EM GRAVAÇÃO, DELEGADO DA PF PRESSIONA TESTEMUNHA POR ''COLABORAÇÃ'' NO TOCANTINS

Investigado diz que PF “se valeu de subterfúgios para ocultar provas” da investigação que levou à queda de governador

Por Rubens Valente, Ciro Barros

Palmas (TO) — “Então assim, deixar o jogo bem claro. A gente conversou com a PGR, o [delegado] Mauro, que é quem coordena isso, tá mais à frente, e nossa posição era essa. Ou se vocês não colaborarem, a gente coloca ‘investigado’, cês tem ciência de tudo que estava se passando ali. Ou se vocês colaborarem a gente ouve vocês como testemunha que pra gente é bom, melhor pra vocês também é muito bom. Ou seja, vocês saem da ação penal, saem da condição de investigado, vem pra testemunha e não sofrem reflexo penal, administrativo, cível nenhum e a gente só se pauta na questão de informações. Que vocês tendem a passar pra gente.”

A proposta do delegado da PF em Palmas (TO) Duílio Mocelin Cardoso — ex-integrante da Operação Lava Jato em Curitiba (PR) e do governo Bolsonaro na gestão do então ministro da Justiça Sérgio Moro — foi gravada em novembro de 2021 por um delegado da Polícia Civil do Tocantins, Thiago Emanuell Vaz Resplandes, quando ele prestava depoimento à PF no decorrer da Operação Éris. A Agência Pública teve acesso à gravação com exclusividade — ela foi entregue à Justiça do Tocantins pelo próprio delegado Resplandes.

Poucas semanas antes da gravação, em 2021, a operação abalara o estado ao afastar do cargo o então governador Mauro Carlesse (ex-PSL, hoje no Agir), em decisão do STJ — nos últimos 15 anos, o Tocantins teve quatro mandatos de governador não concluídos, com afastamentos forçados pela Justiça.

Gravação obtida com exclusividade pela reportagem

Resplandes, 31 anos, que está na polícia do Tocantins há cinco anos, usou seu telefone celular para gravar o próprio depoimento de cerca de duas horas. No seu termo de depoimento, de fato, como se tivesse aceitado a proposta da PF, foi identificado como “depoente” e “foi alertado do compromisso de dizer a verdade”. Na gravação, o delegado da PF fala que “depende do senhor, do que o senhor vai…”. Resplandes interrompe: “Posso contar tudo o que sei, o que eu sei posso contar sim”.

Contudo, um mês depois do depoimento, Resplandes acabou denunciado pela subprocuradora-geral da República Lindôra Araújo por suposta “falsidade ideológica em documento público”, corroborando a tese policial que ele acreditava ter afastado durante seu depoimento, o mesmo que ele gravou. Em julho deste ano, inconformado com a promessa não cumprida da PF, Resplandes explodiu.

Ele entregou a gravação à 1ª Vara Criminal de Palmas acompanhada de um pedido de busca e apreensão de provas que ele considera indispensáveis para sua defesa. O pedido foi subscrito por outro investigado, o ex-delegado e atual procurador do município de Palmas Paulo Henrique Gomes Mendes. No dia 30 de agosto, o juiz Rafael Gonçalves de Paula reconheceu a procedência do pedido dos delegados e determinou a cópia dos documentos apontados pela defesa. Em 5 de setembro, três peritos copiaram e entregaram o material ao juiz — que agora analisa os documentos.

Guardadas em sigilo desde então, a gravação e as novas afirmações de Resplandes e Mendes agitam os bastidores do Judiciário e da polícia de Tocantins.

Elas colocam em xeque os métodos empregados pela Operação Éris, que ganhou destaque nacional em outubro de 2021. A Agência Pública passou 13 dias em Palmas e ouviu uma dúzia de pessoas para investigar e jogar luz à operação.

A operação foi desencadeada pela PF no Tocantins sob o comando do poderoso delegado de combate ao crime organizado no Estado, Mauro Fernando Knewitz, a pedido da subprocuradora Lindôra, pessoa da alta confiança do procurador-geral da República, Augusto Aras, e por ordem do ministro relator do caso no STJ, Mauro Campbell.

