A crise da gestão do trabalho na Prefeitura de Curitiba

Serviço público municipal é uma máquina eleitoreira que prioriza interesses pessoais em detrimento do servidor da prefeitura. Baixos salários contrastam com política tecnocrata de grandes obras, terceirização de serviços e beneficiamento de empresários.
                                    Manifestação dos cirurgiões-dentistas da Prefeitura de Curitiba, em setembro deste ano (Foto: André Rodrigues )
A cultura política brasileira, moldada pela herança patrimonialista colonial implica em um enorme prejuízo social. Os anos de populismo no meio urbano e de coronelismo no meio rural tornaram comum pensar o serviço público como uma propriedade alheia ao povo. Curitiba não está distante desta triste realidade. A capital paranaense foi projetada por gestões que cultivaram a imagem de “cidade modelo”, camuflando as intenções capitalistas[1].

Curitiba priorizou nestes últimos 40 anos o investimento em obras que consideraram exclusivamente a parte estrutural, ainda que muito desta estrutura esteja obsoleta ou ineficiente. A maior parte dos bairros da capital oferece hoje uma unidade de saúde, uma escola, uma creche ou um ponto de ônibus. Mas pensar a cidade apenas do ponto de vista da engenharia urbana, conforme o padrão tecnocrático empregado a partir dos anos 1960, esconde os verdadeiros problemas que aprofundam o grau de diferenças sociais em Curitiba. Refiro-me ao descaso com relação ao serviço público, mais especificamente aquele executado pelos servidores municipais.

Descompasso nos investimentos

Recentemente a prefeitura apresentou sua proposta de Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). Técnicos da administração mostraram onde deve ser investido o montante de R$ 5,1 bilhões, estimados para o ano que vem. Pavimentação, construção de creches e academias ao ar livre. Esta é a prioridade de quem vê a população como números nas urnas da próxima eleição. Não é à toa que, deste montante, estão previstos gastos com publicidade na casa dos R$ 25 milhões.

Os mais de 33 mil servidores municipais de Curitiba convivem hoje com um dos menores salários de toda a região metropolitana, perdendo para cidades muito menores como Araucária, São José dos Pinhais, Pinhais e Campo Largo. O mesmo pode ser constatado no comparativo com as capitais das regiões Sul e Sudeste.

As gestões mais recentes que se sucederam na prefeitura de Curitiba, influenciadas por uma política de Estado mínimo, sobretudo nas gestões de Jaime Lerner, Cássio Taniguchi, Beto Richa e Luciano Ducci, trataram de evitar o aumento do quadro de servidores e arrocharam salários.

A lógica destas administrações procura congelar os valores gastos na folha de pagamento, diante do real crescimento da arrecadação, com a intenção de criar um caixa capaz de potencializar a realização de grandes e visíveis obras[2]. A Linha Verde é um exemplo. Um dos maiores contrastes atuais é a relação entre os salários pagos aos servidores e a arrecadação do município. A prefeitura paga mal, mas tem o quarto maior orçamento do Brasil.




Para camuflar os salários baixos, os últimos prefeitos têm ampliado as políticas de remuneração variável. Ou seja, pagam-se gratificações que correspondem a praticamente metade de todo o salário, condicionando-as às avaliações por desempenho a cargo das chefias.

O servidor que não “anda na linha”, isto é, que realiza greves ou que não “obedece” a chefia, é punido com perda na pontuação da avaliação ou com a perda das gratificações. Hoje, um dos maiores problemas da categoria nos locais de trabalho é a prática do assédio moral, difundido como prática entre os diferentes graus hierárquicos da administração.

Trabalho precarizado

Para quem já anda com o vencimento comprometido com dívidas em bancos, contraídas devido aos baixos salários, perder a gratificação significa entrar no cheque especial, cortar gastos no orçamento familiar ou ter que sujeitar-se a humilhações por meio de empréstimo de dinheiro de amigos ou familiares.

O efeito desta política também reflete diretamente sobre a saúde destes profissionais, incentivados a aumentar a produtividade e a competitividade com os colegas, quebrando a solidariedade no trabalho, o que afeta diretamente o rendimento do serviço prestado. Receosos, os servidores são pressionados a não faltar ao trabalho sob nenhuma circunstância. Licenças para tratamento de saúde, dores no corpo, lesões em ossos, músculos e nervos e, principalmente, problemas psicológicos estão entre os principais problemas enfrentados pelos servidores atualmente.

