também chegar a processos que tenham uma eficiência boa, tentando minimizar um pouco os custos”, enfatiza a professora.

“É preciso investir muito em pesquisa para conseguir chegar a resultados que possam ser colocados em prática. O que a gente observa é que quanto mais investimento determinado país tem em pesquisa, mais rapidamente ele vai ter acesso a essas tecnologias de ponta. Existe uma necessidade crescente em pesquisa para que a gente também consiga ter condições de implementar esses sistemas”, complementa.


Legislação

No Brasil, os parâmetros de potabilidade da água são determinados pela portaria nº 2.914, de 12 de dezembro de 2011, publicada pelo Ministério da Saúde. Essa norma prevê, entre outras questões, as características aceitáveis da água para consumo humano, como as relacionas à turbidez e ao pH, e as concentrações permitidas para várias substâncias químicas que representam risco à saúde, incluindo uma diversidade de agrotóxicos e pesticidas. Não há, entretanto, qualquer previsão para fármacos ou hormônios. E, mesmo em nível mundial, ainda não há legislação voltada à regulamentação dos fármacos.

Tânia esclarece que esses parâmetros não são simples de se estabelecer. Para saber, por exemplo, a quantidade máxima de determinada substância que pode ser ingerida sem oferecer risco à nossa saúde, são necessários inúmeros testes e anos de pesquisas. Esses valores não são aleatórios. Há muitos laboratórios ao redor do mundo trabalhando para tentar estabelecer esses números, para, então, fazer as recomendações. Há, entretanto, muitos fatores envolvidos nessa questão.

Vale lembrar que os trabalhos nessa área são relativamente recentes, tendo menos de 20 anos. “Para se ter uma ideia, no caso dos pesticidas, os estudos começaram logo após a Segunda Guerra Mundial”, ressalta a professora. Claro que, de lá para cá, as coisas mudaram muito em termos de pesquisa. A velocidade de obtenção de dados, por exemplo, já é muito maior. “Hoje em dia, temos mais recursos, técnicas mais avançadas, mas, em função disso, as exigências também são maiores”, complementa Tânia.

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