LEI DO MARCO TEMPORAL JÁ TRAVA NOVAS DEMARCAÇÕES, DIZ SONIA GUAJAJARA

Apesar de contrariar visão do STF, lei pró-ruralistas faz Funai reanalisar casos; governo estuda indenizar por terra nua

Por Por Anna Beatriz Anjos

O abril indígena, mês que celebra a luta dos povos originários, começa com o processo de demarcações “travado” pela lei do marco temporal, afirma em entrevista exclusiva à Agência Pública a ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara. A norma estabelece, entre outros pontos, a data de promulgação da Constituição Federal, 5 de outubro de 1988, como parâmetro para o reconhecimento das terras indígenas (TIs) pelo governo federal.

Publicada em dezembro, a lei 14.701 tem obrigado a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), responsável pelo rito de demarcação, a reavaliar parte dos cerca de 760 procedimentos em curso no órgão, segundo Guajajara. “A lei acaba realmente travando parte do processo por conta dessa necessidade de analisar caso a caso”, destaca. “Mas as demarcações não ficam impedidas pela lei porque são uma previsão constitucional. Continuamos trabalhando nos processos.”

A adoção do marco temporal se contrapôs a uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que havia rejeitado a tese em setembro, o que criou um imbróglio jurídico. O governo espera que a Corte derrube a lei, cuja aprovação no Congresso foi patrocinada pela Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), a chamada bancada ruralista. Três Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) com esse objetivo tramitam no STF, sob relatoria do ministro Gilmar Mendes.

Por que isso importa?
A demarcação dos territórios tradicionais é pauta histórica dos povos indígenas e um direito garantido a eles pela Constituição, mas sofreu revés com aprovação da lei que estabelece um marco temporal para o reconhecimento dessas áreas
De acordo com a ministra Sonia Guajajara, a lei já está dificultando novas demarcações; ela admite que promessa de reconhecer todas as terras reivindicadas pode não ser alcançada até o fim do mandato de Lula

Diante do cenário adverso, Guajajara admite que se torna distante o cumprimento da promessa feita pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) de demarcar todas as terras indígenas até o fim do mandato. “Não dá para eu, enquanto ministra, garantir que em dois anos e oito meses se vá demarcar todas as terras indígenas no Brasil, uma vez que o passivo é muito grande”, declara.

Ela diz, entretanto, que o ministério espera o anúncio do reconhecimento de novos territórios ainda neste mês. De uma lista de 14 áreas prontas para a homologação – a etapa final do procedimento demarcatório – elaborada ainda em 2022 pelo grupo de transição de governo, apenas oito tiveram os processos concluídos em 2023. Conforme a Pública apurou junto ao Ministério dos Povos Indígenas, as seis que ainda faltam não seriam afetadas pela lei do marco temporal pois já tinham suas portarias declaratórias publicadas antes da norma começar a valer e poderiam ser entregues a qualquer momento.

O governo também estuda uma estratégia para tentar contornar, ao menos em parte, os atritos com o agronegócio na disputa de áreas reivindicadas por povos indígenas. De acordo com Guajajara, busca-se viabilizar um modelo para indenizar proprietários de imóveis incidentes sobre as TIs pelo valor do terreno, a chamada “terra nua”, e não apenas pelas benfeitorias realizadas na propriedade – a construção de casas ou cercas, por exemplo –, como determina atualmente a Constituição. A medida, encampada pelos parlamentares ruralistas, enfrenta resistência entre o movimento indígena.

“O debate tem que ser feito, não tem como fugir dele”, argumenta a ministra. Ela defende a proposta como maneira de garantir o direito constitucional dos povos indígenas ao território, especialmente em áreas com conflitos históricos entre as comunidades e fazendeiros, como o Mato Grosso do Sul.

Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista.
                                                                  João Canizares/Agência Pública
A ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, espera que Supremo derrube a lei do marco temporal

Apenas 8 das 14 terras indígenas prontas para homologação apontadas pelo governo de transição tiveram seus processos concluídos até agora. Qual o maior entrave para que essas homologações ocorram?

