Golpe de 64: saiba como o Ipês desestabilizava o governo Jango. Financiado por grandes empresários brasileiros, o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais fez lobby no Congresso para cooptar parlamentares e barrar projetos do governo, deixando João Goulart isolado
Trabalhava como emissário ipesiano um poderoso banqueiro carioca responsável por operacionalizar no coração do Poder Legislativo o pesado lobby do instituto, cujo financiamento era sustentado por doações de grandes empresas brasileiras e multinacionais aqui instaladas. Sua função era clara: coordenar uma rede suprapartidária de parlamentares arregimentados pelo Ipês para barrar os projetos do governo no Congresso. Dessa forma, Jango se veria cada vez mais isolado na cena política nacional, criando um clima de instabilidade que o levaria a radicalizar o discurso e a ação.
O braço do Ipês no Congresso Nacional se chamava GAP (Grupo de Assessoria Parlamentar). Conforme identificam historiadores que se debruçaram sobre o período, com especial atenção para o caráter civil-empresarial do movimento golpista, o GAP — ou “Escritório de Brasília”, como a diretoria ipesiana, preocupada com a discrição, recomendava que fosse chamado — desempenhava a coordenação política da campanha anti-Jango. Sua liderança era exercida por meio da ADP (Ação Democrática Parlamentar), uma frente suprapartidária constituída basicamente de deputados da UDN (União Democrática Nacional), de direita, e do PSD (Partido Social Democrático), de centro-direita.
A atuação dessas instituições, capitaneadas pelo Ipês, foi marcante no Congresso Nacional. O próprio líder ipesiano do Escritório de Brasília reconhecia que a ADP “era o braço principal” do Ipês, responsável por fazer “bastante lobby” entre os parlamentares.
O historiador da Unisinos (Universidade do Vale do Rio dos Sinos) Hernán Ramiro Ramírez classifica como “vital” a atuação ipesiana do GAP na desestabilização do governo Jango. Em sua tese de doutorado (“Os institutos econômicos de organizações empresariais e sua relação com o Estado em perspectiva comparada: Argentina e Brasil, 1961-1966”), Ramírez analisa com profundidade a atuação do Ipês no Brasil. Outro que vê no GAP papel relevante no processo de deposição de Goulart é o historiador e cientista político uruguaio René Armand Dreifuss. Em seu livro 1964: A conquista do Estado, atesta:
1.) COMO FUNCIONAVA
A ideia, conforme explica Miguel Lins, líder ipesiano citado por Dreifuss, era “aconselhar o Congresso, estar dentro dele, ter um homem do Ipês dentro dele”. Enquanto os outros grupos especializados do Ipês discutiam a conjuntura política do Brasil, unindo figuras militares e empresariais, o GAP utilizava toda essa gama de informações produzidas e coletadas para antecipar manobras no Legislativo e fazer prevalecer os interesses do Ipês. Assim, por meio da ADP — que tinha pouco mais de 150 dos 409 deputados da Câmara em outubro de 1961 —, o Escritório de Brasília conseguia alterar projetos enviados ao Congresso pelo Executivo e fazer aprovar os que o Instituto patrocinava. Faziam parte da estrutura do GAP um escritório político e assessores formais. Seus recursos vinham tanto da sede do Instituto no Rio de Janeiro quanto da de São Paulo.
2) ELES SABIAM QUE ERA ILÍCITO?
O historiador Hernán Ramírez afirma, em sua tese, que não faltam documentos indicando as inúmeras tentativas de manter essas incursões do Ipês na cena política “no maior sigilo possível”. Por esse motivo — discrição —, uma carta da diretoria do Ipês de dezembro de 1962 ditava a seus membros as diretrizes: “Toda menção ao GAP deve ser suprimida. Talvez deva-se falar em termos de Escritório de Brasília, sem mais explicações”.
3.) QUEM ATUAVA
O homem forte do Ipês em Brasília era o banqueiro Jorge Oscar de Mello Flores. Além de ipesiano graúdo e diretor da Sul-América Seguros, o banqueiro do Chase Manhattan Bank foi nome de relevância no setor de seguros privados do Brasil.
Ajudou a fundar na década de 1940 a FGV (Fundação Getúlio Vargas) e, mais tarde, a Consultec (Companhia Sul-Americana de Administração e Estudos Técnicos), firma idealizada por Roberto Campos que emitia pareceres sobre solicitações de empréstimos de empresas estrangeiras perante o BNDE. No GAP, Mello Flores era assessorado pelo escritor Rubem Fonseca. Como o próprio Mello Flores relata, seus principais contatos no parlamento eram os deputados João Mendes (UDN-BA), presidente da ADP; Herbert Levy (UDN-SP), presidente da UDN; Amaral Peixoto (PSD-RJ) e Antônio Carlos Magalhães (UDN-BA), um “baiano que ajudava muito”, nas palavras dele.
O pleito de 1962 foi o momento de convívio mais intenso entre os institutos; o Ibad, porém, teve atuação mais descarada do que o Ipês, cuja diretoria era bem mais preocupada com a discrição das ações.
4.) EM TERMOS PRÁTICOS, O QUE FIZERAM?
Toda a pressão e os esforços ipesianos no Congresso Nacional tiveram alguns resultados concretos — seriam os chamados “atos de ofícios”? — impactando no cenário político pré-64.
Veto a San Tiago Dantas
No dia 28 de junho de 1962, 174 deputados federais votaram para barrar a nomeação do então chanceler San Tiago Dantas ao cargo de primeiro-ministro, após a saída do pessedista Tancredo Neves.
