TENDÊNCIA A DISTÚRBIOS ALIMENTARES EM BEBÊS PREMATUROS EXIGE ATENÇÃO DAS FAMÍLIAS

Especialistas do Hospital de Clínicas da UFPR apontam fatores de risco na prematuridade e defendem políticas públicas para ampliar o atendimento a crianças com seletividade alimentar
                                                                                                   Foto: Alexander Grey/Unsplash
Apoio familiar e multiprofissional são essenciais para superar desafios alimentares em crianças nascidas prematuras.

por Jéssica Tokarski

Pesquisadores do Ambulatório de Dificuldades Alimentares da Criança (Ada), do Complexo Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná (CHC-UFPR), realizaram um estudo para identificar a prevalência de dificuldades alimentares em crianças nascidas prematuras e analisar fatores que contribuem para o problema. Liderado pelo pediatra Cícero Alaor Kluppel, o trabalho amplia a compreensão sobre o impacto da prematuridade na alimentação e reforça a necessidade de atenção por parte de famílias, profissionais de saúde e formuladores de políticas públicas.

A pesquisa, publicada no periódico Communication Disorders, Audiology and Swallowing (CoDAS), da Sociedade Brasileira de Fonoaudiologia, revelou que mais de 11% das crianças avaliadas, com idades entre seis meses e seis anos, apresentaram dificuldades alimentares, principalmente as que nasceram pequenas para a idade gestacional. O estudo também marca a primeira aplicação da Escala Brasileira de Alimentação Infantil (Ebai) em crianças brasileiras prematuras, instrumento de triagem que avalia aspectos como motricidade orofacial, sensório-oral, apetite, preocupações maternas, comportamento da criança nas refeições, estratégias parentais e reações familiares.

“Crianças nascidas prematuras são mais suscetíveis a problemas como imaturidade de órgãos e sistemas; complicações neurológicas; dificuldades para mamar; doenças cardíacas, pulmonares e gastrointestinais; e déficits no processamento sensorial, ou seja, na forma como lidam com estímulos visuais, táteis, gustativos, olfativos e proprioceptivos”, explica Kluppel.

Segundo o pesquisador, fatores como uso prolongado de suporte ventilatório e fototerapia apresentaram relação direta com limitações nas habilidades motoras e sensoriais orais, além de prejuízos nas relações psicossociais, inclusive no vínculo com a mãe.

A experiência da mãe Letícia Padilha ilustra o impacto da prematuridade. Mãe dos gêmeos Vítor e Gustavo, ela relata que desde cedo enfrentou dificuldades na alimentação dos filhos. “As primeiras foram a introdução da fórmula infantil, a alergia à proteína do leite de vaca (um deles apresentou o quadro até um ano de idade) e a amamentação, pois não consegui amamentar por muito tempo: eles eram pequenos, perdiam peso e preferiam a mamadeira pelo fluxo contínuo e menor esforço em comparação ao peito”.

Atualmente, com cinco anos de idade, os meninos ainda apresentam seletividade alimentar e dificuldades com algumas texturas. “Eles também continuam com distúrbios gastrointestinais”, completa a mãe.
                                                                                                                       Foto: Arquivo Pessoal
Família Padilha com os gêmeos Vítor e Gustavo, atualmente com 5 anos de idade. 

Além disso, desenvolveram alterações cardíacas ainda sem origem identificada; problemas respiratórios, como asma e rinite; e neurológicos. “Eles tiveram atraso de fala e precisaram de fisioterapia para fases motoras como rolar, engatinhar e andar. Desde sempre fazemos acompanhamentos periódicos com gastroenterologista, cardiologista e neurologista”, relata Letícia.

Alimentação não é apenas ingestão de nutrientes

A frase “meu filho não come”, comumente dita por pais, vai além de uma simples preocupação e pode esconder causas orgânicas ou neuropsiquiátricas. “No ambulatório, identificamos que essa queixa é especialmente frequente em crianças autistas, mas também pode refletir interpretações equivocadas de pais que acreditam que o filho não se alimenta, mesmo quando a ingestão é adequada”, afirma Kluppel.

O pesquisador destaca que comer não se resume à nutrição. “A alimentação é a primeira relação estabelecida pelo bebê, é também um ato social. Quando há dificuldade nesse processo, o impacto pode ser profundo nas relações familiares e no desenvolvimento da criança”.

Os dados do estudo reforçam a importância de intervenções precoces e acompanhamento abrangente.

“Não podemos subestimar a gravidade do problema, nem forçar a criança a comer, o que só agrava a situação. O caminho é o diálogo, a paciência e o suporte profissional qualificado”, afirma o pediatra.

Atendimento interdisciplinar e lacunas em políticas públicas

O Ambulatório de Dificuldades Alimentares já realizou cerca de três mil atendimentos desde sua criação, com o objetivo de atualizar práticas pediátricas e adotar uma abordagem mais humanizada.

“Minha geração de pediatras cresceu ouvindo que se deixar a criança passar fome, ela come. Isso é ultrapassado e prejudicial. Precisamos educar médicos e famílias para adotar uma visão mais moderna sobre as dificuldades alimentares”, observa Kluppel.

Entre os casos atendidos, predominam crianças com seletividade alimentar, a maioria delas autistas. Contudo, o médico alerta para a negligência em relação a crianças neurotípicas que também enfrentam dificuldades. “Faltam políticas públicas para conscientização e criação de centros multiprofissionais. Muitas crianças que necessitam de apoio de fonoaudiologia e psicologia acabam sem atendimento”, afirma.

No Brasil, existem apenas dois centros pediátricos especializados no tratamento de dificuldades alimentares, e o ADA, do CHC-UFPR, é o único que atende exclusivamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS), além de receber residentes para estágio.

O trabalho inovador da equipe da UFPR amplia o entendimento sobre as causas e consequências das dificuldades alimentares em prematuros e lança um apelo por mudanças estruturais que garantam atendimento inclusivo e humanizado a todas as crianças que precisam de apoio.

Edição: Camille Bropp

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