OS PÓLOS QUE DEFINEM O PODER NESTE MUNDO


Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político

Ártico e antártica. Ártico, deriva do grego arktos, significa urso e antártica, sem arktos, sem urso.
Parece aceitável, a nós colonizados, que os países do norte do mundo sejam desenvolvidos plenamente e os do sul do mundo subdesenvolvidos, em busca de sua emancipação. O império cognitivo nos ensinou isso desde a mais tenra idade com suas escolas, seus conhecimentos socialmente produzidos, suas verdades universais, o currículo oculto sempre ativo e a linguagem centralizada na escrita.
O que a linguagem e o domínio de sua forma significam para um mundo hierárquico?
Vilém Flusser (1920-1991), filósofo checo-brasileiro, aponta o problema:

“A comunicação humana é um artifício, cuja intenção é nos fazer esquecer a brutal falta de sentido de uma vida condenada a morte. Sob a perspectiva da natureza, o homem é um animal solitário, que sabe que vai morrer, e que na hora de sua morte está sozinho. E potencialmente, cada hora é a hora da morte. Sem dúvida, não é possível viver com esse conhecimento da solidão fundamental e sem sentido. A comunicação humana tece o véu do mundo codificado. O véu da arte, da ciência, da filosofia e da religião ao redor de nós. E o tece com pontos cada vez mais apertados. Para esquecermos nossa própria solidão, nossa morte, e também a morte daqueles que amamos. O homem comunica-se com os outros. É um animal político. Não pelo fato de ser um animal social. Mas sim, porque é um animal solitário incapaz de viver na solidão”.

Mas essa solidão é compensada com a teorização do mundo pelo domínio da linguagem, de um determinismo, um artifício de verificação, de criar verdades. E ao criar as verdades que verifica, imagina que sua soberania é suficiente para redimir a própria vida e a irresolvível solidão.
Para entendermos o urso que define o polo norte e a falta de urso que marca o polo sul, precisamos recorrer a Flusser e ao seu livro mais ambicioso, Vampiroteuthis Infernalis, a conexão que exibe ao humano a linhagem filogenética do polvo vampiro.
Somos nós e o polvo vampiro eucoelomata. “Eucoleomata são compostos de três tecidos: do ectoderma, que os envolve e os define no mundo; do endoderma, que secreta líquidos que digerem o mundo; e do mesoderma, localizado entre a camada definidora e a camada absorvedora do mundo e permite ao animal orientar-se no mundo e agir sobre ele”.

A isonomia filogenética que inscreve nossas formas como humanos-terra de equivalência, só foi interrompida com o surgimento da modernidade, em que os humanos se desgarraram da natureza similar para ocupar um lugar de soberania e de poder.

Se considerarmos a história como uma ferramenta de verificação, de fazer verdades, hegemonicamente para fazer do mundo moderno um avanço para o passado do homem, então precisamos aceitar que nada sabemos do passado anterior à invenção da prensa mecânica por Gutenberg e que antes disso tudo é nebuloso.

Utilizo um princípio do filósofo Jean Baudrillard: “Sou um dissidente da verdade.
Não creio na ideia de discurso de verdade, de uma realidade única e inquestionável.
Desenvolvo uma teoria irônica cujo fim é formular hipóteses. Estas podem ajudar a revelar aspectos impensáveis. Procuro refletir por caminhos oblíquos. Lanço mão de fragmentos, não de textos unificados por uma lógica rigorosa. Nesse raciocínio, o paradoxo é mais importante que o discurso linear.

Para simplificar, examino a vida que acontece no momento, como um fotógrafo. Aliás, sou um fotógrafo.”

Ao anular o discurso histórico por consentir que ele reflete a visão da modernidade e da colonização, abro o passado imediatamente anterior à centralização da vida e procuro evidências fragmentárias como hipóteses repletas de ironia.
Teço então o conceito de humano-terra para distinguir nesse passado da soberania humana pautada pelo privilégio da razão, evidencia moderna da hierarquia e da separação homem-natureza.


O humano-terra é toda forma de vida, independente de raciocínio ou de formulação de linguagem. São os que vivem no modo isonômico, sem que qualquer ideia de superioridade ou de inferioridade marque sua jornada.

Encontrar o estudo de Vilém Flusser foi oportuno, ainda que seu vínculo com as verdades da modernidade não esteja, para ele, em questão. Quer encontrar o momento da ruptura no passado biológico para refundar uma filosofia especular, em que a imagem do polvo vampiro é nossa própria imagem que embrionariamente guarda as hordas sexuais do que já fomos e que a modernidade sequestrou em nome do poder. Não à toa a castração é o elemento fundamental da colonização da mente e dos corpos, erradicando a potência em nome do poder.

Segundo Flusser, “o aspecto mais característico dos Octopoda é, no entanto, a extraordinária complexidade de sua vida sexual.”

“Pouco sabemos a respeito de seu rito durante o coito, de maneira que ignoramos muitos aspectos do processo. Sabemos, no entanto, que o ato do coito ocupa grande parte da vida, é composto de gestos variados (movimentos dos braços, da barriga, emissão de raios, coloração da pele, emissão de secreções químicas), e que tais gestos constituem verdadeiros espetáculos públicos afinadamente estruturados.”

Abdicamos dessa similitude, pois para nós, colonizados, o trabalho ocupa grande parte da vida, não o sexo. Castração religiosa, castração educacional, castração para a eficiência do trabalho, castração para o pensamento livre, castração em nome do consumismo. A história moderna é uma ode à castração em nome da produtividade.
Portanto, voltar nossa atenção para o polvo vampiro pode ser um reconhecimento desse passado que foi erradicado em prol dos discursos ideológicos.

Mas a ideologia não esqueceu das memórias atávicas e ao reordenar o mundo segundo os critérios do império cognitivo criou um mundo que é representação da fusão ancestral com a moderna, em que o norte se encontra acima do mundo, onde se reproduzem os ursos e também local em que o poder parece indiscutível. Já o sul desse mundo, as zonas que na modernidade se sujeitaram à colonização, a música parece traduzir a realidade da ausência dos ursos no polo:

“não existe pecado ao sul do Equador”, 
de Rui Guerra e Chico Buarque.

Não existe pecado
Do lado de baixo do Equador
Vamos fazer um pecado
Rasgado, suado
A todo vapor…
Me deixa ser teu escracho
Capacho, teu cacho
Um riacho de amor
Quando é lição de esculacho
Olha aí, sai de baixo
Eu sou professor!…
Deixa a tristeza prá lá
Vem comer, me jantar
Sarapatel, caruru
Tucupi, tacacá
Vê se me usa, me abusa
Lambuza
Que a tua cafuza
Não pode esperar…
Deixa a tristeza prá lá
Vem comer, me jantar
Sarapatel, caruru
Tucupi, tacacá
Vê se me esgota
Me bota na mesa
Que a tua holandesa
Não pode esperar…

“O gênero Octopodal é representado por 170 espécies, o gênero humano por uma única sobrevivente: liquidamos com as demais”, Vilém Flusser.

*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) escritor e compositor

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