Embora eleito pelo PSL em 2018 e defensor de declarações de Jair Bolsonaro durante a pandemia, Carlesse hoje não é aliado do presidente no estado. Na última campanha, Bolsonaro apoiou o deputado federal Ronaldo Dimas (PL), que acabou derrotado na disputa pelo governo. Já Carlesse, que em março renunciou ao cargo de governador para evitar um impeachment, lançou-se candidato a senador pelo Agir, mas anunciou sua desistência da campanha em 5 de setembro. Um dos filhos de Bolsonaro, o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), foi a Palmas em 5 de agosto para participar do lançamento da candidatura de Dimas, e Bolsonaro mencionou o nome do candidato pelo menos três vezes em suas lives de setembro.

Desencadeada em outubro de 2021, a Operação Éris alterou todo o cenário eleitoral de 2022 no Tocantins, ao enterrar a candidatura de Carlesse à reeleição e trazer ao poder o grupo político do seu vice-governador, Wanderlei Barbosa (Republicanos), que assumiu o cargo do governador após a decisão do STJ e terminou reeleito na campanha deste ano. Junto com Barbosa ganhou prestígio e poder o mesmo grupo de delegados da Polícia Civil cujas denúncias e afirmações haviam colaborado para a queda de Carlesse.

Sete candidatos disputaram o Palácio do Araguaia nas eleições de 2022: além de Dimas e Barbosa, o senador Irajá Abreu (PSD), filho da senadora Kátia Abreu (Progressistas), Paulo Mourão (PT) e Luciano Castro Teixeira (DC), um médico que ganhou notoriedade por fazer denúncias em redes sociais e na imprensa contra Carlesse que ajudaram a criar o ambiente jurídico e político que culminou no afastamento do agora ex-governador.
                                                                               Washington Luiz/Governo do Tocantins
O ex-governador do TO, Mauro Carlesse, afastado após Operação Éris

PF gravado participou da Lava Jato: “Nosso objetivo não é vocês”

No mesmo outubro de 2021 em que autorizou buscas e apreensões em diversos endereços de Palmas, o ministro do STJ Mauro Campbell mandou afastar Carlesse e outros 11 servidores públicos de suas funções públicas, incluindo o secretário da Casa Civil, Rolf Costa Vidal, o secretário de Segurança e também delegado da PF Cristiano Sampaio e a delegada e diretora-geral da Polícia Civil Raimunda Bezerra de Souza.

A investigação da PF mirou seis delegados de Polícia Civil. Um deles é Thiago Resplandes, que na gestão Carlesse foi assessor do secretário de Segurança Pública de fevereiro de 2019 a fevereiro de 2020. Em linhas gerais, a PF acusou os agentes públicos de formar uma “organização criminosa” que teria atuado para prejudicar investigações que estavam em andamento em um setor da Polícia Civil, a Divisão Especializada de Combate à Corrupção e ao Crime Organizado (DRACCO).

No primeiro depoimento que Resplandes prestou à PF, em 20 de outubro daquele ano, ele achou estranho o tom adotado pelos seus interrogadores. No segundo depoimento, em 10 de novembro, resolveu acionar o gravador do telefone.

O depoimento foi conduzido pelo delegado Duílio Mocelin Cardoso. Ele entrou na PF na turma de 2014. Dois anos depois, no auge da Operação Lava Jato, integrou a equipe da PF em Curitiba (PR). Seu desligamento do grupo na época, junto com outros delegados da operação, como Eduardo Mauat, levou seu nome à mídia. Segundo as notícias, a PF em Brasília teria feito uma “intervenção” na Lava Jato, o que foi prontamente negado pelo comando da polícia.

Citado na imprensa como integrante da “República de Curitiba” e especialista em cooperação internacional, Mocelin foi nomeado, durante o governo Bolsonaro, na gestão do então ministro da Justiça Sergio Moro, no cargo de coordenador-geral de Recuperação de Ativos do Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional da Secretaria Nacional de Justiça (SNJ).

Em 2017, numa entrevista para a revista da Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal (ADPF), Mocelin declarou sobre sua passagem pela Lava Jato do Paraná: “Foi uma oportunidade ímpar para aprender a conduzir investigações complexas e de maior sensibilidade com os delegados de Polícia mais experientes e atuantes na área de Repressão aos Crimes contra o Sistema Financeiro, Corrupção e Desvio de Recursos Públicos”.

A gravação do depoimento de Resplandes demonstra que Mocelin foi muito claro ao explicar a estratégia da investigação e a proposta que tinha a fazer.

