Durante duas décadas, cientistas brasileiros viveram entre a repressão e a adesão
Por Texto: Sérgio Barbo | Edição: Natalia Viana
“Se é verdade que não há fronteiras para a ciência, também é exato que há fronteiras para os cientistas.” A declaração, feita em de 24 de abril de 1964, poucos dias após o golpe militar, pelo ministro da Saúde Raymundo de Moura Britto ao jornal Correio da Manhã, disfarçava uma ameaça àqueles cientistas tidos como “subversivos” e demonstrava que medidas autoritárias ditariam as regras para a ciência no regime de exceção.
Professores e pesquisadores sofreram prisões, demissões, aposentadorias, censura de publicações, cancelamento de bolsas e de contratações. Alunos foram proibidos de ingressar em cursos e estágios, enquanto projetos e grupos de pesquisa foram desmantelados.
“Muitos pesquisadores foram trabalhar no exterior, outros ficaram, mas produziram menos do que poderiam”, descreve à Agência Pública o professor de história da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Rodrigo Patto Sá Motta, autor do livro As universidades e o regime militar.
Dos 61 cientistas com depoimentos publicados no livro Cientistas do Brasil, editado pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) em 1998, mais da metade foi atingida diretamente por ações ditatoriais.
Por que isso importa?
O legado da ditadura militar segue até hoje nas mais variadas áreas da nossa sociedade. A perseguição a cientistas levou a uma fuga de cérebros e atraso em áreas-chave para o desenvolvimento do país, como física e medicina
Para o historiador Daniel Elian, os efeitos da repressão ainda são sentidos em algumas lacunas e desafios persistentes no cenário científico do Brasil. “Não foram poucos aqueles que saíram do país pela perseguição e instabilidade do ambiente científico. A fuga de cérebros em busca de ambientes mais propícios para o desenvolvimento de suas pesquisas tem reflexos também na formação de novos cientistas. Além disso, o isolamento político do Brasil durante o período dificultou a colaboração científica internacional.”
Presa durante a ditadura por conta de sua militância estudantil, a historiadora Janice Theodoro, ex-coordenadora da Comissão da Verdade da Universidade de São Paulo (USP), concorda. Segundo ela, as áreas de medicina e saúde foram especialmente afetadas. E essa repressão teve um impacto de longo prazo na maneira como essas duas áreas se desenvolveram nos anos seguintes. “Pretendia-se o desmonte da saúde pública, para favorecer o setor privado.”
Maurício Garcia de Souza e Roberto Navarro/Alesp
Janice Theodoro, historiadora e ex-coordenadora da Comissão da Verdade da USP, foi presa na ditadura por militância estudantil
Já a jornalista científica Mariluce Moura, ex-assessora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e criadora da revista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), acredita que a ciência brasileira perdeu cérebros brilhantes em todas as áreas científicas, mas em especial na educação, na filosofia e nas humanidades em geral. “Mais do que isso, a ditadura levou as instituições de ensino e pesquisa e as agências de fomento do país a se fecharem mais e mais para se protegerem.” Isso levou, segundo ela, a uma perda de visibilidade na imprensa sobre nossa produção acadêmica. “Vide todas as matérias saudando César Lattes nos anos 1940 ou cobrindo a vinda de Einstein ao Brasil, vide as notícias de ciência no Estadão até os anos 1950”, diz ela. “[A ciência] perdeu inteiramente a conexão com a base da sociedade.” Ex-militante da Ação Popular Marxista Leninista (APML), presa e torturada em 1973, Mariluce foi demitida pelo MEC de seu cargo de professora na Universidade Federal da Bahia (Ufba), em 1975.
Estima-se entre 800 e mil o número de pesquisadores perseguidos durante o período, segundo a Comissão Nacional da Verdade.
Inquérito Policial Militar nas universidades
A exclusão de vozes dissidentes foi a primeira medida tomada pelos novos donos do poder. Depois dos sindicatos e das organizações de camponeses, as instituições universitárias foram seus alvos prioritários. Isso porque, na visão do regime, as universidades haviam se tornado campo para revolucionários e esquerdistas.
A partir de abril de 1964, por meio de decreto, comissões de Inquérito Policial Militar (IPM) foram instaladas em faculdades e instituições científicas em busca de elementos considerados dissidentes ou corruptos, independentemente de seu status curricular. Algumas das comissões eram coadministradas por membros da própria instituição, como no caso da Escola Paulista de Medicina (EPM), dirigida pelo professor e cientista Otto Bier, cofundador da SBPC, diretor do Instituto Biológico (de São Paulo) e do Instituto Butantan.
