SENTA LÁ, URSULA! O SOFAGATE E O PAPEL DA MULHER NA POLÍTICA INTERNACIONAL

É preciso se desconstruir ouvindo vozes de grupos de empoderamento feminino para que se possa entender que as identidades de gênero são socialmente construídas tanto no ambiente doméstico quanto internacional

Ursula von der Leyen, Recep Tayyip Erdogan e Charles Michel (Imagem: Mustafa Kaya | Xinhua)


Lucien Vilhalva de Campos* e Manoela Veras*

No último dia 6 de abril, um incidente internacional exemplificou com precisão a marginalização do papel da mulher na política internacional.

A cena da falta de uma cadeira para Ursula von der Leyen, Presidente da Comissão Europeia, no encontro de representantes da União Europeia com o Presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, revela a faceta visível do machismo historicamente predominante dentro das estruturas de tomada de decisão da alta política global.

Enquanto Charles Michel, Presidente do Conselho Europeu, e Erdogan tinham à disposição duas cadeiras lado a lado na chamada zona nobre do salão, para Ursula von der Leyen fora atribuído um lugar no sofá localizado na lateral, mais afastado da zona nobre.

Em um vídeo divulgado na mídia internacional, Ursula chega a murmurar e gesticular quando se deparava com a desconfortável situação; algo que não pareceu incomodar os homens no recinto.

O incidente foi designado como sofagate nas mídias sociais, abrindo espaço para discussões acerca da exclusão da mulher nos domínios de poder na política internacional, tangenciando questões voltadas à inação masculina para solucionar práticas de invisibilidade feminina nos âmbitos nacionais, regionais e globais, bem como o silenciamento estrutural de representantes históricas e contemporâneas.


Contudo, apesar do ocorrido ter acendido debates referentes ao tratamento dado às líderes políticas do sexo feminino, nos círculos acadêmicos, discussões como essas já ocupam um considerável espaço entre os estudiosos das Relações Internacionais, emergindo de maneira intensificada na década de 1980, a partir da popularização de teorias críticas sobre temáticas globais e disputas teóricas a respeito de grupos marginalizados na academia, dentre eles, as mulheres.

Recentes trabalhos de teóricas e teóricos feministas têm debatido o comportamento machista dentro das estruturas de poder, onde a maioria dos tomadores de decisão incorporam perspectivas e práticas tradicionais da política que ignoram as contribuições das mulheres e o impacto que elas representam na política internacional.

Assim como em outras áreas da ciência, cultura e sociedade, teóricos feministas das Relações Internacionais têm desempenhado um papel importante na construção de uma crítica contundente à perpetuação da exclusão da mulher.

Tais pensadores defendem a ideia de que a exclusão tem sido uma característica central para o funcionamento das relações internacionais, construindo e moldando o pensar e agir daqueles que se encontram em posições de poder na esfera internacional.

Nesse sentido, ressalta-se o papel da estrutura na perpetuação das práticas de silenciamento feminino na política, uma vez que, historicamente, mulheres ocupam espaços relevantes em disputas geopolíticas dominadas por homens, fato exemplificado pelo pioneirismo de Cleópatra no Egito e Elizabeth I na Inglaterra.

Entretanto, como a situação presenciada por Ursula von der Leyen explicita, não basta o aumento de mulheres em cargos de lideranças globais, é necessário questionar a estrutura patriarcal e seus agentes que contestam a todo o momento a inclusão feminina em atividades que ultrapassam os estereótipos de gênero, compreendendo que a remoção de barreiras legais trabalhistas e a ascensão de mulheres em cargos de liderança não é suficiente para ampliar a igualdade de gênero em todos os âmbitos da sociedade.

Logo, o sofagate não apenas abre espaço para vozes marginalizadas e gradualmente empoderadas, como também traz ao debate a principal contribuição feminista para as Relações Internacionais: a exposição e desconstrução social das normas de gênero moldadas de acordo com perspectivas e práticas tradicionais da política.