“Nosso objetivo não é vocês. Nosso objetivo é a galera lá. O quê que a gente está pensando? Vocês falarem as coisas, a gente ouve vocês como testemunhas. Esquece a condição de investigado e qualquer tipo de coisa. E aí vocês abrem pra gente toda aquela questão de apresentação dos nomes de delegados”, disse Mocelin a Resplandes.

“Vocês” se referia a Resplandes e ao outro delegado que também atuava no gabinete da Secretaria de Segurança Pública, Paulo Henrique Gomes Mendes.

Na gravação, Mocelin aparece antecipando o destino que, segundo ele, aguardava os outros delegados investigados na mesma operação. Ao listar o que aconteceria com os outros delegados, Mocelin emparedava Resplandes. Disse que no caso da diretora-geral da Polícia Civil, Raimunda Bezerra de Souza, seria “caixão, demissão”, que três delegados (Gilberto Augusto Oliveira Silva, Cinthia Paula de Lima e Ronan Almeida Souza) seriam demitidos e que o secretário, Cristiano, “tá ferrado”. Citou ainda que “tem dez anos aí de pena no mínimo pra galera”.

Mocelin disse: “O nosso objetivo é demissão, ou seja, tirar todo mundo”. Mas para outros casos, como de “Juliana”, “a gente vai deixar ela de fora”, pois “a gente não identificou por ora elemento que caracteriza”. Esse foi o mote para o delegado lançar o ultimato: “Caso do senhor e do Paulo a mesma coisa [deixar fora], caso os senhores concordem”.

Mais adiante, o delegado disse que estava falando a situação da “galera toda” com o seguinte objetivo: “Eu só tô te falando isso pra você pensar bem na sua postura”.

“A gente não está querendo colocar nem o senhor nem o Paulo nem a Juliana. […] A gente pode… Qualquer caminho que a gente seguir é viável. Só que a gente prefere vocês como testemunhas e que nos passem todas as informações do que processá-los.”

O delegado da PF lembrou que o “pessoal da Polícia Civil que tá agora”, ou seja, que havia assumido o comando da polícia após o afastamento do governador, era o mesmo “que o pessoal [do governo Carlesse] foi atrás”. “Então imagina como é que eles devem tá felizes em receber esse presente no colo.”

Para demonstrar um suposto controle total da investigação, Mocelin afirmou também, por duas vezes, que a PGR estava a par da estratégia da PF.

“A gente está fazendo uma triagem aqui [do] que realmente vale a pena a gente processar e o que não vale a pena. Até mesmo porque a relação custo-benefício de processar e não obter informação, e não processar e obter informação, pra gente é mais vantajosa a segunda. Tá? E já foi conversado com a Procuradoria-Geral da República também. No seu caso e do Paulo a gente teria, estaria propenso a fazer isso. Tá? Pra gente ouvir vocês como testemunha. Deixaria bem claro que você prestaria as informações na condição de testemunha… assim como a própria Camile fez há muito tempo atrás.”

Mocelin mencionou o nome do delegado Mauro Fernando Knewitz como o responsável pelos contatos com a PGR. Knewitz, um campeão de tiro esportivo, que já representou o Brasil em competições internacionais, é considerado homem forte da PF no Tocantins, tendo presidido alguns dos principais inquéritos de corrupção e crimes financeiros nos últimos anos no estado. Ele também subscreve os principais relatórios da Operação Éris.

“[…] Então assim, deixar o jogo bem claro. A gente conversou com a PGR, o Mauro, que é quem coordena isso, tá mais à frente. E nossa posição era essa”, disse Mocelin. No meio do depoimento de Resplandes, o próprio Knewitz entrou na sala para uma checagem da situação: “Como é que tá aí? […]? Vai aproveitar a chance?”.

Mocelin respondeu a Knewitz: “Tranquilo. Já conversei com ele, ele está dando todas as informações”. “Então tá bom”, respondeu o colega da PF, antes de fechar a porta.

Resplandes recebeu as afirmações dos representantes da PF como uma estratégia para atemorizá-lo a fim de obter sua “colaboração”. Na petição entregue à 1ª Vara Criminal de Palmas, Resplandes e Mendes escreveram que “a Polícia Federal constrangeu ilegalmente os requerentes com o emprego de grave ameaça e fraude, a fim de obter informação que sustentasse a (falsa) versão acusatória”.

