POR TRÁS DO GOLDEN SHOWER, UMA ESTRATÉGIA DE FIREHOSING

Seguidores de Jair Bolsonaro (Imagem: Cris Faga | Getty Images)

Leandro Gavião* e Alexandre Arbex, Diplomatique

Passado o alarde inicial, o núcleo político do governo federal parece ter chegado à conclusão de que Jair Bolsonaro cometeu um grave erro ao publicar um vídeo com conteúdo explícito no Twitter. No cálculo do presidente, a postagem deveria cumprir uma dupla função: responder aos protestos entoados por vários blocos de carnaval do país e recuperar temas que são caros a uma parte de sua base de apoio ideológico.

Além da enxurrada praticamente unânime de críticas realizadas por intelectuais e veículos da imprensa brasileira, a repercussão internacional foi igualmente dura ao noticiar o episódio. Se a retórica maniqueísta do governo ainda é capaz de soar convincente aos apoiadores da família Bolsonaro – que rechaçam qualquer opinião negativa como uma tentativa de desestabilização urdida por adversários ideológicos –, a mesma estratégia de comunicação não parece funcionar com tanta facilidade quando as críticas vêm de veículos estrangeiros com linhas editoriais diversas.

Não restam dúvidas de que a declaração, seguida por outro tweet provocativo e indecoroso (“O que é golden shower?”), foi danosa em todos os sentidos, desde uma possível quebra de decoro – conforme argumentou o jurista Miguel Reale Jr. – até a tentativa de reduzir a maior festa popular do mundo às cenas pouco ortodoxas registradas naquele vídeo.

Apesar de tudo, o gesto do presidente rendeu um surpreendente efeito colateral positivo: o rol de seus seguidores no Twitter aumentou em algumas dezenas de milhares depois da publicação do vídeo. E não apenas isso: observando suas últimas postagens, nota-se que foram justamente aquelas duas mais polêmicas que receberam o maior número de curtidas e compartilhamentos. Para além desse efeito quantitativo, os dados ilustram um fenômeno mais amplo: o tipo de populismo que Jair Bolsonaro encarna.

Há poucas semanas, em entrevista concedida a jornais brasileiros, Steve Bannon, ideólogo da nascente “internacional populista de direita” e articulador da candidatura de Donald Trump nos Estados Unidos, declarou que “o populismo é o futuro da política”.

Uma das bases da estratégia do novo populismo é o firehosing (mangueira de incêndio). Se, na vida real, a mangueira de incêndio utiliza um volume excessivo de água para alagar um determinado local, no mundo político, o firehosing inunda as redes sociais – de forma contínua e repetitiva – com notícias sem compromisso com a realidade ou com a consistência do conteúdo. Em um cenário em que as pessoas se informam cada vez mais pelo telefone celular e em que a classe política tradicional e os grandes meios de comunicação perderam credibilidade, desligar a “mangueira de incêndio” se tornou um grande desafio para a comunicação política.

Esse desafio diz respeito à possível superação dos canais tradicionais do discurso político pela comunicação direta, sem mediações e intérpretes, entre representante e representados. É claro que os métodos clássicos de produção de falas políticas continuarão a ter espaço estratégico na condução do governo, seja por meio de canais clássicos, como entrevistas oficiais à grande imprensa e pronunciamentos em rede nacional, seja por meio das táticas típicas da comunicação indireta, como o uso de porta-vozes, ministros ou lideranças partidárias para lançar no debate público os temas politicamente mais controversos. Com Jair Bolsonaro, porém, a fórmula de comunicação política direta, que dispensa intermediários entre cidadãos e presidente, promete desempenhar um papel fundamental.

De fato, o recurso à comunicação direta incorre em certos riscos, uma vez que a imagem pública da autoridade fica mais exposta ao desgaste e à confrontação. Em compensação, colocar-se em contato imediato com o eleitorado e se mostrar “sensível” – em um nível de proximidade quase pessoal – às opiniões de seus seguidores, oferece a estes últimos uma ilusão de participação política. Fundada numa sensação de protagonismo individual, essa ficção pode se afigurar mais eficaz e tangível do que as formas mediadas de participação política que a democracia representativa – com a complexidade de suas estruturas de funcionamento e a obtusidade de seu léxico – parece proporcionar. Ainda que seja falsa, essa ilusão gera consequências políticas reais.

Esse novo tipo de populismo, produzido pela superexposição e pelo imediatismo das redes sociais, modificou o estatuto da própria representação política: o representante eleito tende a ser, cada vez menos, o “depositário” da vontade dos representados para se tornar o próprio espelho destes. Nesse jogo de identificações mútuas, confunde-se com eles, como se fosse um membro da família ou do seu círculo próximo de amigos, comunicando-se por meio de uma linguagem simplificada e um código próprio que sela o pertencimento de todos a um mesmo grupo. O segredo do “mito” não é ser venerado como uma força inacessível, mas mostrar àqueles que o cultuam que o poder também é deles.

Quando Bolsonaro publica um vídeo de conteúdo explícito a pretexto de condená-lo, ele aposta no fortalecimento desse tipo de vínculo horizontal, atuando, diante de seus seguidores, menos como porta-voz que como interlocutor privilegiado. As reações de seu público à tal estratégia de comunicação mostram que o presidente talvez esteja certo ao acreditar que, para esses seguidores, parece ser mais importante ter, na presidência, não um representante que interprete sua vontade – ainda que a frustre –, mas um semelhante “bem colocado” que dê aos que dele se sentem próximos o gosto poderoso do exercício direto da autoridade.

Ao mesmo tempo, a repercussão exorbitante que as postagens motivadas por pulsão moral (“mitagens”) têm suscitado junto à base política bolsonarista – mas também junto à oposição – aponta para outro elemento desse método de comunicação: a pauta de costumes define os limites do debate público em que, paradoxalmente, a manifestação de juízos contrários e divergentes ainda encontra um ambiente de relativa tolerância. Isto se explica por duas razões. Em primeiro lugar, todos podem ter uma opinião “pessoal” ou “espontânea” sobre questões morais sem que a legitimidade dessa opinião dependa de um credenciamento técnico. Em segundo lugar, inversamente, manter aberta essa frente de debate é essencial, do ponto de vista tático, para justificar o fechamento do espaço reservado às discussões econômicas – ou tratadas como estritamente econômicas – relativas, por exemplo, à reforma da Previdência e ao programa de desmonte das políticas sociais: nesse campo, Bolsonaro se esforça para arquitetar uma unanimidade. Seja apelando ao patriotismo difuso de sempre, seja amplificando prognósticos que técnicos e especialistas autorizados traçam a partir da “verdade indiscutível” dos números, anulam-se as possibilidades de debates sobre as diferentes vias reformistas disponíveis.

A exploração política do potencial divisionista das questões morais tem, portanto, um duplo papel: reavivar, de tempos em tempos, as paixões sociais que alimentam o bolsonarismo, ativando os mecanismos ideológicos de identificação entre o governo e seus apoiadores, e demarcando aliados e adversários no campo político. Diferentemente da acepção clássica do conceito, o novo populismo parece dividir, ao invés de unir. E, para fortalecer sua posição, o receituário é claro: não existem restrições estratégicas se o objetivo final é o poder. Tudo se torna válido, até mesmo combinar ducha dourada com mangueira de incêndio.


*Leandro Gavião é doutor em História Política (UERJ); e Alexandre Arbex é doutor em Filosofia (UFRJ).

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