“Houve professores que se aproveitaram da situação de arbítrio para simplesmente livrar-se de concorrentes e ocupar espaços de poder, alavancar carreiras”, avalia o psicanalista Reinaldo Morano, ex-preso político e ex-presidente do Centro Acadêmico da Faculdade de Medicina da USP. “Certas faculdades se tornaram antros de mediocridades, terra arrasada, e nunca se recuperaram.”
Uma das primeiras vítimas dos inquéritos foi o diretor da EPM (de 1959 a 1963), à época reitor da temporária Universidade Federal de São Paulo (UFSP), o médico patologista Marcos Lindenberg. Fundador do Instituto de Medicina Preventiva (o primeiro do país) e do Instituto de Biologia da entidade, ele teve seu mandato cassado em 13 de abril de 1964, com perda de cargo público.
Lindenberg foi o principal responsável pelo processo de federalização da EPM, que deu origem à breve UFSP. Contudo, a criação da universidade foi revogada pelo governo militar: o projeto de universidade federal materializou-se somente 30 anos depois, no final de 1994, com a fundação da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
A seu favor, o regime militar utilizou os serviços do ex-diretor da Faculdade de Direito da USP, o jurista Luís Antônio da Gama e Silva, reitor da universidade paulista que se tornou ministro da Educação e da Justiça naquele mesmo ano de 1964. Redator do AI-5, Gama e Silva foi autor de leis e ajudou a idealizar práticas ditatoriais adotadas no período, como a formulação da Operação Bandeirante (Oban), órgão de investigação e repressão precursor do DOI-Codi.
Responsável direto pelas listas de cassações, Gama e Silva se tornou reitor da USP em 1963 e foi reeleito em 1966. Em 1964, exerceu brevemente as funções de ministro da Educação e da Justiça, e três anos depois foi novamente convocado para o Ministério da Justiça – para onde levou membros do Comando de Caça aos Comunistas (CCC), como seu sobrinho, que era um dos fundadores do grupo paramilitar.
Ex-colega de Gama e Silva no Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes) – uma associação de classe formada por empresários brasileiros e estrangeiros, banqueiros, acadêmicos conservadores e militares para desestabilizar o governo Goulart com apoio da CIA –, o jurista Miguel Reale assumiu a reitoria da USP em 1969. Reale elevou o nível de vigilância na universidade ao instalar, em 1972, a Assessoria Especial de Segurança e Informação (Aesi), órgão responsável por vigiar a comunidade acadêmica. Encarregado do gabinete, Krikor Tcherkesian enviou centenas de informes para o Serviço Nacional de Informações (SNI), Forças Armadas e polícias.
Dos 434 mortos e desaparecidos políticos enumerados pela Comissão Nacional da Verdade, 47 tinham relação com a USP, mais de 10%.
Reprodução
Documento do Dops elenca professores e estudantes “subversivos”
Grandes cientistas perseguidos
A repressão contra cientistas teve início dias depois do golpe de Estado.
Em 9 de abril, com o primeiro Ato Institucional (AI), quatro cientistas de renome foram cassados: o antropólogo e sociólogo Darcy Ribeiro, o economista Celso Furtado, o médico, geógrafo e cientista social Josué de Castro e o historiador Nelson Werneck Sodré – exceto pelo último, todos ligados ao governo de João Goulart.
Naqueles primeiros anos, um dos casos mais emblemáticos de demissões, entre tantos, foi o do físico Roberto Salmeron. Ligado originalmente à USP, ele trabalhou depois no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), um dos primeiros centros de pesquisas científicas. Trabalhou, depois, na Organização Europeia para a Investigação Nuclear (Cern), na França, o maior laboratório de física de partículas do mundo. Voltou ao Brasil no começo dos anos 1960 para integrar-se ao sonho da formação da Universidade de Brasília (UnB), que, idealizada por Darcy Ribeiro, previa usar a ciência e a pesquisa básica para o avanço sociocultural do país.
Reprodução/ Acervo Fundação Darcy Ribeiro
Darcy Ribeiro (à esq.) serviu como Ministro da Educação e da Casa Civil durante o governo de João Goulart
“Ante as perseguições de 1964 e 1965 à universidade, Salmeron juntou-se aos 223 professores que protestavam em defesa da UnB e teve que deixá-la. Em 1966 deixou definitivamente o Brasil e foi refazer a vida na França”, explica Mariluce Moura.