“Nesse sentido, a Polícia Federal: (i) fez a grave ameaça de colocar os requerentes na condição de investigados e de inventar fatos contra eles, caso não ‘colaborassem’ com a versão acusatória, a qual foi forjada, o que daria causa, ilegalmente, à responsabilização criminal, administrativa e civil de ambos (como, de fato, vem ocorrendo)”, escreveram o delegado e o ex-delegado.

Eles disseram ainda, na petição, que a PF “manipulou a condição dos requerentes na investigação, pois os inquiriu como ‘investigado disfarçado de testemunha’. Com isso, burlou diversos direitos constitucionais, como o de permanecer em silêncio e o de ser assistido por advogado”.

“Espanta que, mesmo o requerente Thiago sendo um delegado de polícia, a Polícia Federal teve a audácia de constrangê-lo ilegalmente e de empregar fraude contra ele […]. A Polícia Federal os tratou como objetos em suas mãos, como se o destino deles se sujeitasse ao bel-prazer dos órgãos encarregados da persecução penal, a demonstrar o total desapego para com a dignidade da pessoa humana. Cabe anotar que, se não fosse a gravação ambiental, os requerentes jamais conseguiriam desincumbir-se do ônus de provar as ilegalidades que sofreram, mesmo porque elas parecem surreais e foram cometidas por órgão que goza de bastante credibilidade perante todos, de modo que seriam apenas mais uma ‘cifra dourada’.”
                                                                                              Reportagem Agência Pública

Sede da Superintendência da Polícia Federal em Palmas (TO)

Advogados dizem que caso precisa ser investigado

Três advogados com larga experiência que falaram em tese à Pública sobre o assunto, sem conhecer o caso concreto, consideraram que o comportamento do delegado durante o depoimento deveria ser investigado por um inquérito próprio, a ser solicitado pelo Ministério Público. “É gravíssimo, tem que ser instaurado um inquérito para apurar a conduta do delegado”, disse o advogado Marco Aurélio de Carvalho, coordenador do Grupo Prerrogativas. “Isso que você narra é tudo o que a gente combate. Isso compromete o sistema de Justiça. Esse tipo de excesso é o que vimos acontecer na Operação Lava Jato e que procuramos alertar. Não se combatia a Lava Jato, mas o excesso.”

Segundo Carvalho, pode ter ocorrido “um desvio de poder”. “O delegado, ao sugerir um benefício, mesmo que não acobertado pelas regras de uma delação premiada, acabou dirigindo, induzindo o depoimento da testemunha. Ele incentivou determinada linha do depoimento, e não pode ser assim.”

Como Resplandes foi informado de que seria uma testemunha, e não investigado, ele não exerceu o direito constitucional de ficar em silêncio, por exemplo, como prevê a legislação. As duas condições (testemunha ou investigado) são totalmente diferentes no curso de um depoimento. “O investigado ou acusado não precisa se autoincriminar, pode se recusar a depor, pode inclusive mentir. Já a testemunha faz um juramento; se mentir, é perjúrio.”

Para Fernando Tibúrcio, advogado condecorado em 2017 com a Ordem do Rio Branco pela defesa dos direitos humanos, “a autoridade policial não pode usar como técnica de entrevista ou interrogatório a promessa de mudança do status de investigado para testemunha”.

“Não se trata de estabelecer empatia emocional ou comportamental com quem está sendo ouvido. Se o uso de métodos heterodoxos para pressionar investigados se tornar uma prática corriqueira, isso acabará por decretar a falência do sistema de investigação criminal, e o próprio estado democrático de direito se verá ameaçado. Estivemos bem perto disso na Itália, por ocasião da Operação Mãos Limpas, e aqui no Brasil, durante a Lava Jato.”

Jonas Marzagão, advogado criminalista em São Paulo que há 25 anos atua na defesa de investigados e réus em operações da PF, disse que, em tese, o delegado que conduziu o depoimento poderia estar sujeito a uma investigação por infração ao item II do artigo 23 da Lei de Abuso de Autoridade se de fato ficar comprovado que “omitiu dados prestados pelo declarante no inquérito”. O artigo da lei diz que é crime, passível de pena de um a quatro anos de prisão, “inovar artificiosamente, no curso de diligência, de investigação ou de processo, o estado de lugar, de coisa ou de pessoa, com o fim de eximir-se de responsabilidade ou de responsabilizar criminalmente alguém ou agravar-lhe a responsabilidade”. O item II prevê a conduta de “omitir dados ou informações ou divulgar dados ou informações incompletos para desviar o curso da investigação, da diligência ou do processo”.

