O BRASILEIRO QUE SE RECUSA A SAIR DO EPICENTRO DO CORONAVÍRUS

Deixar o epicentro do surto do novo Coronavírus se tornou uma emergência para brasileiros e outros milhares de estrangeiros, mas não para o estudante Miguel Manacero, de 18 anos. "Eu estaria abrindo mão de um sonho"

   Miguel Manacero


Claudia Jardim, BBC Brasil


Deixar a cidade de Wuhan, capital da província de Hubei na China — epicentro do surto do novo Coronavírus — se tornou uma emergência para os brasileiros e outros milhares de estrangeiros imersos em uma crise de saúde global que ainda está longe do fim. Mas para o estudante Miguel Manacero, de 18 anos, embarcar no avião da Força Aérea Brasileira que levou de volta ao Brasil 34 brasileiros significava abandonar “o sonho chinês” alimentado desde a infância.

“Voltando para o Brasil eu estaria abrindo mão de um sonho […] Não foi fácil ficar aqui. Eu não tinha certeza do que eu ia fazer até o último minuto, que foi quando eu decidi ficar.”

Miguel Manacero deixou a cidade de Guapiaçu no interior paulista em agosto do ano passado para aprender mandarim na Universidade de Hubei, idioma que ele começou a estudar aos 12 anos. O interesse pela China surgiu com o kung fu, arte marcial que ele pratica desde a infância. “Meu sonho começou quando eu tinha nove anos e comecei a ter contato com a China por meio do kung fu”, relata.

O jovem brasileiro afirma que deixar a China poderia comprometer o término do curso de mandarim, qualificação que pode ajudá-lo a conseguir uma bolsa de estudos para um curso de graduação na Universidade de Hubei.

“Minha mãe disse que se eu voltasse para o Brasil ela não saberia quando me mandaria de volta à China”, disse. Sem saber como, nem quando, poderia retomar os estudos em Hubei, Manacero optou por arriscar e permanecer em Wuhan apesar do alto risco de infecção. “Tento não pensar muito (no contágio), mas sei que o risco é grande”, afirma.

A embaixada brasileira na China deu um prazo para a comunidade no local decidir se embarcaria ou não de volta ao Brasil. “Meus pais me apoiaram. Foi algo que pensei muito e tive bastante dificuldade para decidir”, relata.

Manacero admite que sentiu “bastante medo” em ficar pela incertezas relacionadas à expansão do vírus. A epidemia já matou 1.013 pessoas (11/02). Apenas na segunda-feira, 108 pessoas morreram em consequência do vírus, o maior número de mortes já registrado em um dia desde o início do surto, em dezembro.

A letalidade do coronavírus já supera a da epidemia provocada pelo Sars (Síndrome Respiratória Aguda Grave) — também originado na China — que matou 774 pessoas ao redor do mundo em 2003.

O grupo de 34 brasileiros que estavam em Wuhan foi trazido em dois aviões da FAB no domingo após semanas de impasse. Inicialmente, o presidente Jair Bolsonaro indicou que não tomaria nenhuma medida para retirá-los de Wuhan. “Não seria oportuno a gente tirar de lá (…) não vamos colocar em risco nós aqui por uma família apenas”, afirmou.

O recuo veio logo após a difusão de um vídeo em que o grupo fez um apelo pedindo ajuda ao governo. A iniciativa foi antecipada por uma série de reportagens que detalharam o temor dos brasileiros de permanecerem em Wuhan.

Miguel Mancero esteve com os brasileiros na sexta-feira passada pouco antes da viagem de volta ao Brasil. “O clima era de alívio e de muita unidade”, conta. Os 34 repatriados ficarão em quarentena por 18 dias na cidade na cidade de Anápolis, a 55 km de Goiânia.

A queda de braços diplomática em torno à repatriação dos brasileiros teria ajudado o estudante a definir sua carreira universitária. “Estava em dúvida entre (estudar) educação física e relações internacionais, mas acabei decidindo por relações internacionais depois desse processo que infelizmente a gente está passando”, afirma.

Campus fantasma e rotina na cozinha

Desde o ano novo chinês, Wuhan — a 42ª maior cidade do mundo — ainda se vê desabitada. O transporte público continua paralisado, a circulação de automóveis proibida e as pessoas permanecem confinadas em suas casas com medo de contágio. Restaurantes e lojas permanecem fechados.

Antes mesmo de Wuhan ser bloqueada para conter a expansão da epidemia, o estudante brasileiro já havia estabelecido uma espécie de “quarentena pessoal” para se preparar para uma prova de proficiência em mandarim.

Seu principal desafio, ele diz, não é lidar com o confinamento e sim cozinhar, tarefa que ele nunca tinha feito desde que chegou à China. “Não tinha utensílios de cozinha, tinha apenas uma faca e uma chaleira, mais nada. (Cozinhar) me pegou de surpresa.”

O campus da Universidade de Hubei onde Manacero mora permanece deserto. O movimento nas ruas aumenta um pouco quando o supermercado local abre “a cada quatro dias mais ou menos”, relata. Esse é um dos poucos momentos que o estudante deixa seu apartamento no campus para reabastecer o estoque de alimentos.

Antes de entrar no supermercado, a temperatura dos consumidores é verificada e o uso de máscaras continua sendo obrigatório. Manacero diz que alimentos processados não faltam, mas vegetais estão entre os produtos que desaparecem das prateleiras rapidamente.

O jovem não se arrisca a sair do campus universitário. Quanto maior for a exposição, maior é o risco de contágio. O confinamento imposto pela epidemia — e acompanhado de perto pelas autoridades chinesas — alterou drasticamente o convívio social. A relação do estudante brasileiro com os amigos que permaneceram na universidade se limita ao contato virtual. “Não os vejo há algum tempo. O pessoal evita falar um com o outro cara a cara”, conta.

A recomendação dos chineses para combater o vírus é a higienização permanente das mãos, uso de máscaras, boa alimentação e atividades físicas para reforçar o sistema imunológico.

Por ter uma vida de atleta e ser saudável, o estudante brasileiro confia que se for infectado não correria risco de morte. “O vírus ataca todo tipo de pessoa, mas a mortalidade é de pessoas com problemas pré-existentes”, afirma.

Entretanto, a visão inicial de que somente idosos e pessoas com doenças crônicas correm risco de morte “é equivocada”. A avaliação é de um médico estrangeiro que atua na China e está colaborando para ajudar a controlar a epidemia.

A morte do médico chinês que tentou alertar sobre a epidemia se tornou um caso emblemático sobre a agressividade do vírus, inclusive entre os jovens. O oftalmologista Li Wenliang, 34, morreu após contrair o coronavírus enquanto atendia pacientes na cidade de Wuhan, epicentro do surto da doença.

Dos mais de 42 mil casos de infecção registrados até esta terça-feira, quase 32 mil — três quartos dos infectados — estão concentrados na província de Hubei.

“Ou o sistema de saúde está sobrecarregado ou o vírus é mais agressivo em Hubei, onde parece existir uma carga viral maior”, afirma o médico. “Provavelmente é isso que está pesando na mortalidade e na cadeia de infecção”, afirma.

No sábado, a Organização Mundial de Saúde (OMS) disse que ainda é cedo para afirmar que o surto tenha atingido seu pico.

O estudante brasileiro espera retomar o curso de mandarim a partir do dia 17. As aulas, antes presenciais, serão substituídas por vídeoaulas. Mancero ainda não sabe quando retornará ao Brasil.

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