ESCOLAS PARALELAS


Brasil Paralelo: programa que capta ‘mecenas’ para combater a esquerda já chegou a 284 escolas e ONGs

Giovana Abreu/Intercept Brail

O jornalismo destemido do Intercept só é independente graças aos milhares de leitores que fazem doações mensais. Mas perdemos centenas desses apoiadores este ano.

Nossa missão tem que continuar mesmo depois que o último voto for dado nesta eleição. Para manter nossa redação forte, precisamos de 1.000 novos doadores mensais este mês.

Para “libertar famílias do progressismo”, programa de membros da Brasil Paralelo faz ‘mecenas’ bancarem assinaturas para escolas e ONGs.

O objetivo é combater o suposto domínio da esquerda nas instituições educacionais. Além de ampliar seu domínio em instituições de ensino, a empresa também aumenta sua base de assinantes com um discurso caritativo.

Já são 23 mil pessoas impactadas pelo projeto em 284 instituições, segundo a produtora. 6 mil membros Mecenas financiam o projeto, com valores que superam R$ 1.000 por ano.

A Brasil Paralelo afirma que é apartidária, mas seus conteúdos têm um viés conservador, que questionam o feminismo e desafiam consensos, como o aquecimento global. Pais de alunos das escolas parceiras reclamam de doutrinação.

Quando escolheu o Centro Educacional Conselheiro, o CEC, uma escola privada tradicional do município de Nova Friburgo, na zona serrana do Rio de Janeiro, Joana finalmente relaxou. Depois de alguns meses em dúvida, ela confiou que o CEC seria o lugar ideal para que sua filha pudesse concluir o ensino fundamental. Mas a ilusão durou pouco. E a culpa, segundo a mãe, é da invasão da produtora de extrema direita Brasil Paralelo na unidade escolar.

“Minha filha estudou lá por dois anos, de 2021 a 2023. Ela gostava bastante da escola. Era um ambiente acolhedor, com professores dedicados e uma estrutura que sempre nos passou segurança”, relata Joana. Tudo começou a mudar quando ela passou a receber e-mails da direção da escola anunciando uma parceria com a Brasil Paralelo.
Assine nossa newsletter gratuitaConteúdo exclusivo e gratuito. Direto na sua caixa de entrada
Enviar
Aceito receber e-mails e concordo com a Política de Privacidade e os Termos de Uso.

A CEC é uma das mais de 285 instituições que a Brasil Paralelo anuncia como parceiras do Projeto Mecenas, o “maior e mais importante” da produtora.

Funciona assim: pagando um valor superior a mil reais (em valores de 2022), os chamados Membros Mecenas bancam “bolsas” para “melhorar a educação e a cultura” no Brasil. Na prática, esse dinheiro custeia assinaturas da Brasil Paralelo para escolas e instituições filantrópicas exibirem seus documentários e cursos para os alunos.

O objetivo da produtora é combater o suposto domínio da esquerda nas instituições educacionais, segundo reuniões entre a empresa e os membros de 2023 e 2024 e mensagens obtidas pelo Intercept Brasil. É um ganha-ganha: além de ampliar seu domínio em instituições de ensino, a empresa também aumenta sua base de assinantes com um discurso caritativo.

Em 2022, apenas uma “bolsa” custava R$ 1.668. O preço caía conforme mais “bolsas” fossem compradas: 75 bolsas saíam por R$ 23.880, o equivalente a R$ 318,40 cada. Assim, o programa incentiva grandes doadores.

As informações sobre o projeto são restritas a seus membros, mas o Intercept teve acesso a vídeos de 17 reuniões, assim como aos relatórios enviados aos membros.

Em uma das reuniões, a Brasil Paralelo afirmou ter 400 mil assinantes e uma comunidade de 6 mil membros Mecenas. Nas reuniões virtuais, identificamos a presença de pequenos empresários, médicos e profissionais liberais, sobretudo do sul do país, entre os Mecenas.

Os números divulgados internamente pela produtora impressionam: em junho de 2024, 23.100 pessoas, entre estudantes e famílias, foram impactadas pelos conteúdos bancados pelos membros Mecenas. Em fevereiro, eram 4.757 assinaturas que já haviam sido distribuídas por meio do programa.

A Brasil Paralelo procura instituições alinhadas ideologicamente para o projeto, mas também incentiva que os mecenas façam indicações de entidades e escolas para receberem as bolsas.

“Sabemos que o progressismo investe há décadas em falsos projetos sociais com o objetivo de emburrecer o povo, destruir valores familiares, normalizar o crime, incentivar o aborto. Não tendo condições de se defender, essas famílias acabam sendo reféns desse ‘cativeiro cultural’, tornando-se massa de manobra eleitoral”, explica uma uma mensagem enviada por um dos representantes da empresa a um interessado em entrar para o programa, deixando claro o objetivo do projeto.