Os detalhes e as pontas soltas da acusação

O segundo aspecto da denúncia de Resplandes sobre o seu depoimento trata do conteúdo das supostas provas usadas pela PF na Operação Éris. Nesse ponto é preciso retroceder no tempo para entender os detalhes da acusação feita pela subprocuradora-geral Lindôra Araújo a partir da investigação da PF.

A principal acusação da denúncia, que culminou no afastamento de Carlesse, é que o governador, seu secretário de Segurança Pública e sua chefe da Polícia Civil, entre outros agentes públicos, teriam promovido uma série de mudanças de cargos na Polícia Civil de modo a impedir, prejudicar ou obstar investigações que estavam em andamento em um setor da Polícia Civil chamado Decor, voltado para investigações de corrupção.

A Decor é ligada à Diretoria de Repressão à Corrupção e ao Crime Organizado (Dracco), que por sua vez é subordinada à delegacia-geral da Polícia Civil. A unidade foi criada com outro nome (Dracma) durante o mandato do governador Marcelo Miranda (2015-2018), ele próprio alvo de uma operação da PF em 2019.

Desde o começo da gestão Carlesse, a Decor passou a desencadear operações contra diversos setores do governo estadual. Segundo o grupo político do governador, havia uma intensa queda de braço política entre o comando do governo e o Sindicato dos Delegados da Polícia Civil do Tocantins (Sindepol), principalmente em torno de demandas de classe. O sindicato apoiava as denúncias do comando da Decor contra o governador — embora esse ambiente político conturbado não apareça ressaltado nos relatórios da PF e na denúncia da subprocuradora Lindôra.

Em 6 de novembro de 2019, o governo Carlesse fez, depois de ter editado uma medida provisória que criou funções comissionadas na polícia, uma série de remanejamentos de delegados na Polícia Civil, incluindo os principais cargos da Decor. O Sindepol foi à Justiça e, sete dias depois, o juiz da 1ª Vara da Fazenda e Registros Públicos de Palmas mandou suspender as remoções por entender que elas necessitavam de uma fundamentação. No dia seguinte, o governo estadual recorreu ao Tribunal de Justiça, que deu razão ao governo e manteve as remoções.

Aqui surge a figura do delegado da Polícia Civil Cassiano Ribeiro Oyama, 43 anos, então lotado no 1º Distrito Policial de Palmas. Na investigação da PF, Oyama afirmou em depoimento que também foi vítima de perseguição do governo Carlesse por ter investigado supostas irregularidades administrativas.

Meses antes, ele havia apresentado à PF certo “relatório de análise de informe” que depois daria corpo ao relatório da PF e à denúncia da subprocuradora Lindôra, de que teria havido uma suposta fraude documental cometida pelo governo Carlesse para dar base documental ao recurso protocolado pelo governo no Tribunal de Justiça. Esse “relatório” do delegado da Polícia Civil é um dos atos fundamentais do início do inquérito que levaria ao afastamento do governador.

Em tom misterioso, Oyama escreveu no relatório que recebera um relato de “um policial civil”, não identificado “por temer fortes represálias”, de que os ofícios que embasaram o pedido judicial de suspensão dos efeitos da liminar, protocolado pelo governo na Justiça, foram “todos elaborados na Delegacia Geral da Polícia Civil, por um único servidor, com data retroativa”.

Na petição entregue por Lindôra ao STJ em dezembro de 2021, Oyama passou a aparecer como “testemunha”, muito embora tenha declarado à PF, em janeiro de 2020, que era também vítima da suposta perseguição do governo Carlesse. Segundo a PF e Lindôra, que várias vezes citam o relatório de Oyama, os números dos ofícios entregues ao TJ pelo governo comprovariam a fraude.

Um dos servidores que encaminha os ofícios para assinatura do secretário de Segurança Pública, do secretário da Casa Civil e do governador é o delegado Thiago Resplandes, assessor na Segurança Pública. Daí ter sido um dos alvos da denúncia de Lindôra — diferentemente dos demais, contudo, ele não foi afastado do cargo.

No depoimento gravado e transcrito por Resplandes, este aparece explicando ao delegado Duílio Mocelin que os registros no Sistema de Gestão de Documentos (SGD), que organiza e acumula todos os documentos oficiais do governo do estado, permitiam ver que os papéis foram de fato criados no dia 7 e que houve, no mínimo, um erro na interpretação da documentação ao longo do inquérito. No entanto, tais informações não aparecem no termo de depoimento de Resplandes.