Outro episódio, relativo a Mário Schenberg, então considerado o maior físico teórico do país, demonstra que para a ditadura a atuação política, mesmo que ínfima, era mais importante do que a relevância profissional e científica. Pioneiro da astrofísica brasileira e ex-deputado do PCB, Schenberg foi preso por 50 dias após a invasão policial na Faculdade de Filosofia, Ciência e Letras (FFCL) da USP, em abril de 1964. Sua prisão deslanchou uma série de protestos de cientistas de todo o mundo. Em 1969, ele foi aposentado e proibido de entrar no campus da universidade e, na década seguinte, continuou a ser alvo de vigilância e ameaças.
“Mário Schenberg pretendia criar um laboratório de estudos sobre semicondutores, visando encaixar o país num futuro cenário internacional. A pesquisa em semicondutores é o que levou à construção de computadores e à tecnologia que veio depois: celulares, redes de internet… Ou seja, ele foi visionário”, explica a física Vera Bohomoletz, do Instituto de Física da USP.
“Ele conseguiu um aumento substancial de vagas para formação de físicos na USP. Sua iniciativa foi prática, pois ele pretendia ter mais gente num departamento voltado para a física.”
Para ela, a ditadura impediu uma política de Estado que favorecesse o desenvolvimento da tecnologia e a produção de equipamentos, já que seu idealizador havia sido afastado.
“O departamento cresceu, desenvolveu pesquisa básica, tornou-se importante e publicou nas revistas internacionais, mas não serviu para o desenvolvimento da física aplicada, necessária para a tecnologia”, relata. Hoje, diz ela, o curso de Física da USP recebe 135 estudantes por ano, mas seus graduados atuam no mercado financeiro e em desenvolvimento de programas para empresas, “mas quase nunca no desenvolvimento da tecnologia”.
Acervo/IFUSP
Mario Schenberg, o maior físico teórico do Brasil, foi preso por 50 dias, gerando protestos globais na comunidade científica
“O pensamento de desenvolver a ciência, para fortalecer o país e seu desenvolvimento tecnológico, desapareceu”, lamenta Vera, vítima indireta da repressão, por ser filha de pais, cientistas do Butantan perseguidos pelo regime. Bohomoletz, após ter cursado um ano na USP, teve que completar seus estudos na Escócia.
Por vezes, não era necessária uma expulsão oficial para ter uma baixa na ciência. Colega de Schenberg e cientista fundador do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) em 1950 – considerado uma das melhores instituições de ensino superior do país –, Paulus Aulus Pompeia encontrou, em 1965, o ITA tomado pelo estigma do golpe de Estado: alunos e professores haviam sido desligados e os que permaneciam viviam ameaçados pelo então diretor-geral. Em desacordo com a diretoria e frustrado ao ver grande parte de seu trabalho destruído, o físico solicitou sua demissão em 1966.
Outra perda para a ciência nacional ocorreu com o expurgo do presidente da Sociedade Brasileira de Física (SBF) José Leite Lopes. Articulador da criação de instituições como CBPF, CNPq e a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), ele era crítico do programa nuclear com fins militares, foi perseguido em 1964 e compulsoriamente aposentado em 1969, quando preparava a instalação de um acelerador de partículas no Departamento de Física da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O acelerador seria instalado na universidade apenas décadas depois.
Pouco antes de sua demissão, foi avisado pelo embaixador americano de que estava numa lista de pessoas a serem assassinadas. Leite Lopes partiu às pressas para os Estados Unidos e depois se transferiu para a França, onde permaneceu por vários anos.
Fuga de cérebros
Em 1967 e 1968, num interregno menos austero do regime, um respiro para a ciência sobreveio com a “Operação Retorno”, um movimento que buscou atenuar a “fuga de cérebros” e trazer de volta profissionais que estavam atuando no exterior. O movimento foi promovido pela SBPC, pelo Ministério das Relações Exteriores e por setores mais desenvolvimentistas da ditadura – que àquela altura procurava investir no ensino superior e em ciência e tecnologia.
Mas o retorno de cientistas teve breve existência. Com o crescimento dos movimentos estudantis e, sobretudo, com a implantação, em 13 de dezembro de 1968, do AI-5, ato que conferia plenos poderes ao Executivo, nova caça aos cientistas “comunistas” foi empreendida.
