SOCIEDADE DO CANSAÇO: O QUE SIGNIFICA O DIAGNÓSTICO MAIS INFLUENTE DO NOSSO TEMPO

Livro de Byung-Chul Han, filósofo sul-coreano, é um retrato contundente de como a lógica do desempenho transformou liberdade em autoexploração
                                                                                                                      Créditos: Wikipedia
                                      Melancolia da Noite I (1896) de Edvard Munch.

Por Raony Salvador

Quando o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han publicou "A Sociedade do Cansaço", em 2010, o texto parecia mais um ensaio curto sobre mal-estar contemporâneo. Quinze anos depois, a obra se tornou referência para explicar algo que afeta trabalhadores de aplicativos, executivos, estudantes, cuidadores, artistas e influenciadores: o esgotamento virou uma regra, e não mais exceção.

No Brasil, o livro ganhou força num país que vive simultaneamente sob jornadas exaustivas de trabalho, como a escala 6x1, hipercompetição e um culto ritualizado à produtividade. Han, professor da Universidade de Berlim, afirma que cada época tem suas próprias patologias. Se o século passado produziu sujeitos disciplinados e angustiados pela repressão, o século XXI fabrica indivíduos deprimidos, ansiosos e exaustos.

No entanto, a diferença, segundo ele, está na lógica que organiza nossas vidas: deixamos de ser sociedades do “não”, baseada no dever, na obediência, na proibição, para nos tornamos sociedades do “sim”, onde o imperativo é poder sempre mais.

Sociedade da obediência x sociedade do desempenho

Han parte de um diagnóstico direto: já não somos pressionados apenas por instituições externas, mas por nós mesmos. O comando não é mais “tu deves”, mas “tu podes”. Esse deslocamento, demonstra ele, é decisivo. No lugar de culpa, entra a cobrança interna; no lugar do chefe rigoroso, surge o sujeito que se explora sozinho, acreditando estar exercendo sua liberdade.

Para o filósofo, o neoliberalismo transformou o trabalhador em “empreendedor de si mesmo”. Esse modelo incentiva a superação permanente, a aceleração contínua, a ideia de que sempre é possível, e necessário, fazer mais. O problema é que a promessa de autonomia esconde uma estrutura de autoexploração mais eficiente que as formas de exploração clássicas.

Sob esse novo regime, fracasso e sofrimento deixam de ser responsabilidade estrutural ou social e passam a ser falhas consideradas individuais. A depressão não aparece mais como sintoma de um mundo opressor, mas supostamente da incapacidade de cada pessoa de se adaptar ao ritmo exigido.
Esgotamento como sintoma de um mundo que não para

Os quadros psíquicos que despontam como epidemia global — burnout, ansiedade e depressão — são, para Han, sinais de um mundo saturado por estímulos. A sociedade ocidental opera num regime “24/7”: nunca se desliga. Mesmo o descanso é capturado pela lógica da performance.

É o que o historiador da arte Jonathan Crary chama de “capitalismo tardio e os fins do sono”. Han concorda e vai além: vivemos em um estado de hiperatividade que evita silenciosamente qualquer forma de pausa profunda. O tédio, que já foi um tempo fértil de criação e reflexão, se tornou intolerável.

A figura que melhor representa essa dinâmica é a do sujeito multitarefa, sempre conectado, sempre disponível, sempre melhorando. A positividade — entendida como excesso de estímulos, possibilidades e exigências — ocupa o espaço que antes era habitado pela negatividade, pelo limite, pelo silêncio.
Hiperatividade como virtude tóxica

Han lê esse excesso de positividade como uma forma de violência neuronal. Não se trata de violência física ou externa, mas de um desgaste produzido por dentro. O sujeito que quer e acredita poder tudo se depara com os limites de um corpo e uma mente que não acompanham o ritmo prometido pelo mercado.

A hiperatividade, celebrada em currículos e ambientes corporativos, aparece como incapacidade de recusar estímulos, de fazer pausas, de estabelecer fronteiras. É o sintoma de uma sociedade que perdeu a capacidade de não fazer.

No cinema, o filósofo identifica na personagem de "Cisne Negro" a metáfora perfeita: uma artista que internaliza a lógica da superação contínua e a leva ao esgotamento extremo. Sua queda não é causada por um opressor externo, mas pela busca obsessiva de perfeição.
                                                      Imagem: Flickr/Arte Cibernética/Coleção Itaú Cultura
Para o autor, a hiperatividade, celebrada em currículos e ambientes corporativos, aparece como incapacidade de recusar estímulos. 

A armadilha da “liberdade coercitiva”

A crítica central de Han toca também no coração do discurso neoliberal: a ideia de que somos livres para escolher nossa trajetória. Para ele, essa suposta liberdade funciona como um mecanismo de coerção sutil. Quem fracassa não pode culpar o sistema, mas deve culpar a si mesmo.

A promessa de autorrealização vira uma forma sofisticada de controle social. Não há mais resistência porque não há um inimigo visível; há apenas a corrida solitária de cada pessoa contra seus próprios limites.

A consequência, diz Han, é devastadora: “O sujeito do desempenho realiza a si mesmo na morte. Realizar-se e autodestruir-se coincidem.”
O colapso como consequência lógica

Para o autor, a sociedade disciplinar produzia loucos e delinquentes; a sociedade do desempenho produz deprimidos e fracassados. Os quadros de esgotamento não são anomalias, mas efeitos previsíveis de um modelo que exige produtividade total.

A medicina também participa dessa engrenagem. Em vez de enfrentar conflitos psíquicos ou condições sociais, proliferam prescrições rápidas — ansiolíticos, antidepressivos, estimulantes — que permitem ao indivíduo continuar funcionando.

É o que Han chama de “sociedade do doping”.
Como resistir ao cansaço

A pergunta que resta, depois do diagnóstico de Han, é: então como escapar da engrenagem do esgotamento?

Diante de um mundo dominado pela aceleração, o filósofo propõe algo que soa quase radical: a reivindicação do tédio, do silêncio, do descanso, da recusa. Ele chama isso de “potência negativa”, a capacidade de dizer “não”, de sustentar a pausa, de resistir ao fluxo de estímulos.

Embora o filósofo não entregue um manual de sobrevivência tão detalhado quanto sua crítica, ele deixa pistas claras sobre caminhos possíveis.

Para Han, os grandes feitos culturais da humanidade nasceram de períodos de atenção profunda e contemplação, não de hiperatividade. A cultura, diz ele, precisa de um ambiente onde a mente possa se demorar, observar, amadurecer ideias. Esse espaço, no entanto, está sendo corroído por um tipo de atenção fragmentada (a hiperatenção) que nos força a saltar de estímulo em estímulo.

Em termos simples:Menos cálculo e mais contemplação;
Menos otimização e mais lazer;
Não o acúmulo infinito de tarefas, mas o cultivo lento.

                                                       Divulgação/Editora Vozes
                                                 

Por Raony Salvador

https://revistaforum.com.br/

GAZETA SANTA CÂNDIDA, JORNAL QUE TEM O QUE FALAR


Postar um comentário

0 Comentários