Conforme Resplandes escreveu na sua petição, “a Polícia Federal se recusou a inserir, no respectivo termo, informações importantes prestadas pelo requerente, a fim de ‘calar a verdade’ (modalidade de falso testemunho). De fato, sempre que o requerente prestava informações contrárias à versão acusatória, a Polícia Federal se valia de subterfúgios para omiti-las/ocultá-las”.

Para demonstrar o que disse e apontar as datas dos registros dos documentos, Resplandes pediu para acessar ali mesmo na PF, durante o seu depoimento, o SGD. Segundo Resplandes, contudo, o resultado da consulta também deixou de aparecer no seu depoimento. A consulta teria comprovado, segundo ele, que um dos ofícios foi assinado digitalmente em 7 de novembro, portanto antes do recurso ajuizado na Justiça pelo governo estadual.

“Para além de alegar, o requerente provou que essa ilação estava errada, quando mostrou para a Polícia Federal o cadastro, a inserção e a assinatura digital do Ofício nº 310/2019 – DPC/SSPTO no Sistema de Gestão de Documentos, utilizando, inclusive, o computador dela [PF]. Ocorre que, como essa prova era contrária à sua tese acusatória, a Polícia Federal se valeu de diversos subterfúgios para ocultá-la no âmbito da investigação.”

Nesse ponto do depoimento, segundo a transcrição apresentada por Resplandes, Mocelin desconversou: “Acho melhor a gente nem citar essas coisas aqui, porque… até porque a gente já tem a prova documental aqui, ó. O ofício do GAB foi dia 13. O Ofício da DG foi dia 13. E… acho que isso daqui foi o quê? Agora não sei nem por que isso”. O delegado disse também, segundo Resplandes, que a inserção de documentos apontados por este na investigação “vai criar mais uma bagunça”.

Resplandes e Mendes: “Causa estranheza que, por inúmeras vezes, a Polícia Federal exibiu ao requerente Thiago depoimentos/documentos (também manipulados, como se verá) que divergiam das informações por ele prestadas. O objetivo era constranger o requerente a não fazer inserir, no termo de depoimento, informações contrárias à falsa versão acusatória. A esse respeito, cabe rememorar que ele se encontrava sob a ameaça de ser colocado como investigado, caso não ‘colaborasse’”.

Em sua petição à Justiça, Resplandes e Mendes afirmam que a Secretaria de Segurança Pública e a Polícia Civil “sonegaram” à investigação pelo menos quatro conjuntos de documentos que seriam imprescindíveis para sua defesa; daí o pedido para que fossem localizados e apreendidos nos gabinetes dos órgãos.

Os delegados dizem que a PF foi alertada sobre “a sonegação dos citados documentos”, mas ela “concluiu a investigação sem requisitá-los, aceitando conscientemente a sonegação”. “Pior ainda”, diz a petição, após ter recebido um dos ofícios, “assinado digitalmente”, a PF “também o ocultou, a demonstrar que seu objetivo no inquérito não era, definitivamente, a busca da verdade”.

Da Justiça estadual para a federal

O áudio e a petição de Resplandes e Mendes foram protocolados no dia 12 de julho último na 1ª Vara Criminal de Palmas. No dia 1º de agosto, após ter sido intimado pelo juiz, o Ministério Público argumentou, em manifestação assinada por quatro promotores (Vinicius de Oliveira e Silva, Tarso Rizo Oliveira Ribeiro, Benedicto de Oliveira Guedes Neto e Leonardo Gouveia Olhe Blanck), que o pedido deveria ser transferido da Justiça estadual para a federal, sob o argumento de que “a pretensão veiculada [por Resplandes e Mendes], por via transversa, redunda em investigar alegado crime que afirma que teria sido praticado por autoridades federais, no pleno exercício da função federal, inclusive em feito sob presidência do E. Superior Tribunal de Justiça”.

Desde março de 2022, contudo, o caso não está mais sob a relatoria do ministro Campbell no STJ. Naquele mês, o então governador afastado Carlesse renunciou de vez ao cargo para escapar de um impeachment. Dias depois, Campbell determinou que o caso que gerou o afastamento fosse enviado à Justiça de primeira instância. Em texto divulgado pelo STJ na internet, o magistrado diz que “caberá à Justiça estadual — e não mais ao STJ — decidir sobre os fatos investigados e os pedidos formulados nos autos”.

