''MOROGATE'': DA SATIAGRAHA Á LAVA JATO E A INCAPACIDADE DO ESTADO BRASILEIRO DEMONSTRAR A CULPA SEM VIOLAR NORMAS CONSTITUCIONAIS

Publicado por Nilton Roberto Martins Cabral Guimarães

Existe na sociedade Brasileira um consenso informal que o Brasil é o País da “impunidade”. Mas, como se chegou a este “axioma popular”, já que o País tem mais de 750 mil custodiados, destes 40% são presos cautelares, ou seja, sem formação de culpa.

O Brasil já ocupa a 3ª população carcerária do mundo, e crescendo, o que demonstra que está na contramão da humanidade, já que nos países civilizados, observa-se um decréscimo substancial no cárcere.

Com esta gigantesca população carcerária não se pode dizer que o Brasil é o País da impunidade, mas da “Seletividade Penal”, pois o sistema carcerário está “empilhado” de negros, jovens e pobres, que já são público alvo de outras violências sociais, e figuram como “clientela” quase exclusiva do sistema criminal, pois sequer conseguem um defesa técnica material, já que a defensoria pública, com todo o seu esforço, presta a assistência formal.

O que deveria ser consenso é que o Brasil tem um péssimo sistema criminal, e não só pela assimetria de boa parcela da população em ter acesso a uma boa defesa técnica, mas porque a legislação é antiga (o Código Penal é um Decreto Lei de 1940, embora com constantes alterações, e o Código de Processo Penal, também é um Decreto Lei de 1941, de igual forma constantemente “remendado”, além da proliferação desordenada e atécnica de legislação extravagante), e principalmente pela incompatibilidade destas legislações com a Constituição Federal de 1988.

Como visto a base do sistema ordinário criminal Brasileiro foi produzido na década de 1940, período da Ditadura Vargas, logo, esta legislação espelha diplomas italianos fascistas, bem como estava em sintonia com a Constituição Brasileira de 1937, de índole autoritária, e que foi utilizada como referência a Constituição Polaca.

A Constituição Federal de 1988 inaugurou uma sociedade democrática, e que o sistema criminal dever-se-ia se adequar, deixando de ser inquisitório para adentrar num sistema acusatório, em que o Estado (Juiz) descola do Estado acusador (Ministério Público), sendo inclusive vedado ao magistrado condutas instrutórias, sob pena de se mitigar o contraditório, ampla defesa, paridade de “armas”, isenção/imparcialidade do juiz, e outros princípios constitucionais necessários para se obter a prestação jurisdicional democrática.

Diante de uma legislação ordinária atrasada, e com pouca ressonância Constitucional, e da inércia do legislativo em produzir um arcabouço jurídico compatível com um Estado Democrático de Direito, tem competido ao judiciário, através do controle de Constitucionalidade e Convencionalidade triar o que é compatível com o Diploma Magno de 1988.

Nesta árdua tarefa de adequar juridicamente as normas infraconstitucionais à Constituição, aliado à seletividade penal, surge em parte dos membros do Ministério Público e da Magistratura a confusão entre justiça e “justiçamento”, sendo esta última a necessidade de acabar com a seletividade penal, coletivizando as violações processuais, que sempre ocorreram com os pobres, agora, também com os “ricos”, que são os “novos clientes” do sistema penal.

O “Justiçamento” tem como premissa que todos os meios justificam os fins, inclusive a violação do sistema legal (lato sensu), pois tem apoio popular, já que numa sociedade ultra desigual, as massas apoiam o “novo” punitivismo direcionado aos ricos, e a qualquer preço.

Não é exigível que a sociedade obtusa saiba que o “preço” das violações de normas constitucionais atingem o próprio Estado Democrático de Direito, e o sistema de garantias, contra o “leviatã”. A Sociedade além da pouca instrução, ou nenhuma instrução jurídico-cidadã, ainda está contagiada pelo passionalismo maniqueísta político-partidário, e que suas aquiescências vão ocorrendo exclusivamente de acordo contra quem são as decisões.

A primeira, ou pelo menos a relevante operação da polícia federal que buscou combater a criminalidade organizada do “colarinho branco” foi a Satiagraha. A força-tarefa policial, ministério público e judiciário dispendeu muito tempo e dinheiro público, na persecutio criminis, sendo um fiasco, pois teve todos seus atos decisórios anulados, em razão de violações constitucionais, desde o sistema policial até os órgãos judicantes.

A anulação dos processos oriundos da Satiagraha, representou não só lesão ao erário público, como principalmente a constatação que a estrutura estatal Brasileira, ainda não sabe promover um processo criminal sem violar as normas constitucionais do contraditório democrático, já que historicamente o autoritarismo do processo inquisitivo fez história nas estruturas judicantes e dominus litis.

O grande desafio da operação Lava Jato era processar e julgar os acusados dentro do devido processo legal, ou seja, sem violar as garantias constitucionais e legais, sob pena de se transformar numa nova Satiagraha.

Infelizmente, a operação Lava Jato desde a fase policial até a esfera judicial cometeu inúmeras violações legais e Constitucionais (prisões preventivas exclusivamente para “estimular” delações, conduções coercitivas sem intimação prévia, entre outras), entretanto foram todas “relativizadas” pela cúpula do Judiciário, pois existia no País uma “meta nacional”, o “combate à corrupção”, e juízes e Procuradores da República foram alçados de servidores públicos à “super heróis”.