Tivemos seis anos de paralisação total [nas demarcações] por decisão política do governo [nas gestões de Michel Temer e Jair Bolsonaro]. Em oito meses de governo Lula, finalizamos a demarcação de oito terras indígenas a partir da articulação do Ministério dos Povos Indígenas com a Funai. O ano passado foi muito atípico, tivemos a construção do ministério; a articulação inicial com o Congresso Nacional, que tem uma bancada forte contrária à demarcação das terras indígenas; o julgamento do marco temporal no Supremo Tribunal Federal, que levou tempo até divulgar sua decisão. Logo após a decisão do Supremo, veio o PL no Congresso Nacional [o projeto de lei 2.903/23, que institui, entre outros pontos, o marco temporal para as demarcações], que tramitou até o final do ano. Foi um ano em que ficamos acompanhando essas discussões, e isso ajudou a paralisar um pouco o andamento dos processos que já estavam preparados [para a homologação]. Pela Constituição, é lógico que esses processos que passaram por todas as etapas já estariam prontos. Mas, segundo a nova lei [14.701, oriunda do PL 2.903/23], é necessária uma reanálise, e o governo achou mais prudente esperar o resultado para avançar com as demarcações.

A lei do marco temporal foi promulgada apenas no fim do ano passado. A senhora considera que o processo de discussão da lei, por si só, contribuiu para diminuir o ritmo das demarcações no governo?

Contribuiu. No meio desse processo, todo mundo fica mais cauteloso. Em vez de abrir espaço para avançar em seguida, se acirrou ainda mais a discussão em relação aos processos demarcatórios. Trabalhamos muito a aproximação com parlamentares para explicar que, quando se fala demarcação de terras indígenas, não se trata de um monstro, mas de um direito constitucional adquirido, e que os indígenas têm um passivo muito grande para que esse direito seja acessado. Constatamos que há muita desinformação a respeito do processo demarcatório e de suas etapas. Um exemplo é que, no início do novo governo, a atribuição de publicar a portaria declaratória das terras indígenas [uma das etapas do processo de demarcação] estava com o Ministério dos Povos Indígenas. Mas na votação no Congresso [da medida provisória de reorganização dos ministérios, em junho do ano passado], ela foi retirada daqui e retornou ao Ministério da Justiça. Havia um entendimento geral de que, ficando aqui, a gente iria simplesmente assinar todas as demarcações. E, na verdade, há um processo composto por várias etapas, e aqui seria apenas uma.

Como o ministério tem atuado para que as seis homologações pendentes saiam o mais rapidamente possível? Há a intenção de anunciá-las neste mês, durante o ATL [Acampamento Terra Livre – a maior mobilização dos povos indígenas do país, que acontece em Brasília entre 22 e 26 de abril]?

Estamos trabalhando para destravar e avançar com esses processos pendentes, assim como para atualizar outros processos que estavam paralisados ou para instaurar alguns. A Funai segue fazendo os estudos, neste ano houve a publicação de três relatórios [como parte da etapa de identificação de terras indígenas, o primeiro estágio do processo de demarcação], seguimos atualizando os processos que não são afetados pela lei 14.701. E estamos na articulação com a Casa Civil e o Ministério da Justiça para que possamos fazer algumas entregas ou na instalação do Conselho Nacional de Política Indigenista, nos dias 17 e 18 de abril, ou no ATL. Estamos preparando um pacote, numa corrida contra o tempo para que os processos sejam finalizados.

Para além dos territórios prontos para a homologação, há mais de 750 em diferentes etapas de regularização, segundo a Funai. No ATL do ano passado, o presidente Lula prometeu demarcar todas as terras indígenas até o fim do mandato. A senhora acha possível dar conta desse passivo em dois anos e oito meses?