No último dia 30 de agosto, o juiz Rafael Gonçalves de Paula determinou que o Núcleo de Computação Forense da Secretaria de Segurança Pública fizesse a busca e a cópia de cinco conjuntos de documentos apontados por Resplandes e Mendes como essenciais à sua defesa. O juiz explicou que, ao ouvir a gravação do depoimento feita por Resplandes, verificou que “em dado momento há referências aos documentos referidos na petição inicial, os quais teriam sido sonegados do relatório policial que embasou a denúncia”.

Para o juiz, “tem fundamento o pedido dos requerentes no sentido de ter acesso aos documentos, pois podem eventualmente servir de prova em sua defesa”.

No último dia 5 de setembro, os peritos informaram que “todos os arquivos solicitados no pedido de busca e apreensão criminal foram encontrados e seguem disponibilizados no anexo digital que acompanha este Laudo Pericial”. Ou seja, os documentos de fato existiam, tal qual dito por Resplandes e Mendes ao Judiciário.

O que dizem os citados

Em nota, a PGR respondeu que “desconhece” qualquer acerto ou combinação com os delegados da PF em torno do depoimento de Resplandes e de outros: “A Procuradoria-Geral da República desconhece o teor descrito na sua demanda. Tanto que apresentou denúncia contra as pessoas mencionadas. Como em outros casos, o trabalho da PGR foi feito de forma técnica, considerando os fatos e as provas reunidas no inquérito”.

A Pública esteve em Palmas e procurou presencialmente uma manifestação dos delegados da PF. Em uma primeira nota na ocasião, a PF do Tocantins afirmou que, “sobre a solicitação de entrevista feita no dia 23/08/2022, a Polícia Federal esclarece que não concede informações sobre investigações em andamento”.

Em outubro, a Superintendência da PF afirmou em nota que “não recebeu nenhum questionamento acerca da conduta de qualquer policial envolvido na Operação Éris e desconhece o teor da gravação citada. Como é de praxe, qualquer questionamento envolvendo a conduta de policiais da instituição é encaminhado à Corregedoria para conhecimento e providências pertinentes”.

Segundo a PF, os delegados do órgão “são treinados durante o curso de formação profissional e em outros momentos da carreira em técnicas de entrevista e interrogatório, visando a desenvolver métodos e estratégias na condução de oitivas para um melhor esclarecimento dos fatos em apuração”. A PF diz que “a autoridade policial deve sempre esclarecer o depoente ou investigado de sua posição e de seus direitos, informando os benefícios legais que estas podem ter com o maior esclarecimento dos fatos apurados. A condição de testemunha ou investigado tem relação com a participação ou não do depoente nos fatos em apuração, ficando dentro da margem de autonomia da autoridade policial que conduz as investigações essa classificação”.

Segundo a PF, “cabe destacar que muitas vezes a oitiva de uma testemunha ou de um investigado pode ser elemento decisivo para esta figurar em uma ou outra posição”.

Em entrevista à Pública, o delegado Oyama afirmou que procurou a PF por entender que as irregularidades que denunciou tinham envolvimento direto do então governador Carlesse e seriam, portanto, de competência da PF, já que governadores de estado têm foro privilegiado no STJ. Também confirmou a elaboração de relatórios para a PF. Ele não quis revelar a identidade do policial que teria denunciado a ele a suposta elaboração de ofícios fraudulentos por parte da Delegacia-Geral da Polícia Civil. Ele repetiu que se considera alvo de perseguições do governo Carlesse. “Comecei a responder a sindicâncias instauradas na Corregedoria a partir do final de 2018, já com mais de dez anos de polícia”, afirmou. O delegado confirmou à reportagem que havia um ambiente conflagrado durante o governo Carlesse, citando como exemplo a exoneração do delegado Bruno Boaventura do cargo de delegado regional de Araguaína e a publicação de um Manual de Procedimentos pela cúpula da Secretaria de Segurança Pública.


Parte 1


Polícia Civil está na origem e no centro da suspeita Operação Éris que derrubou o último governador, Mauro Carlesse

Parte 3


Em primeira entrevista após afastamento, Mauro Carlesse se diz vítima de um “processo político, jurídico e policial”

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