Entre os anos de 1968 e 1973, o AI-5 puniu 168 professores, pesquisadores e intelectuais, de acordo com o historiador Daniel Elian Reinaldo Morano, ex-presidente do Centro Acadêmico da Faculdade de Medicina da USP, lembra que o Ato Complementar 75, baixado após o AI-5, “proibia os cassados de serem contratados por qualquer instituição de ensino que recebesse verba com origem nos cofres públicos, banindo-o das maiores faculdades e, assim, forçando-os ao exílio”.
Um exemplo foi o biomédico Sebastião Baeta. Ele havia retornado ao Brasil em 1968, depois de um período de exílio na Europa. Após ter sido perseguido por Otto Bier na EPM, onde foi exonerado de seu cargo de professor em 1964, Baeta sofreu processo persecutório semelhante no Instituto Butantan, ao ser denunciado ao Dops por outro cientista, o bioquímico Gastão Rosenfeld, líder de um movimento de intelectuais que apoiavam os militares.
Acervo/ Instituto Butantã
Sebastião Baeta e Olga Bohomoletz retornaram ao Instituto Butantã em 1984
Em 1968, com o AI-5, Baeta e sua esposa, Olga Bohomoletz, militante do PCB, tiveram seus cargos de pesquisadores no Butantan cassados. Assim, o retorno ao exílio foi a única opção que restou ao casal para exercer a pesquisa científica. De volta ao Brasil, ambos, já com idade avançada, foram recontratados pelo instituto em meados dos anos 1980.
O único registro de cassação no Butantan foi o do casal Baeta. Em 1981, alinhado com a ditadura brasileira, o instituto forneceu toxinas para o Instituto Bacteriológico do Chile, então envolvido no projeto de armas bioquímicas do ditador Augusto Pinochet, conforme detalhou investigação da Pública.
Assim, muitos dos que haviam retornado ao país voltaram ao exílio. Por outro lado, alguns pesquisadores foram impossibilitados de usufruir de bolsas ou cursos no exterior.
“Fui detido por três vezes na Oban, quando era bolsista da Fapesp junto ao Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP [FMUSP]”, conta à Pública o professor e médico sanitarista Moisés Goldbaum, ex-superintendente de Desenvolvimento Social do CNPq.
“Não houve maiores influências negativas na minha trajetória profissional”, diz ele. “Entretanto, ao solicitar bolsa para participar de curso nos Estados Unidos, em 1972, junto ao Ministério da Saúde/Organização Panamericana de Saúde, por razões até hoje desconhecidas, não fui contemplado.”
Reformando a produção científica
Acadêmicos de todo o Brasil sabiam que ousar discordar da cartilha dos militares trazia como consequência a perseguição. Em 1965, o ministro do Planejamento Roberto Campos, ante a solicitação de cientistas pela criação de um Ministério das Ciências, defendeu que “os institutos de pesquisa deveriam ser órgãos de execução, enquanto os órgãos de pesquisa deveriam ser as universidades”. Cientistas que sugeriram a criação do ministério, muitos deles pesquisadores do Instituto Oswaldo Cruz, foram acusados de subversão e de conspiração contra o Estado.
Enquanto punia cientistas, professores e alunos, o governo investia estrategicamente no binômio ciência-tecnologia e no ensino superior, ampliando a pós-graduação e promovendo a reforma universitária em 1968, com a criação de novos departamentos e o fim da cátedra vitalícia, um cargo em que o professor tinha emprego garantido sem possibilidade de demissão, algo que existia desde a época do Império.
O professor Rodrigo Patto Sá Motta considera como principal legado da ditadura “o estrago gerado à pesquisa pela perseguição a pesquisadores competentes, e o efeito negativo provocado pela ênfase nas áreas com conhecimento imediatamente aplicável a projetos econômicos, em detrimento de outras menos rentáveis do ponto de vista material”.
Isso porque o projeto tecnocrático privilegiava a pesquisa dentro da pós-graduação e a criação de cursos de formação profissional, de forma que atendesse aos interesses dos empresários.
O sistema político, assim, “simultaneamente foi destrutivo e reformador, embora o seu impulso modernizador tenha sido viabilizado por meios repressivos”, diz Motta. O historiador considera que uma das principais novidades do período foi a criação da Finep e de alguns fundos novos para financiar a pesquisa.
“Os militares tinham a perspectiva de tornar o país uma potência e perceberam que o crescimento econômico seria ótima estratégia para legitimar a ditadura.”
