REALIDADE


Teatro Experimental do Negro, dirigidos por Abdias do Nascimento (Imagem: Memorial da Democracia)

Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político

Chico Science em 1995 disse: “O orgulho, a arrogância, a glória, enche a imaginação de domínio. São demônios os que destroem o poder bravio da humanidade.”

“acontece uma ‘vida por hipótese’ quando cada passo é uma audácia sem experiência”.
Musil, o homem sem qualidades

Existem muitas linhas de realidade. Tantas quanto nem mesmo nossa imaginação possa pressupor. Quando Shakespeare falava sobre nossa vã filosofia que bóia entre o céu e a terra, penso que tratava disso mesmo, as infinitas linhas de realidade que podemos ou não perceber.

Não me atreverei a entrar nesse emaranhado de fluxos que servem a infinitos olhares e sensações, mas vou seguir três deles como exemplo dessa dinâmica abertura das existências. O primeiro que é dado pelas informações cruas que hoje percorrem as redes sociais e que alimentam muitas opiniões sobre tudo. O segundo, daqueles que vêem a realidade como fonte de sofrimento. O terceiro daqueles que vivem a realidade como felicidade plena.

O importante a notar aqui é que cada um desses fluxos provoca uma forma bem específica de existência, moldando nossa psique e definindo nossa saúde.

O primeiro fluxo dado por dados de realidade pouco aleatórios dispõem nossa percepção num caminho que é sempre contraditório, porém toda contradição de sua exposição é dicotômica, ou seja, opera justamente num painel extremamente moralista. Sua função é estabelecer um diagrama entre o bem e o mal, embora a escolha do que seja o bem ou o mal é facultado a quem fizer sua própria opção. Aqui funciona o que chamam de livre arbítrio de um modo bem eficaz.

Embora haja um resultado previsível, aqui a psique oscila entre tristezas e alegrias, entre desejos e condenações, entre aflições e júbilos. As frustrações são constantes assim como o serão os mecanismos da história segundo certas linhas interpretativas. É um princípio hegueliano que opera segundo movimentos antitéticos. A contradição faz mover multidões aptas a seguir segundo um protocolo complexo.

Nesse caso, contudo, não há alienação, como não há em nenhum deles, já que as escolhas são percorridas segundo um cardápio de opções reais e realizáveis. Tais escolhas se manifestam onde quer que se ofereça a oportunidade: na política, na cultura, nos afetos. Os cardápios estão prontos, então nada de criatividade exacerbada.

Entre as ofertas desse cardápio de generalidades há de tudo um pouco. Mas todas estão acordadas segundo um programa razoável. Os pontos de fuga desse arrazoado são aceitos, claro, e não há porque imaginar que sejam exorbitantes. Aberturas para os milagres, para a fé, para as certezas do futuro, estão por aí para serem beliscados ou conferidos e consumidos sem sobressaltos.

Mas de modo geral e quase de forma infalível, qualquer opção é ofertada pronta, com pouca ou quase nenhuma possibilidade de aprofundamento ou modificação que não as que a própria oferta sugere.

O candidato, a profissão, os amores, os julgamentos, o preconceito, no sentido de ser mesmo um conceito previamente oferecido, tudo está pronto e acabado, com breves lacunas onde cada usuário vai colocando suas subjetividades, e se apropriando daquilo como se fosse seu. Mas note que a escolhas e nada é movido senão pelas escolhas. As combinações mostram que as escolhas não são uniformes, mas que respondem a íntimas contabilidades extremamente complexas, daí que a resultante é sempre surpreendente, diante do painel das escolhas, claro.

A grande maioria das pessoas que se utilizam dessas ofertas cumpre seu tempo vital de modo arbitrário, claro, mas como se não fosse, pois ao final, geralmente, estão exaustas e infelizes aguardando o fim de seu tempo na terra.
São consumidores e, com o tempo, prossumidores, pois produzem seus próprios significados e consomem as diretrizes que admitem ter criado. É uma ilusão, claro, mas nem tanto.

Digo que é uma ilusão, pois não criaram nada do que consomem, mas acreditam que sua percepção é singular e única. Daí que é bastante funcional no sentido de que pautam suas escolhas por cálculos próprios.
O painel de onde extraem suas vidas é fluido também e modifica o tempo todo segundo se fixa o olhar num ou noutro ponto de suas luminosas arquiteturas.

Isso explica, por exemplo, porque um aspecto da vida de cada um pode ser manipulado de um jeito ou de outro.