Para que tal contribuição se estabeleça e ocupe mais espaço nos debates públicos e acadêmicos, o feminismo explora a construção de identidades de gênero que auxiliam na perpetuação das ideias normativas do que homens e mulheres devem fazer quando se encontram em posições de poder.

Nessa leitura, gênero é entendido como as suposições socialmente construídas que são atribuídas a corpos masculinos ou femininos, ou seja, o comportamento que se pressupõe ser o masculino apropriado ou feminino apropriado. Nesse contexto, a masculinidade está associada à racionalidade, poder e independência, enquanto a feminilidade à irracionalidade, necessidade de proteção e domesticidade.

A construção de tais identidades de gênero social e político foram produzidas e historicamente reproduzidas na política internacional, assim influenciando as interações entre os atores globais. A perpetuação de suposições sobre quem deveria fazer o quê e por quê é uma consequência direta desta construção, acentuando respostas violentas nas esferas simbólica, moral ou física àquelas pessoas que decidem questioná-la.

Nesse cenário, nota-se que essas percepções dos papéis sociais divergentes entre homens e mulheres são ainda mais acentuadas no âmbito dos grandes atores das Relações Internacionais, uma vez que o surgimento e vigência da área durante o período pós-guerra, que tradicionalmente acentua os estereótipos de coragem masculina em contraste com a fragilidade feminina, coopera para que o teor patriarcal seja observado e normalizado também entre os principais pensadores da área.

E, devido à falta de garantias do oferecimento de condições materiais e sociais igualitárias entre homens e mulheres nos mais diversos aspectos de sua existência e vivência, torna-se ainda mais custosa a participação feminina plena e reconhecida nos grandes debates das Relações Internacionais. Assim, é necessário explicitar que o empoderamento das mulheres deve ser uma meta coletiva de caráter interdisciplinar na academia e fora dela, a fim de assegurar que seus direitos básicos sejam garantidos em todos os espaços e níveis.

No que se refere ao incidente com Ursula von der Leyen, é possível compreender a desastrosa solução oferecida como um exemplo visível dentro de um processo quase invisível aos olhos daqueles que se deixam ser moldados pelo poder patriarcal que subordina as mulheres aos homens.

É preciso se desconstruir ouvindo vozes de grupos de empoderamento feminino para que se possa entender que as identidades de gênero são socialmente construídas tanto no ambiente doméstico quanto internacional. Isso significa repensar as distribuições de poder, fornecendo maiores espaços àqueles que expõem a violência de gênero e a marginalização das mulheres na política internacional.

Nosso papel enquanto sociedade passa por não tratar Ursula apenas como mais uma vítima da desigualdade de gênero, mas cobrar pelo tratamento de dignidade que ela e outras mulheres merecem receber, não apenas pelo fato de ela liderar uma instituição de respeito como a Comissão Europeia, mas por ser uma mulher ocupando um espaço maioritariamente masculino e machista.

Se mulheres são entendidas apenas como vítimas e não como atores de poder, então suas experiências e papéis desempenhados na alta política continuarão a ser facilmente ignorados e justificados como marginais, ocupando lugares mais afastados da zona nobre, alocados nos sofás e distantes do protagonismo que há tanto é buscado nas mesas de negociações.

*Lucien Vilhalva de Campos é doutorando em Relações Internacionais na Universidade de Lisboa e pesquisador visitante na Universidade de Düsseldorf.

*Manoela Veras é estudante de Relações Internacionais na Universidade do Sul de Santa Catarina e pesquisadora da Cátedra Jean Monet, sediada na FECAP.

Fontes:

Smith, Sarah (2018) – Feminism in International Relations Theory. E-International Relations. Acessado em https://www.e-ir.info/2018/01/04/feminism-in-international-relations-theory/

Tickner, Ann (2001) – Gendering World Politics: Issues and Approaches in the Post-Cold War Era. New York: Columbia University Press.



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