Repressão no Instituto Oswaldo Cruz
O caso mais notório envolvendo intervenções autoritárias em uma instituição científica se deu com o Instituto Oswaldo Cruz (IOC), embrião da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Em 1o de abril de 1970, dez pesquisadores seniores do instituto, alguns fundadores da SBPC, foram cassados e tiveram seus direitos políticos suspensos. Com isso, o instituto perdeu 14% do seu quadro de pesquisadores – o episódio foi tão traumático para a comunidade científica que foi chamado de o “Massacre de Manguinhos”, nome do bairro onde se situa a entidade, no Rio de Janeiro.
Em 1964, o médico Raimundo de Moura Britto, tão logo se tornou ministro da Saúde, exigiu a entrega das funções de chefia de sete dos dez cientistas que viriam a ser cassados. “As ideias exóticas que em Manguinhos foram infiltradas serão banidas definitivamente […] Manguinhos de amanhã será uma colmeia de trabalho, e não como queriam alguns: um foco de ideias subversivas”, declarou o ministro à imprensa.
Mesmo após uma comissão de inquérito presidida pelo cientista Olympio da Fonseca, a fim de investigar supostas ações subversivas e desvios administrativos, nada foi ajuizado contra eles.
“Não se falava de política no instituto”, diz o pesquisador Pedro Jurberg, que foi estagiário do doutor Hugo de Souza Lopes no início dos anos 1960. Ele e seu irmão, José Jurberg, fazem parte do grupo de remanescentes à cassação.
Nos anos seguintes, o diretor empossado por Britto, o biólogo Francisco de Paula da Rocha Lagoa, formado na Escola Superior de Guerra (ESG), centralizou a alocação de verbas e empreendeu sucessivas perseguições a outros cientistas que seguiam na instituição. Entre as estratégias de coerção estava o uso de delações e cartas anônimas enviadas ao Ministério da Saúde denunciando a atuação de elementos “subversivos” no instituto.
Instituto Oswaldo Cruz
A demissão dos dez cientistas pelo diretor Rocha Lagoa é conhecida como Massacre de Manguinhos
Nem o filho mais novo do fundador da instituição, Walter Oswaldo Cruz, escapou ileso à sanha autoritária: seu auxílio internacional para pesquisa foi bloqueado e seu laboratório de patologia, que reunia cerca de 60 pessoas, lacrado. Em 1967, teve um infarto fulminante e morreu aos 57 anos.
Quando se tornou ministro da Saúde, em outubro de 1969, na mesma data da posse do presidente Garrastazu Médici, Rocha Lagoa finalmente logrou seu intento de expurgo político. No ano seguinte, com base no AI-5, dez cientistas – Haity Moussatché, Herman Lent, Moacyr Vaz de Andrade, Hugo de Souza Lopes, Augusto Cid Mello Perissé, Sebastião José de Oliveira, Fernando Braga Ubatuba, Tito Cavalcanti, Masao Goto e Domingos Arthur Machado Filho – tiveram seus cargos cassados do Instituto Oswaldo Cruz e foram impedidos de trabalhar nas esferas federal, estadual e municipal.
Reprodução
Capa do processo contra o cientista Herman Lent
“No momento da cassação, Haity Moussatché e sua equipe desenvolviam um trabalho sobre hormônios dos insetos em colaboração com professores da Faculdade de Farmácia da UFRJ, e outro relacionado a componentes químicos do veneno da cobra cascavel”, descreve o historiador Daniel Elian, autor do livro Massacre de Manguinhos – a ciência brasileira e o regime militar. . “Fernando Ubatuba preparava uma pesquisa a respeito do metabolismo das bactérias e auxiliava o Serviço de Saúde Animal do Ministério da Saúde a criar um laboratório de controle de medicamentos veterinários. Masao Godo e Moacyr Vaz desenvolviam pesquisa sobre a ação antitumor de substâncias produzidas por fungos. Todas essas linhas de pesquisa foram interrompidas.”
José Jurberg foi um dos 12 indiciados pelo inquérito militar promovido por Rocha Lagoa em 1970. Nada foi apurado pela comissão, e Jurberg foi considerado um “comunista recuperado”.
“O primeiro ato do ministro foi me desalojar e me enviar para um hospital velho”, relembra o pesquisador. “E ainda deixou outro recado: que se eu publicasse um trabalho com o Herman Lent ou qualquer dos cassados, ele ia me transferir para Piauí”.
Na década de 1970, o espaço físico da instituição estava entregue ao abandono, com esgoto a céu aberto, lixo, sucata acumulada e material desperdiçado e até casos de assalto e vendas de drogas dentro de seu campus. A Coleção Entomológica – que reúne espécies de insetos – foi desmantelada, com parcela de seu acervo transferido para o porão do Hospital Evandro Chagas e o Museu de Zoologia, da USP.