Então, ser negro pode ser entendido socialmente de muitas formas em tempos diferentes. Tomo emprestado a experiência do teatro experimental do negro que entre os anos 1940 e inícios dos 60 inaugurou um jeito cultural muito expressivo de um grupo de militantes negros no tecido social. Essa forma de identidade cultural sofisticada criaria raízes nos anos seguintes.

A Wikipedia oferece as informações dessa experiência que transcrevo aqui.

O TEN foi fundado e dirigido por Abdias Nascimento. A ideia para sua criação nasceu em 1941, após um encontro com os poetas Efraín Tomás Bó, Godofredo Tito Iommi, Raul Young e Napoleão Lopes Filho, que desde a década de 1930 formavam a Santa Hermandad Orquídea, para assistir à peça O Imperador Jones, de Eugene O’Neill, no Teatro Municipal de Lima. Naquela montagem, um ator branco com o rosto pintado de negro, o argentino Hugo D’Evieri, interpretava o protagonista negro.

De volta ao Brasil, Abdias do Nascimento foi preso em consequência de seus protestos contra a discriminação racial. Ainda na penitenciária do Carandiru, criou com outros presos o Teatro do Sentenciado. Ao deixar a prisão, concebeu uma companhia teatral voltada para o desenvolvimento da cidadania e conscientização racial. O elenco foi composto por operários e empregadas domésticas. Alguns dos primeiros membros eram analfabetos, e foi preciso realizar cursos de alfabetização para que eles pudessem ler os textos das peças.

A estreia da companhia foi em 1945, com O imperador Jones. Eugene O’Neill cedeu gratuitamente os direitos para encenar o texto. A escolha se justificou pela ausência, na dramaturgia brasileira da época, de obras que contemplassem o problema racial. No dia 8 de maio de 1945, o TEN se apresentou no palco do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Aguinaldo Camargo representou o papel principal sob a direção de Abdias Nascimento.

A primeira montagem de um texto brasileiro veio dois anos depois, com O filho pródigo, drama poético de Lúcio Cardoso. Aguinaldo Camargo atuou ao lado de Ruth de Souza, José Maria Monteiro, Abdias do Nascimento, Haroldo Costa e Roney da Silva. Tomás Santa Rosa assinou os cenários. Nélson Rodrigues escreveu para o TEN a peça Anjo Negro (1946), cuja estreia no Teatro Municipal do Rio de Janeiro teve como condição de o ator principal ser um branco pintado de preto. O TEN produziu vários outros espetáculos, trabalhando com textos brasileiros e estrangeiros.

Além da atuação nos palcos, o TEN assumiu uma postura política, criando entidades como a Associação das Empregadas Domésticas e o Conselho Nacional de Mulheres Negras. Publicou o jornal Quilombo, que denunciava a discriminação racial em todo o Brasil e dava notícias e informações sobre cultura negra no mundo. Combateu o padrão eurocentrista de beleza dos concursos de Miss Brasil, realizando concursos de beleza para mulheres negras. Em 1955, promoveu a Semana do Negro e um concurso de artes plásticas tendo como tema o Cristo Negro. Publicou o jornal Quilombo (1948-50), a antologia Dramas para negros e prólogo para brancos (1961), e os livros Sortilégio (Mistério Negro), de Abdias Nascimento (1959), e Teatro Experimental do Negro: Testemunhos (1966).

O TEN foi impedido pelo governo brasileiro de participar do primeiro Festival Mundial de Artes Negras, realizado no Senegal em 1966, ocasião em que Abdias Nascimento publicou sua “Carta Aberta a Dacar“ denunciando o critério discriminatório aplicado pelo Itamaraty (Ministério das Relações Exteriores). O artigo foi publicado pela revista Présence Africaine, editado pelo renomado intelectual senegalês Alioune Diop.

Em 1968, o TEN realizou um ciclo de debates e a primeira exposição do projeto Museu de Arte Negra, no Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro. Logo em seguida, Abdias Nascimento viajou para o exterior, onde foi obrigado a ficar durante 13 anos de exílio. No exterior, ele continuou o trabalho do TEN ao desenvolver atividades culturais e artísticas, bem como continuar o combate ao racismo.

Não seria difícil imaginar onde esse tipo de organização iria desembocar. Afinal, os anos 70 e 80 viram surgir inúmeros movimentos de afirmação da identidade cultural cuja expressão e valorização impulsionava e contaminava outros grupos a compor um rasgo no tecido social de modo tão forte que chegaria, indubitavelmente, ao nível da política. Movimento emergente e consistente que irradiava por inúmeros núcleos: galeria do rock, movimento dos officeboys do metro são bento, movimento Black Power, dentre tantos outros.