Desde a renúncia do presidente Jânio Quadros, em agosto do ano anterior, as forças políticas legalistas costuraram um acordo instituindo o parlamentarismo no Brasil, o que diminuía os poderes da presidência, mas assegurava a posse do vice, João Goulart. Quando Tancredo Neves renunciou, em maio de 1962, San Tiago Dantas era o nome natural à sucessão.
Reformas de Base
Se João Goulart tinha um plano de governo, o Ipês também possuía o seu próprio. E fez de tudo para impô-lo sobre o governo: o Instituto dividiu-se em comissões, setorizou as áreas temáticas, realizou grandes seminários, encomendou estudos e publicou incontáveis artigos em jornais para mobilizar a opinião pública. E também contra-atacou com o Escritório de Brasília: “por volta de março de 1963, o Ipês havia submetido à análise do Congresso 24 projetos de lei” sobre o tema, conforme escreve Hernán Ramírez.
Na ocasião, uma carta (disponível no livro de Dreifuss) do chefe do GAP, Jorge Oscar de Mello Flores, ao líder ipesiano Glycon de Paiva evidencia os esforços do grupo no Legislativo:
Se for reforçada a organização em Brasília, poderei ativar a elaboração dos projetos de lei consubstanciando as reformas de base. (…) As vantagens [de agir assim] são: fazer passar à defensiva os esquerdistas, petebistas e demagogos, reduzindo suas possibilidades de engendrarem e apresentarem projetos contra o País.
Eleições de outubro de 1962
Embora tenha negado em depoimento concedido ao CPDOC/FGV na década de 1990, Jorge Oscar de Mello Flores foi incumbido pelo Ipês de atuar nas eleições. Em atas de reuniões do instituto, o banqueiro aparece compartilhando com colegas ipesianos seu temor pela sua exposição pública. Ele acreditava que talvez tivesse que se desligar do Ipês para preservar sua discrição, razão pela qual disse que precisava de uma sala para atuar fora do espaço físico do Congresso Nacional.
Ponderando as candidaturas das diversas regiões do país no pleito de outubro de 1962, Mello Flores fixou como uma “média sensata” a quantia de 15 milhões de cruzeiros “per capita” (mais de R$ 50 mil, em valores atualizados).
Embora não tivessem sido poucos os esforços de toda a rede empresarial do Ipês/Ibad para financiar as campanhas, o resultado do pleito de outubro ficou bem abaixo do esperado — o que teria, segundo Ramírez, aproximado as forças conservadoras das alternativas políticas mais “antidemocráticas”, dando início à conspiração. Conforme aponta a pesquisadora Dulce Pandolfi, em breve artigo para o site do CPDOC/FGV, o pleito de 1962 modificaria profundamente a correlação de forças no Congresso:
Conforme explica Ramírez, a quantia gasta por essa rede civil-empresarial foi tamanha — cifra que, para ele, pode ter beirado os US$ 20 milhões — que “levantou suspeita geral quanto à nacionalidade e aos objetivos políticos dessas contribuições”. No ano seguinte, seria criada no Congresso uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) para investigar as origens desse montante de doações insuspeitas.
5.) AS AUTORIDADES NÃO DETECTARAM AS ATIVIDADES?
A partir do momento em que parte do Congresso começou a se movimentar para instaurar a CPI e investigar as doações da campanha eleitoral, foram feitas inúmeras reuniões de emergência na cúpula do complexo Ipês-Ibad com o objetivo de coordenar a estratégia jurídica de defesa dos envolvidos. Ao final da CPI, apenas o Ibad seria considerado culpado de corrupção política; seu advogado, Dario de Almeida Magalhães, era integrante do Ipês.
Em setembro de 1963, resultado das investigações parlamentares, o governo de Goulart determinaria a dissolução do Ibad, comprovando seu envolvimento ilegal nas eleições da Câmara. O líder do Ibad, Ivan Hasslocher, deixou o Brasil e passou a viver em Genebra. Quanto ao Ipês, porém, a CPI fracassou em estabelecer suas ligações com o Ibad, impossibilitada de quebrar o sigilo bancário de João Batista Leopoldo Figueiredo, presidente do Ipês. Primo-irmão do último presidente do ciclo militar, Figueiredo também era presidente do Banco Itaú, da Scania Wabis e de uma companhia de navegação. Perante a CPI, afirmou que “o Ipês nunca se envolvera em política partidária ou contribuíra para campanhas eleitorais”.
O fracasso da CPI, segundo Dreifuss, se deu “por três motivos: por fontes financeiras comuns, pela participação de um mesmo membro nas duas organizações ou mesmo por ação conjunta”. O relator da CPI, Pedro Aleixo, que viria a ser o vice-presidente do governo Costa e Silva (1967-1969), embora afirmasse em relatório final que “não foram encontrados vestígios da participação do Ipês no pleito”, era supostamente articulado com a rede Ibad. Porém, conforme pesquisa do historiador uruguaio, “o próprio Hasslocher era membro do Ipês”. Suas ligações eram tão fortes que levaram Mello Flores a comentar que “o Ipês havia meramente se aglutinado ao Ibad”. Dessa forma, conclui Dreifuss, “o Ipês, é bem claro, levava uma vida dupla, tanto política quanto financeiramente”.
Felipe Amorim e Rodolfo Machado, Última Instância
(*) Informações retiradas de Hernán Ramiro Ramírez, René Armand Dreifuss (‘1964: A conquista do Estado’), depoimento de Jorge Oscar de Mello Flores ao CPDOC/FGV em 1996/1997, Dulce Pandolfi,Gabriel da Fonseca Onofre, Osny Duarte Pereira (‘Quem faz as leis no Brasil?’) e outras fontes referenciadas

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