O prejuízo não foi maior graças ao zelo de José Jurberg em resguardar boa parte do material. Após 35 anos de afastamento, a Coleção Entomológica retornou à Fiocruz somente em 2005.
Rocha Lagoa, por sua vez, após ter pedido demissão do Ministério da Saúde (sob acusação de corrupção) em 1972, foi contratado como consultor científico pela Johnson & Johnson e, posteriormente, pelo Laboratório Silva Araújo-Roussel – indústrias que já haviam financiado o Ipes.
Em 1978, Herman Lent lançou o livro O Massacre de Manguinhos, termo que foi então adotado pela comunidade científica para definir o episódio de repressão. Os cientistas cassados foram restituídos a suas funções na fundação em uma cerimônia ocorrida em 15 de agosto de 1986, que contou com a presença de Darcy Ribeiro.
Em 15 de março de 1985, ano da redemocratização, finalmente foi criado o Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), uma demanda antiga da comunidade científica. O ministério incorporou duas importantes agências de fomento à pesquisa, o CNPq e a Finep.
Parasitologia foi tida como “ciência comunista”
Dentro da Universidade de São Paulo, uma das faculdades que mais sofreram expurgos foi a de Medicina. Em 1964, uma carta anônima de “acadêmicos democratas cristãos” endereçada ao governador Adhemar de Barros e ao Dops apontou, entre outros, os parasitólogos Luiz Hildebrando Pereira da Silva, Ruth e Victor Nussenzweig e o fisiologista Thomas Maack como comunistas ativos. Maack foi acusado, inclusive, de carregar a filha pequena num cesto vermelho. Enquanto esteve preso, sua filha foi expulsa da creche do Hospital das Clínicas.
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Trecho da carta anônima de “acadêmicos democratas cristãos” da USP
Ele, Luiz Hildebrando Pereira e o biomédico Boris Vargaftig foram confinados no navio-prisão Raul Soares, ancorado em Santos, sem que a família soubesse seu paradeiro. O velho navio foi uma das primeiras prisões utilizadas pela ditadura, onde eventualmente os médicos encarcerados ajudavam outros presos políticos.
Após terem sido absolvidos, todos os três partiram para o exílio e construíram carreiras de prestígio no exterior. Luiz Hildebrando veio a ocupar o cargo de diretor do Instituto Pasteur, em Paris.
O departamento de Medicina mais vitimado foi o de Parasitologia. Intitulado de “vermelho”, tanto por admiradores como pelos detratores, se caracterizava pela expressiva presença de militantes e simpatizantes do Partido Comunista Brasileiro e se conformara em torno da liderança de Samuel Barnsley Pessoa, maior autoridade em saúde rural do país.
Professor e colaborador de parte considerável dos atingidos pelas perseguições na Medicina da USP, Samuel Pessoa participou da Comissão Científica Internacional que denunciou, em 1952, o uso de armas químicas pelos EUA – o que lhe valeu perseguição perene pelos anticomunistas e oportunistas daqui e do exterior, sobretudo a partir de 1964, quando teve seu departamento esvaziado.
Em 1975, aos 77 anos, foi levado encapuzado ao DOI-Codi e submetido a severo interrogatório. Meses depois, viria a falecer.
Segundo a professora Janice Theodoro, “havia pessoas na USP, especialmente do PCB, que pensavam numa política de saúde pública. A Parasitologia tinha uma preocupação com a medicina socializante”.
No relatório da Comissão da Verdade da USP, o doutor e professor Erney Plessmann descreve a situação: “O Departamento de Parasitologia nunca adotou posição política. Foi o envolvimento do Departamento no combate às endemias brasileiras que lhe deu a fama de comunista, uma vez que esse combate envolvia a denúncia da pobreza e das precárias condições sanitárias da população”.
“A Parasitologia era a principal escola da América Latina e foi duramente golpeada. Houve um hiato na formação de novos pesquisadores. Foi um prejuízo grande para a USP e São Paulo, que levou um tempo para se recuperar”, considera Pedro Paulo Chieffi, parasitologista com passagem pela Fiocruz, formado em 1969.
“Ruth Nussenweig criou a base para a vacina de malária. O Brasil era um país promissor na esfera científica e cultural, mas nos anos 1970 a faculdade era um território de mediocridade, de ideias tacanhas.”
GAZETA SANTA CÂNDIDA, JORNAL QUE TEM O QUE FALAR
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