A demarcação é um processo complexo. Além de envolver várias etapas, é um tema que gera grande repercussão, [mexe com] muitos interesses. Não dá só para assinar e achar que está tudo bem. A lei 14.701 tem exigido uma análise caso a caso [dos processos demarcatórios]. Embora a Constituição Federal garanta aos indígenas o direito às terras tradicionalmente ocupadas e a gente trabalhe para assegurá-lo, agora é preciso seguir essa orientação [dada pela lei, que estabelece o marco temporal]. E aí há toda uma complexidade, por exemplo, de a Funai não ter gente suficiente para fazer os estudos; o próprio MJ, só no final do ano, conseguiu constituir uma equipe para trabalhar nos processos de demarcação. E depois da análise no MJ ainda tem a etapa de articulação com a Casa Civil. Não dá para eu, enquanto ministra, garantir que em dois anos e oito meses se vá demarcar todas as terras indígenas no Brasil, uma vez que o passivo é muito grande. Temos terras indígenas com o processo em andamento há 40 anos, outras ainda nem têm um processo constituído. O que temos é a certeza de que vamos trabalhar para assegurar esse direito aos povos indígenas, porque, por mais hoje exista a lei 14.701, ela não pode se sobrepor à Constituição. E como o Supremo afirmou a inconstitucionalidade do marco temporal, seguimos trabalhando com os dispositivos legais que temos.
                                                       João Canizares/Agência Pública
Guajajara diz que governo prepara anúncio de novas homologações para o abril indígena

Na prática, como o ministério e a Funai estão lidando com esse imbróglio jurídico que se criou entre a lei e a decisão do STF?

A lei acaba realmente travando parte do processo por conta dessa necessidade de analisar caso a caso. Ela estabelece que, para novas demarcações, é necessário comprovar que, em outubro de 1988, havia presença indígena na área ou o renitente esbulho, ou seja, a existência de conflito [que tenha afastado os indígenas da terra] nessa mesma data. Esses requisitos não estão na Constituição Federal [como condicionantes para a demarcação] e criam um elemento adicional de análise ao processo. Mas as demarcações não ficam impedidas pela lei porque são uma previsão constitucional. Continuamos trabalhando nos processos, acreditando que o Supremo vai reafirmar sua posição de inconstitucionalidade, essa é a nossa esperança. Isso acontecendo, a gente avança com os processos que já estarão prontos. Para além dessa cautela, a lei acirrou os conflitos. Em muitas terras indígenas, as pessoas chegam falando que os indígenas têm que sair porque agora o marco temporal está valendo.

A senhora acredita que indenizar os proprietários rurais com títulos válidos no interior de terras indígenas pelo valor da terra nua seja uma alternativa para resolver a queda de braço travada pelos ruralistas com o movimento indígena em relação ao marco temporal?

A indenização e a demarcação devem ser debates diferentes. Até porque existem situações de indígenas que já pediram indenização por terem sido afastados de suas terras por muito tempo e isso nunca foi levado em consideração no processo demarcatório. Temos que garantir o direito constitucional ao território, seguir com o processo de demarcação, e a indenização deve ser feita à parte. Como são realmente muitos os casos [de pessoas que receberam, do próprio Estado, imóveis no interior de terras indígenas], esse processo tem que ser feito entre eles e o Estado e não dentro do processo demarcatório. Esse é o ponto que precisa ser melhor debatido e esclarecido para que nenhuma das partes seja prejudicada.

Mas seria uma maneira de tratar a questão?

O debate tem que ser feito, não tem como fugir dele. Sabemos que muitos que brigam por isso acreditaram que eram donos da terra e, de repente, [descobriram que] ali era um território tradicional indígena. O Estado tem responsabilidade sobre essas pessoas, o Supremo Tribunal Federal orientou isso no julgamento do marco temporal. Trabalhamos para que esse debate seja feito sem influenciar no processo demarcatório.

Existe a intenção de fazer uma espécie de projeto piloto no Mato Grosso do Sul, estado campeão em assassinatos de indígenas no país entre 2005 e 2019, onde há um conflito histórico entre eles e fazendeiros? Em que estágio estão essas negociações? Quais os entraves?

Ali há uma necessidade de se avançar com essa discussão. Há situações de terras que realmente precisam ser desapropriadas, porque foram griladas, e há áreas com títulos válidos. Para estas, é necessário discutir a indenização, se deve-se pagá-la em relação à benfeitoria ou à terra nua. Os povos indígenas não podem só perder, deixar de ter um direito cumprido para beneficiar os não indígenas. Nesse caso, os indígenas estão só perdendo, eles é que são os invasores, e os não indígenas, os cidadãos de bem. Precisamos equilibrar isso e assegurar que o direito territorial seja cumprido. O próprio presidente Lula tem manifestado preocupação com o Mato Grosso do Sul, citado bastante que precisamos resolver a situação dos Guarani e Kaiowá. Estamos buscando essas formas no diálogo com o governo do estado, as lideranças indígenas e as entidades de apoio [aos indígenas] para que achemos um caminho.