Vídeo divulga parceria da Brasil Paralelo com escola em Natal; crianças são uniformizadas com logo da produtora. Foto: reprodução/Brasil Paralelo
Economia paralela: o clube dos mecenas

Os membros Mecenas são tratados como uma espécie de clube, com benefícios e incentivos. “Você não será igual aos outros membros, você será o membro mais próximo da Brasil Paralelo” foi a frase que a produtora disse para convencer um assinante a se tornar um Mecenas, em relato publicado no Reclame Aqui. Outro relatou ter ganhado uma caneca.

Em junho de 2024, a Brasil Paralelo lançou um clube de benefícios, com descontos em serviços como academias e restaurantes, principalmente para divulgar empresas de outros mecenas – um “conceito de economia paralela”, explicou um representante da produtora na reunião de junho.

Há também encontros presenciais para incentivar a adesão ao programa. Os pagantes mais generosos, que financiam mais de 100 bolsas – ou seja, gastaram R$ 34.680 por ano, em valores obtidos pelo Intercept –, têm direito a encontros anuais com os outros mecenas.

As reuniões explicam alguns desses eventos presenciais. No início de abril de 2024, por exemplo, a produtora anunciou um “encontro exclusivo” com Michael Schellenberger, o jornalista por trás do Twitter Files, o vazamento de informações do X que Elon Musk soltou para atacar o STF brasileiro.

‘A gente começa nos 6, 7 anos, que é o público para começar a entender a mensagem’, diz a coordenadora do projeto.

Em São Paulo, em junho, outro desses encontros reuniu o deputado Marcel van Hattem, do Novo, e o economista Hélio Beltrão com os membros. No mesmo mês, a Brasil Paralelo disponibilizou camarotes para o evento com Jordan Peterson – aquele divulgado por Cristina Junqueira, a CEO do Nubank, que causou uma crise de reputação no banco.

Nas reuniões virtuais, a Brasil Paralelo apresenta os resultados do programa, descreve os documentários em produção, apresenta os números com entusiasmo e fala sobre aspectos estratégicos na sua produção de conteúdo. Por exemplo, formar professores com valores alinhados aos da produtora.

Em fevereiro, um dos temas discutidos com os membros foi a Conferência Nacional de Educação, a Conae. Nós mostramos, em janeiro, que o evento quase foi aparelhado por bolsonaristas.

Na reunião com os membros daquele mês, o roteirista da produtora Helton Medeiros citou a Conae para falar sobre a importância de estar na “linha de frente” da educação para atingir as pessoas que “vão moldar e construir as próximas legislações voltadas à educação”, mencionando a conferência.

Os conteúdos pagos da Brasil Paralelo incluem cursos como “o que é capitalismo” e “harmonia conjugal”, segundo o material de divulgação. A produtora divulga conteúdos conservadores, que questionam o feminismo e desafiam consensos, como o aquecimento global.

Um outro questiona a versão de Maria da Penha sobre a violência doméstica que sofreu, e transforma Marco Antônio Heredi, o agressor condenado, em possível inocente. A peça foi alvo de repúdio de pesquisadores e entidades ligadas aos direitos humanos. Um ano depois da divulgação massiva do material, Maria da Penha foi incluída no Programa de Proteção de Testemunhas do Ministério dos Direitos Humanos por ter sido alvo de ameaças. Um dos roteiristas do episódio disse, em uma reunião com os membros Mecenas, que o “caso Maria da Penha não era bem assim como diziam”.

Muitos conteúdos, como o documentário que diz que o golpe de 1964 aconteceu por conta de uma ameaça comunista no Brasil, são considerados revisionismo histórico e refutados por historiadores. E os críticos foram ameaçados de processo pela produtora, preocupada em descolar sua imagem do bolsonarismo radical e se posicionar como um ‘Netflix de direita’.

Um dos conteúdos carro-chefe do Mecenas é a série infantil Pindorama, que reforça a narrativa colonialista do “descobrimento” do Brasil por Pedro Álvares Cabral. O desenho, que pinta o colonizador português como herói, foi exibido para 180 crianças na Casa da Criança Santa Ângela Osse, na favela de Heliópolis, em São Paulo.

“A gente começa nos 6, 7 anos, que é o público para começar a entender a mensagem”, disse a coordenadora do projeto, Thaís Diniz, na reunião aos membros. Segundo ela, o desenho foi exibido para pelo menos 400 crianças só naquela instituição.

Para a pesquisadora Renata Nagamine, que analisou a Brasil Paralelo em seu pós-doutorado do núcleo de Religiões no Mundo Contemporâneo do Cebrap, a produtora atualiza uma narrativa sobre história que era corrente no Brasil há décadas, e difere do modelo pluralista consagrado na Constituição de 1988. “São narrativas diferentes que concorrem em um espaço específico, que é a escola, um espaço privilegiado de sujeitos que irão recontar essa história”, explica.

“A escola é percebida como esse espaço de modelagem do futuro. E por isso tem estado no centro do que na análise a gente chama de disputa no Brasil, sobretudo na última década”, explica. “O ensino da história aparece como crucial porque naquele espaço o sujeito em formação se constitui com essa imaginação do passado. A reimaginação do passado importa porque ela participa da modelagem do futuro”.


GAZETA SANTA CÂNDIDA, JORNAL QUE TEM O QUE FALAR

Postar um comentário

0 Comentários