O DEPOIMENTO ASSUSTADOR DE UMA BRASILEIRA QUE FUGIU DA GUERRA CIVIL SÍRIA


240 mil pessoas já morreram desde o início da guerra civil na Síria (Imagem: distrito da cidade de Alepo, a segunda maior do país/Reuters)

Mario Cajé, Opera Mundi

Depois de mais de quatro anos de guerra civil na Síria, o mundo parece, finalmente, ter despertado para a gravidade da situação dos refugiados. A imagem do menino Aylan Kurdi, de três anos, sem vida, em uma praia turca, se tornou símbolo de um povo que peregrina sem destino. A supervisora de vendas Luiza Silva(*), de 38 anos, não conhece o drama humanitário do país só por fotos ou vídeos. “Cheguei a pensar em tirar a minha vida e a dos meus filhos para acabar com o sofrimento”, confessa.

Mas a vida dela no Oriente Médio nem sempre foi assim. Luiza, que recebeu o nome árabe de Amhasam, ainda guarda na memória as imagens de uma outra Damasco, de uma outra Síria, muito diferente do cenário de devastação em que já morreram 240 mil pessoas, de acordo com o relatório mais recente do Observatório Sírio para os Direitos Humanos (OSDH). “O país era seguro, próspero. A gente podia andar na rua com joias sem medo”, conta.

O caminho da mulher nascida no Estado do Rio de Janeiro – ela prefere não revelar a cidade – até a capital síria, Damasco, começou graças a uma amiga que lhe apresentou quem se tornaria, pouco depois, seu namorado e, em seguida, marido. O sírio era filho de uma brasileira e veio ao país pedir a dupla nacionalidade. Ele jurava amor ao Brasil e dizia não ter vontade de voltar à terra natal. Foi a primeira de muitas mentiras.

Em 1998, Luiza foi à Síria pela primeira vez. A proposta do marido era resolver uns problemas e voltar em pouco tempo. Os “poucos meses” se transformaram em 14 anos. Em Damasco, nasceu o filho mais velho do casal, que hoje tem 16 anos. O irmão mais novo, de 15, nasceu em Paris para garantir a nacionalidade francesa. De lá, eles voltaram para o Brasil e ficaram até que a sogra de Luiza, carinhosamente chamada de Mama, descobriu que tinha um câncer.

Mama pediu para não morrer sem conhecer o neto mais novo e o casal resolveu voltar para Damasco. Luiza passou, então, a cuidar da sogra até os últimos dias. O medo de ter o mesmo destino da mulher que deixou o Brasil aos 17 anos e nunca mais voltou foi inevitável. “Ela, sendo brasileira, viveu ali, sofreu ali e iria morrer ali. Eu olhava pra ela e pensava: ‘Mama, eu não passar o resto da vida aqui, eu não vou morrer aqui’”.

Luiza estava certa: Mama nunca mais veria a terra onde nasceu. Apesar de não saber, se dependesse do marido, sua história repetiria a da sogra.

Se, em geral, não havia muito do que reclamar da vida no país, dentro de casa a situação se tornou insustentável. O marido, outrora encantador, começou a mudar. Não demorou para que a brasileira sofresse a primeira agressão, depois de interromper uma partida de baralho. “Pedi para ele levar nosso filho mais novo ao hospital. Ele me puxou para o quarto e começou a me espancar. ‘Daqui você não sai mais. Estava louco pra fazer isso! Me segurei muito’, ele disse. E os homens continuaram a jogar baralho como se nada estivesse acontecendo”. Por causa da surra, Luiza passou a sofrer com um grave problema de coluna e quase ficou paralítica.

A partir daí, o desejo de voltar ao Brasil cresceu. Mas, ao buscar ajuda na embaixada brasileira em Damasco, soube que só poderia sair da Síria com os filhos se conseguisse a autorização do pai.

O ex-marido de Luiza é alauíta, mesma corrente religiosa do presidente sírio, Bashar al-Assad. O grupo representa cerca de 10% da população e é uma das minorias que compõe o país, ao lado de cristãos e drusos. Os alauítas detêm o comando militar e político. A maioria dos sírios é sunita – cerca de 70% da população.

Por pertencer ao mesmo grupo religioso do líder do país, a família de Luiza tinha uma boa posição social. O sogro dela tinha sido governador, inclusive. Além disso, a convivência, apesar de alguns problemas isolados, era amistosa. “O (presidente sírio) Bashar al-Assad fez uma lei que tornava crime a ofensa à religião dos outros, justamente para evitar a guerra”, diz Luiza.

Apesar de parte da comunidade internacional considerar Assad um ditador violento, e ser acusado de ter utilizado armas químicas contra a população – fato nunca provado -, Luiza tem uma visão diferente. “Ele é um homem justo. Se um parente errasse, ele puniria da mesma forma. Bashar ‘abriu’ e melhorou muito país, que passou a ter shoppings, por exemplo. Ele queria modernizar a Síria. A mídia cria uma falsa imagem dele e eu tenho muita pena porque Bashar não queria a guerra, só que chegou a um ponto em que não dava mais para aguentar os ataques dos rebeldes. Ele defendia as minorias, inclusive os cristãos, e levou a culpa por muitos assassinatos sem ter cometido”, argumenta.

Quando Luiza se recuperava da cirurgia de coluna, recebeu a visita de um primo de Assad, que era casado com uma sobrinha do marido dela. Ele já desconfiava das agressões e quis confirmar. A princípio, com medo, Luiza negou. “Aí ele me disse: ‘Confia em mim. Eu vou te defender. 

