ASHLEY WOOD: A IMPLOSÃO DA IMAGEM



Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político

Iconografia, imagética, artes visuais, depois de mais de quarenta anos na busca por alguma definição da imagem, posso garantir que não há limite capaz de tanger o artista.

Se existe um caminho de exaltação da imagem à semelhança de arte rumo ao céu, também há um caminho de danação rumo ao inferno. Se o primeiro caminho busca alguma forma de mimese, o segundo captura as escuridões da alma, em que as sombras dançam feéricas.

Se o primeiro caminho expressa a explosão da luz, o segundo caminha para sua implosão, como imaginamos um buraco negro no firmamento.

As histórias em quadrinhos são por excelência a linguagem da experimentação, considerando sua vulgarização.

Só mais recentemente os avaliadores da estética encontraram ali um nicho de pesquisas. Mas os consumidores veem há muito esfurigando as páginas em busca das surpreendentes possibilidades do sentimento fora, portanto, do lugar avaliador do pensamento.

Esse sentido, Bill Sienkievicz e Dave Mckean desceram aos portões do inferno visual para trazer ao gênero a perturbação que é o encantamento pela sombra.
Mas aquele que mais profundo foi se chama Ashley Wood, um australiano radical com alma de javali.

De todas as suas obras, considero duas para esse artigo. Zumbis vs Robôs e HellSpawn. A primeira com roteiros de Chris Ryall e a segunda de Brian Micheal Bendis e Steve Niles.

Confesso que escrever sobre arte é um tanto bobo e inútil, pois nenhuma palavra seria necessária para sequer se aproximar da descrição visual puramente dada.
Mas a questão aqui nem é descrever a arte de Ashlei Wood, mas tentar em vão delinear as formas e a espessura da sombra.

As massas sombrias cujas camadas dão um sentimento de medo ou repulsa, as ínfimas luzes que se bem aplicadas revelam tormentos e delírios, essa espécie de som que devem emanar de placas tectônicas a todo instante e que são inaudíveis, exceto quando explodem, cada um desses detalhes tornam a arte de Wood um convite para podermos expectar o caos.


Agora, imagine tecer uma narrativa gráfica com esses elementos ancestrais, como devem se comportar aqueles que têm o privilégio de testemunhar tamanha ousadia.


Ninguém é melhor que Wood para estabelecer uma sugestão do monstruoso universo subterrâneo. Se H. P. Lovecraft fez isso na escrita, Wood faz na imagem e com a imagem.

E a sugestão é que nesse universo, os seres não são mais humanos, são bólidos cósmicos de matéria escura, são rupturas na ordem cósmica para além dos universos conhecidos que habitam os subterrâneos escuros da mente. Onde não há mais nenhuma narrativa, apenas sentimentos. E esses sentimentos, que desprezam o conforto moral, fluem rumo ao desconhecido como que saltando para o abismo em que a escuridão é ainda mais espessa.

As imagens estão presentes na nossa vida de um modo avassalador. É por elas que aprendemos e mesmo quando tomamos a imagem como ícone, não é suficiente para impedir nossa jornada. Mas para além das manifestações visuais da imagem, sua multiplicidade é capaz de gerar espessuras que atingem o sentimento, ultrapassando as limitações visuais. As imagens dialogam com o corpo, numa fusão que não existe explicação plausível para o entendimento.

Em HellSpawn, Ashley Wood mergulha bem fundo no inferno de Spawn, até que possamos sentir a fúria que habita seus olhos de fogo. E a peculiar ambiguidade desse personagem, cuja escolha opera entre servir ao inferno e lutar contra o poder, mesmo que em nenhum desses casos sua alma irá repousar. As chamas que moldaram seu corpo, queimam continuamente.

Ele é a própria escuridão em luta com a escuridão do inferno e com a escuridão do poder. É o sem paz.

Todos esses artistas são fiéis seguidores daquele que melhor interpretou visualmente o terror cósmico, Alberto Breccia inovou em mesclar diversas técnicas, que necessitaram até da invenção de lâminas e apoios para suas texturas.

No caso de Ashley Wood, acrescentou pintura a óleo e arte digital ao arcabouço de seus antecessores. A convivência de elementos distintos, como aço enferrujado, corpos femininos translúcidos, batons vermelhos, caninos brancos conferem à sua arte uma atmosfera de pesadelos não familiares, como se adentrássemos pela porta lateral do sonho.

De modo geral, temos uma cultura visual muito restrita aos enunciadores absolutistas de significados, o que implica em que artistas como esses não seja muito popular nos quadrinhos, por oferecerem alternativas estranhas e incomuns para um universo de linguagem que se popularizou pelo imediatismo.

Mas ainda que restritos, para apreciadores consumidores do estranho, é um prato cheio que nos permite mergulhos profundos em nós mesmos, em nossa ancestral devoção à sombra, aos habitantes das profundezas e da noite morfológica que ainda não desapareceu soterrada pela modernidade.


*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) escritor e compositor

→ SE VOCÊ CHEGOU ATÉ AQUI… Saiba que o Pragmatismo não tem investidores e não está entre os veículos que recebem publicidade estatal do governo. Fazer jornalismo custa caro. Com apenas R$ 1 REAL você nos ajuda a pagar nossos profissionais e a estrutura. Seu apoio é muito importante e fortalece a mídia independente. Doe através da chave-pix: pragmatismopolitico@gmail.com


GAZETA SANTA CÂNDIDA, JORNAL QUE TEM O QUE FALAR

Postar um comentário

0 Comentários