Dinheiro para pagar as indenizações é o principal obstáculo?

Essa questão do recurso, de quem paga, também acaba sendo um entrave, porque esse dinheiro não está reservado em nenhum lugar, é preciso definir a política para garantir o recurso no orçamento da União ou dos estados. Isso não está definido, mas o debate está acontecendo. Já conversamos com a ministra do Planejamento [Simone Tebet], com a Casa Civil e com o governo do Mato Grosso do Sul. Não adianta só dizer que vamos pagar a indenização se não temos recurso, porque os indígenas vão continuar sem a terra do mesmo jeito. Essas coisas precisam caminhar juntas.

Existe vontade política no governo federal para viabilizar esses recursos?

Existem a disposição e a sensibilidade de que é preciso achar uma alternativa, por isso estamos fazendo esse debate com cuidado, mas tentando avançar.

Seu ministério foi muito cobrado no início deste ano, quando veio à tona o agravamento da crise entre os Yanomami. Mas sua pasta tem poderes limitados no governo. As Forças Armadas, por exemplo, não agiram como deveriam – falharam em controlar o espaço aéreo, não distribuíram cestas básicas, não corrigiram pistas de pousos danificadas. A senhora avalia que a articulação entre os órgãos do governo melhorou no enfrentamento à crise?

O nosso ministério é apenas um, o articulador, mas as atribuições estão bem distribuídas, cada um sabe bem o seu papel. No ano passado, o problema não foi nem a falta de articulação. Havia muitas coisas a serem feitas e um ano não foi suficiente para estruturar, planejar, garantir o orçamento, executar e concluir [o combate à crise]. Agora já estamos numa etapa de continuidade, não estamos começando do zero. No ano passado, retiramos mais de 80 % dos garimpeiros, acho que isso acabou dando uma certa sensação de tranquilidade de que [o processo] já estava muito avançado. Mas os invasores são ágeis, têm financiadores e acabam voltando com muita facilidade. Antes, eles estavam operando livremente no território, tinham a expectativa de que a atividade ilegal fosse regulamentada e contavam com a conivência do governo federal. Agora, mesmo que tenham voltado, trabalham escondido. Voltaram com barracas camufladas, debaixo das copas das árvores, começaram a trabalhar à noite, a pousar do lado da Venezuela, já que no Brasil estava havendo monitoramento.

A senhora tem um longo histórico de militância no movimento indígena, mas é a primeira vez que ocupa um cargo no Executivo, assim como outros indígenas que atuam hoje no ministério. Pode-se dizer que os indígenas têm construído uma maneira própria de fazer política institucional, à luz de seus modos de vida e culturas? Como tem sido essa experiência?

Não posso dizer que já estamos com essa política ao modo indígena em execução, mas trabalhamos para isso. Antes, tínhamos uma política indigenista, elaborada e executada por não indígenas. Agora estamos numa transição. É primeira vez em quase 60 anos de Funai que temos uma presidência indígena, a primeira vez que temos um secretário de Saúde Indígena articulado pelo movimento [no governo Bolsonaro, a atual deputada federal Silvia Waiãpi, do PL do Amapá, ocupou o cargo, mas sofria oposição do movimento indígena]. A intenção não é emplacar apenas a presença física, mas trazer a cosmovisão indígena, a ideia de reflorestar mentes, que significa conscientizar as pessoas sobre o ser indígena, sobre o papel que os povos e os territórios indígenas exercem para o Brasil e o mundo. Estamos trabalhando para consolidar não apenas o ministério, mas para que as regionais da Funai continuem com os indígenas, assim como os distritos sanitários indígenas. Ainda há muitos desafios, mas a gente chegou e vai abrir espaço para que outros dêem continuidade. E não trabalhamos com a hipótese de o ministério ser extinto [num próximo governo]. Pelo contrário, nosso trabalho é para que ele se fortaleça e continue com o reconhecimento nacional e internacional que tem hoje.

 apublica.org                              



GAZETA SANTA CÂNDIDA, JORNAL QUE TEM O QUE FALAR

Postar um comentário

0 Comentários