Você não está sozinha aqui’. Algum tempo depois, quando eu já estava em casa, ele nos fez uma visita e falou claramente para o meu marido: ‘O dia em que você encostar a mão nela de novo, você vai se ver comigo. Eu vou defendê-la como se ela fosse minha irmã’.” As agressões físicas contra ela acabaram ali, mas os filhos passaram a ser ainda mais espancados.

Início da guerra

Com o acirramento dos conflitos, que começaram em março de 2011 – durante o processo de insurreição que ficou conhecido como Primavera Árabe -, deixar a Síria passou a ser uma questão de sobrevivência. Aos poucos, o país virou um cenário de terror em que forças do governo, oposição armada e militantes do Estado Islâmico disputam o domínio dos territórios.

Os problemas de saúde de Luiza foram se acumulando – depressão, cardiopatia e síndrome do pânico, além da fragilidade física causada pelas sucessivas agressões. Ela chegou a passar um mês no Brasil para tentar recuperar a saúde, mas voltou por medo do que poderia acontecer com os filhos.

As amigas brasileiras foram deixando Damasco, uma a uma. A última foi a esposa do embaixador brasileiro, que voltou com o marido por recomendação do Itamaraty.

Além dos bombardeios, os alauítas, assim como os cristãos, temem ser exterminados por serem uma minoria. Não são poucos os casos de tortura, estupro e esquartejamento de alauítas de que Luiza se lembra. “Meu marido não cuidava de nós e muita gente tinha raiva dele. 

Pra mim, ele queria que a gente morresse ali. As pessoas me falavam, em tom ameaçador: ‘Chegou a hora do olho por olho, dente por dente’. Pelo nome, pela identidade, dá pra saber a qual segmento religioso você pertence, então era muito perigoso. Morrer com um tiro na cabeça era até lucro e meu medo era ser estuprada, torturada. De repente, a Síria foi banhada de sangue.”

Faltavam luz, água e alimentos. O desespero fez com que ela se preparasse para fugir passando pela Turquia. Quando comunicou a decisão à embaixada, ouviu sobre os riscos de passar por Homs, cidade que estava sob o domínio dos rebeldes. Além disso, ela poderia ser acusada de sequestro dos filhos. Luiza desistiu.

Depois de algum tempo e muita insistência, o sírio disse que a deixaria voltar se a família dela pagasse as passagens. “Ele disse isso em tom de zombaria porque as passagens tinham ficado muito caras depois do início da guerra e ele tinha certeza de que a minha família não teria condições de me ajudar”. Para a surpresa dele, o cunhado de Luiza comprou os bilhetes.

A brasileira teve três meses para convencer o marido. Tudo indicava, porém, que ele não cumpriria a promessa, feita em tom de deboche. Um dia antes da data marcada para a viagem, Luiza já não tinha mais esperanças, mas o destino a surpreendeu. Tudo graças à visita de um profeta alauíta, que foi consultado pelo marido sobre a viagem. 

“Eu não via o homem, mas o ouvia. Ele revelou que sabia o quanto eu tinha sido maltratada e como eu estava doente. O desespero foi tanto que eu tentei me comunicar com ele por telepatia, pedindo para poder ir: ‘Eu vou morrer aqui com meus filhos’, eu dizia a ele pela mente. Ele falou para o meu marido autorizar a viagem e jurou que, se eu não voltasse, ele me traria de volta pra ele, beijando os seus pés”.

Volta ao Brasil

Finalmente, em 2012, Luiza conseguiu voltar com os filhos para o Brasil, mas não sem um último obstáculo. Quando chegou ao aeroporto, ela descobriu que a Air France – companhia pela qual viajaria – não estava pousando em Damasco desde o início da guerra civil. Por um instante, ela teve certeza de que nunca mais conseguiria ir embora, até descobrir que seria preciso pegar um voo para a Jordânia e de lá outro para Paris, de onde, finalmente, voariam para o Brasil. “Chorei muito quando cheguei à França. Foi quando percebi que o inferno tinha acabado”.

Apesar de estar em segurança novamente, retomar a vida normal não foi fácil. Luiza precisou reaprender o português porque estava, como ela diz, com a “língua pesada”. Até hoje, precisa tomar remédios para tratar as doenças que herdou dos anos de tortura física e psicológica. Os filhos, que não têm interesse em retomar o contato com o pai, também precisaram fazer terapia. No começo, qualquer barulho um pouco mais forte assustava a família.

O filho mais velho ainda fala árabe e sente saudade de parte da família, principalmente das tias. Ele tem vontade de voltar a morar na Síria quando o país retomar a estabilidade e a segurança. “Um futuro distante”, ele mesmo admite. O rapaz lembra como, de uma hora para a outra, a vida mudou. “É normal a nostalgia porque as pessoas viviam muito bem lá. A educação era excelente”, conta o adolescente que, além do árabe, aprendeu a falar francês e inglês fluentemente na escola.

Apesar da história traumática que Luiza viveu com os filhos, ela se considera uma mulher de sorte, que teve a fé renovada. Quem tem dupla nacionalidade ainda consegue deixar o país. Os que não têm, arriscam tudo para sair da Síria com a ajuda de atravessadores, rumo a um destino incerto. A vida passa, então, a valer muito pouco. E assim surgem histórias e fotos como as do menino Aylan, que chocam o mundo inteiro. Mesmo que seja por cinco minutos.

(*) Nome fictício, a pedido da entrevistada

Postar um comentário

0 Comentários