SE FOSSE UMA FLORESTA, A JUSTIÇA CRIMINAL SERIA UMA MATA MORTA

ÁREA DE QUEIMADA EM PORTO VELHO, RONDÔNIA. FOTO: CARL DE SOUZA / AFP

Deserto de reflexão crítica, destruído de vida pela manutenção do status quo: a Justiça Criminal não tem solo fértil

O revisionismo está na moda para alguns setores da sociedade. De acordo com seus adeptos, vários eventos se tornam objeto de heterodoxas leituras. Alguns exemplos podem ser destacados. O dia 1º de abril de 1964 não representou uma quartelada que garroteou a democracia brasileira. O planeta é plano. E a devastação da Amazônia não é real. Pois bem, já que foi abordada a questão da flora, é relevante ter em mente como uma árvore perece naturalmente, a saber: quando deixa de buscar os nutrientes no solo, não realiza fotossíntese e acaba por ser tornar rígida, inflexível. Aliás, se a Justiça Criminal fosse ilustrada por uma floresta, certamente seria composta por muitas árvores secas e mortas e que se encontram de pé pela pura inércia.

Para compreender essa alegoria, mesmo que de maneira sucinta, mostra-se relevante examinar sobre a própria realidade que cerca a atividade jurisdicional. As transformações ocorridas nos últimos anos alcançaram o aprendizado. Como prova disso, realizo uma comparação entre a minha metodologia da escrita – antes de ser digitado, este texto foi escrito à mão com uma letra de dificílima compreensão – e a empregada pelo meu filho mais velho, Guilherme, que já consegue escrever diretamente nos mais diferentes aparelhos e mais modernos do que o composto por uma caneta e um caderno.

Contudo, apesar de todo o avanço tecnológico é certo que o processo de aprendizagem não conseguiu romper com um modelo que foi objeto de dura crítica por parte de Paulo Freire, isto é, a chamada educação bancária. Assim, muito se aposta numa forma simplória de transmissão de informações em que o aluno é mero depositário desse “saber”, bem como é mantida uma crença quase que inabalável de que o conhecimento pode ser possuído. Nos anos 70, Erich Fromm, apesar de adotar referencial teórico distinto de Paulo Freire, já tecia críticas a essa forma de conceber o conhecimento:

“O conhecimento ideal no modo de ser é o conhecer mais profundamente. No modo de ter é ter mais conhecimento. Nosso processo educativo, em geral, tenta adestrar as pessoas a terem conhecimento como uma posse, geralmente comensurável com a quantidade de propriedade ou prestígio social que ele deve proporcionar mais tarde. O mínimo que recebem é a quantidade necessária a fim de funcionar adequadamente em seu trabalho. Além disso, dá-se-lhes uma ‘embalagem de conhecimento de luxo’ para fortalecer seu sentimento de valor, sendo o tamanho da embalagem de acordo com o provável prestígio social da pessoa. As escolas são as fábricas em que a embalagem desse conhecimento completo é produzida (…)”[i]

A partir da concepção sobre o que é o conhecimento, a educação pode, ou não, adquirir um perfil emancipatório, transformador e revolucionário, o que se torna imprescindível para um país que confessadamente, e em nível constitucional, reconhece ser desigual. Aliás, a partir de sua própria experiência vivida em uma sociedade notoriamente racista, bell hooks aponta para essa dualidade antagônica que pode assumir o processo pedagógico:

“Essa transição das queridas escolas exclusivamente negras para escolas brancas onde os alunos negros eram sempre vistos como penetras, como gente que não deveria estar ali, me ensinou a diferença entre a educação como prática de liberdade e a educação que só trabalha para reforçar a dominação. Os raros professores brancos que ousavam resistir, que não permitiam que as parcialidades racistas determinassem seu modo de ensinar, mantinham viva a crença de que o aprendizado, em sua forma mais poderosa, tem de fato um potencial libertador.” [ii]

A questão é que, desde o momento da seleção, com raríssimas exceções, dos atores jurídicos – o que inclui, portanto, os magistrados -, se privilegia um conhecimento voltado unicamente para a manutenção do status quo. Caso o candidato se mostre devidamente adestrado poderá então usufruir de todas as benesses de um cargo – algumas até mesmo de duvidosa constitucionalidade, vide os mais diversos auxílios – ou de uma profissão, que, enfim, poderá chamar de sua.

Como consequência do adestramento a que foi submetido para ingressar na carreira, não se tem processamento dos dados novos e posterior análise à luz do Texto Constitucional, pois não se superou a ideia de que basta armazenar informações. Daí, se compreende a resistência de parcela da magistratura ao juiz de garantias. Uma aversão que não possui sentido técnico e somente aponta, no âmbito simbólico, a dificuldade em superar a mentalidade autoritária na persecução penal.

Esse fenômeno se dá pelo fato de que parte da magistratura não confere o valor devido à doutrina, optando pelos meros comentadores de decisões judiciais, que nada mais são que compiladores de informações, ou seja, adeptos de uma vertente de que o conhecimento pode ser possuído. Não por outra razão que Lenio Streck sustenta existir o chamado constrangimento epistemológico a ser praticado pelos doutrinadores:

“É papel precípuo da doutrina criticar os equívocos dos que detém o poder de dizer e construir o Direito. Na medida em que a própria Constituição Federal estabelece, no artigo 93, IX, que as decisões mal fundamentadas são nulas, o Supremo Tribunal Federal, por exemplo, não tem o direito de errar por último. E, por isso, uma doutrina jurídica crítica pode impedir más decisões, compreendidas como fruto de uma racionalidade ideológica subjetivista/discricionária (ambas são faces da mesma moeda), se repitam.”[iii]

Se a Justiça Criminal não busca no “solo doutrinário” os elementos que a permitam refletir sobre o direito posto, nada poderá oferecer ao meio social, salvo simulacro de decisões, já que pautadas pela moral ou por argumentos sensacionalistas que mais se aproximam daqueles utilizados em programas televisivos de duvidosa qualidade.

A árvore que perece, ao menos, tem a oferecer ao meio ambiente o seu corpo, que poderá servir de alimento para o restante da mata. Com a Justiça Criminal isso não se mostra possível, pois, ao se negar a realizar um diálogo crítico com a doutrina, e simplesmente comprovar a sua capacidade de armazenar dados, e não de processá-los à luz da Constituição, somente a dor será gerada.

[i] FROMM, Erich. Ter ou ser? Rio de Janeiro: Zahar, 1977. p. 57.

[ii] hooks, bell. Ensinando a transgredir. A educação como prática da liberdade. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2017. pp. 12-13

[iii] STRECK, Lenio. Dicionário de hermenêutica. Quarenta temas fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Casa do direito, 2017. p. 43.




EDUARDO NEWTON 

CARTACAPITAL

Postar um comentário

0 Comentários