Dados da Gestão Unificada de Recursos Humanos, da Secretaria de Recursos Humanos (GURHU/RHSO/SMRH), apontam que os transtornos mentais são responsáveis por 29,9% do absenteísmo (falta) no trabalho e 17,1% por doenças osteomusculares, em 2008. No mesmo ano foram registrados 30.785 afastamentos de servidores. O que representa quase 90% do total de trabalhadores da prefeitura.

Atormentados pelas dívidas, pela competitividade, por problemas de saúde e pela discreta pressão de chefias, os servidores são expostos à intensificação do trabalho sob o risco de não realizar o atendimento com a qualidade necessária. Para o prefeito, fica fácil gerir as críticas. Se o atendimento é ruim, a culpa é do servidor; se o atendimento é bom, o bônus é do prefeito. E, neste sentido, é possível dizer que a prefeitura é eficiente.

O marketing é hoje uma dos grandes trunfos da administração, reconhecido por qualquer bom profissional da área. Beto Richa, por exemplo, se vangloria hoje da imagem de administrador moderno, eficiente, otimizador, ou seja lá qual for o termo da moda no meio empresarial. De qualquer maneira, esta imagem revela as intenções de um grupo que procura se perpetuar no poder para manter seus interesses pessoais, utilizando-se das benesses produzidas por quem realmente trabalha pelo povo.

A crise da gestão do trabalho na prefeitura revela-se em momentos de greves e mobilizações de servidores, que têm se tornado cada vez mais constantes, devido ao descontentamento da categoria para com a atual situação.

Quem imaginaria uma greve de guardas municipais ou de cirurgiões-dentistas? Em outros momentos, é possível ver a população revoltada em unidades de saúde, em CMEI’s ou com a segurança pública. Estes fatos também são evidências de que há um desequilíbrio.

Terceirização

Este modelo inclui ainda a terceirização de serviços, que beneficia empresários ao invés de valorizar o trabalhador. Só na saúde, a prefeitura gastou R$ 8,2 milhões terceirizando serviços nesta área em contratos com hospitais particulares para atendimento em nos Centros Municipais de Urgência e Emergência (CMUM’s) em 2010.

Entre os anos de 2010 e 2011, a prefeitura repassou para as empreiteiras mais de R$ 100 milhões. Boa parte das empresas que venceram os processos licitatórios foram doadoras da campanha ao governo de Beto Richa, comprovando que a terceirização é um dos mecanismos mais comuns para a troca de favores entre políticos e empresários.

Assim, não é difícil prever que a obra grandiosa cumpre duas funções com um único objetivo: chama a atenção do eleitorado e garante financiamento para a campanha, garantindo a continuidade de um grupo no poder com interesses particulares.

Enquanto o serviço público continuar sendo gerido por quem pensa primordialmente em votos e no financiamento de campanhas eleitorais, os servidores da Prefeitura de Curitiba continuarão reféns da desvalorização profissional. Não se trata apenas de aumento salarial. É uma questão de se pensar o trabalho e sobre o conceito de gestão.

Ao contrário dos autointitulados gestores modernos e eficientes, a melhoria no serviço público precisa ser pensada como coisa pública, de um ponto de vista social, incluindo aqueles que executam o serviço. Infelizmente, nos últimos anos, a prioridade tem sido outra. As eleições e os interesses privados continuam a orientar a política municipal.


[1] Sobre o assunto ver OLIVEIRA, Dennison. Curitiba e o mito da cidade modelo. Curitiba: UFPR, 2000.

[2] Abordagem parecida pode ser lida em NOGUEIRA, Arnaldo. A liberdade desfigurada: a trajetória do sindicalismo no setor público brasileiro. São Paulo: Expressão Popular, 2005.

 Guilherme Carvalho

Jornalista pela UEPG, Mestre em Sociologia pela UFPR e Doutorando em Sociologia pela Unesp.
GAZETA SANTA CÂNDIDA,JORNAL QUE TÊM O QUE FALAR


Postar um comentário

0 Comentários