Caso as recentes divulgações realizadas pela imprensa oficial, através do Intercept Brasil se confirmem, em que existiram “aconselhamentos” do Magistrado ao Ministério Público, na condução da produção das provas, fica demonstardo a violação da premissa básica da condição da judicância, que é a imparcialidade, o que tornam as decisões maculadas com vícios insanáveis, devendo ser anuladas.

Somente o caso concreto demonstrará em quais processos estes “aconselhamentos” incidiram, e devendo nestes casos, anular-se os processos, e, necessariamente suas decisões.

Mais uma vez é de se lamentar que esforços hercúleos, e muito dinheiro público gastos, com as investigações podem/devem ter sido em vão, pois possivelmente foram violados normativos constitucionais, e desta forma todo o trabalho produzido pode ter sido em vão.

Parece que mais que uma legislação atrasada, tem-se intérpretes que ainda não se adequaram à Hermenêutica Constitucional, e seus axiomas, pois o punitivismo irracional e o “justiçamento” tem produzidos nas academias jurídicas muitas “crias”.

Além da possível anulação de inúmeros processos, discute-se se houve o LAWFARE, para os réus políticos, em especial o ex presidente LULA, o que tornam as ilegalidades ainda mais relevantes, pois transcende a mera esfera de vícios processuais, mas atinge ao patamar de aparelhamento jurídico do Estado contra setores sociais, o que se confirmado desestabiliza as já combalidas instituições.

Discute-se se as gravações trazidas ao público através do “Intercept Brasil”, como sendo obtidas através de hackers, ou seja, provas ilícitas, poderiam afetar aos processos da lava jato, e os “hackeados”, o ex Magistrado Sergio Moro e o Procurador da República Deltan Dellagnol.

Pela Teoria dos frutos da arvore envenenada, e sua interpretação Constitucional (fruits of the poisonous tree), as provas ilícitas podem ser usadas em benefício dos réus, ou seja, quem eventualmente foi condenado com base ou através delas, pode/deve postular a anulação dos processos, pois estas provas contaminam todo os arcabouço instrutório, e por conseguinte as decisões judiciais.

Portanto, se confirmado que houve conluio entre Magistrado e Ministério público com objetivos “não democráticos”, no intuito de condenações, ainda que as informações tenham sido obtidas mediante provas ilícitas são documentos aptos a anulação de processos e absolvições.

Para os eventuais “hackeados” estas provas ilícitas são imprestáveis para acusação, ou seja, o ex Juiz Sergio Moro e o Procurador da República Deltan Dellagnol não podem ser acusados, e eventualmente condenados com base nelas, pois são instrumentos inaptos a serem considerados “provas”, já que foram adquiridas de forma não recepcionada pela Constituição Federal.

O lamentável é constatar que ainda que provado que o ex juiz Sergio Moro e o Procurador da República Deltan Dellagnol tenham agido de forma sórdida e com ardil, no intuito de burlar as regras do “jogo processual”, e quiçá LAWFARE, ainda assim, mantem-se com apoio popular, pois a população torpe não entende a gravidade das violações Constitucionais.

Segundo Carnelutti ,

Não basta a garantia da jurisdição, não é suficiente ter um juiz, é necessário que ele reúna algumas qualidades mínimas, para estar apto a desempenhar seu papel de garantidor. A imparcialidade do órgão jurisdicional é um “princípio supremo do processo”, e como tal, imprescindível para seu normal desenvolvimento.1

Portanto, a imparcialidade do julgador deve corresponder à posição de alheio aos interesses da lide, o que não significa que está acima das partes, mas além de suas expectativas particulares. A ausência da imparcialidade afeta a confiança que a sociedade tem no Estado (julgador), e por conseguinte deslegitima o julgado.

Os desafios da sociedade Brasileira são gigantescos, e pertinem desde a atualização da legislação ordinária em compatibilidade à norma Constitucional, o acesso formal e material da sociedade à jurisdição, a educação cidadã da população, para não mais se tolerar violações na sua esfera de Direitos, como meio para qualquer fim, e principalmente a formação de juristas democráticos que saibam que só existe um viés à justiça, que é a Constituição, e qualquer outro caminho “obscuro” é “justiçamento”, que não se coaduna com um Estado Democrático de Direito, para um País que se propõe a ser civilizado.

1- CARNELUTTI, Francesco, apud LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal, Editora Saraiva, 2019.

Salvador, 11 de Junho de 2019.

Nilton Roberto Martins Cabral GuimarãesAdvogado e Consultor Jurídico
Sócio Fundador do Escritório Nilton Roberto Guimarães Advocacia e Consultoria Juridíca, formou-se em Direito pela UCSAL (Universidade Católica do Salvador), Ex- advogado e consultor Jurídico da CONDER (Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia) Especialista em Direito Público com ênfase em Direito Municipal pela UFBA (Universidade Federal da Bahia) Membro e Sócio Fundador do IDMB (Instituto de Direito Municipal da Bahia). 
Especialista em Ciências Criminais (Faculdade Baiana de Direito) E-mail: niltonroberto@gmail.com, site: www.niltonrobertoguimaraes.com.br e Tel: (71) 3480-1852.

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