Esse caminho era inspirado no fortalecimento ocasionado pelos movimentos dos direitos civis que avançava nos Estados Unidos entre os anos 1950-60.

Por lá, inverteu-se a lógica do papel do Estado, de impositor de desigualdades sociais em oponente da discriminação racial, ofertando oportunidades, ainda que tímidas, que atingiram de 15 a 20% da população negra.

A formação de uma classe média de profissionais liberais se consolidou nos anos seguintes. Era a esse lugar político e social que vários grupos organizados brasileiros também almejavam.

O movimento negro unificado, me parece, foi a solução encontrada para seguir por esse caminho. Fundado em 1978, congregava uma série de grupos num movimento consistente: Centro de Cultura e Arte Negra (CECAN), Grupo Afro-Latino América, Associação Cultural Brasil Jovem, Instituto Brasileiro de Estudos Africanistas (IBEA), Câmara de Comércio Afro-Brasileiro, Instituto de Pesquisa das Culturas Negras (IPCN), Escola de Samba Quilombos, Renascença Clube, Núcleo Negro Socialista, Olorum Baba Min, Sociedade de Intercâmbio Brasil África (SINBA), Centro de Estudos Brasil África (CEBA). Representada pelo filho do Deputado Adalberto Camargo, decidiram pela criação de um Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial. Prisioneiros da Casa de Detenção do Carandiru enviaram um documento se integrando ao movimento, denunciando as condições desumanas em que viviam os presos e o racismo do sistema judiciário e do sistema prisional – Centro de Luta Netos de Zumbi.

Segundo suas próprias memórias, “para enfrentar o racismo, a discriminação racial, este movimento que se transformou no Movimento Negro Unificado, mudou a forma da população negra lutar, saindo das salas de debates e conferência, atividades lúdicas e esportivas, para ações de confronto aos atos de racismo e discriminação racial, elaborando panfletos e jornais, realizando atos públicos e criando núcleos organizados em associações recreativas, de moradores, categorias de trabalhadores, nas universidades públicas e privadas”.

Era a consolidação de mais de 60 anos de movimentos surgidos a partir do projeto de branqueamento que a República havia provocado e era bem determinado esse movimento.

As ações do movimento só recrudesceram nas décadas seguintes.

Elencar todas as ações do movimento seria necessário, mas não aqui nesse espaço limitado; basta uma olhadela em seu histórico para entender os avanços e as promessas que ele continha. Era preciso conter essa avalanche, segundo os senhores da heteronomia.

Um dos elementos fundamentais no cardápio do neoliberalismo imposto aqui a partir de 1990 foi uma série de empoderamentos, dentre eles, as cotas raciais.

Não estava na pauta de suas exigências políticas as cotas, que não haviam funcionado nem nos Estados Unidos, mas estava na pauta a educação de modo claro e preciso.

Anos 80 e 90 consolidaram o espaço político do movimento, incluindo aí questões sobre educação balizando a lei 10639 sobre o ensino de história da África e do negro no Brasil, fomentando as primeiras idéias e orientações educacionais que culminariam nos Centros de Educação Unificada (CEU), uma experiência de escola que integrava cultura, arte, lazer, incluindo aí cinema, música, quadras esportivas, bibliotecas, material escolar gratuito, alimentação, assistência médica, escola pública e gratuita, encravadas nas zonas periféricas. E conjuntamente a proposta de criminalização do racismo e a resolução 68 das disposições transitórias constitucionais.

Era pra onde o movimento apontava, mas essa simples estratégia das cotas desmontou o caminho virtuoso do movimento no sentido de consolidar um espaço político, econômico e social de referência.

Nesse sentido, o movimento também respondia de modo similar ao movimento negro norte americano com a chegada, também por lá, do neoliberalismo com a eleição de Ronald Reagan.

Jesse Jackson, antigo colaborador de Martin Luther King, propunha a criação de uma aliança interracial de vários grupos étnicos não brancos, mulheres, imigrantes, brancos liberais, chamada então de coalizão arco-íris, marca dos movimentos pela afirmação dos direitos homossexuais desde então.

Todo o perigo da expansão da luta se extinguiu com as cotas raciais para negros.

O empoderamento caminhou com largos passos para as defesas das cotas em universidades, com a criação de tribunais compostos por estudantes, professores e técnicos negros a avaliarem os oportunismos de beneficiários das cotas.

A questão do empoderamento é histórica e demonstrou sempre muita eficiência. Durante o período da escravidão, os senhores de escravos normalmente adquiriam grupos que na sua origem em África eram inimigos, assim enquanto nutriam um ódio recíproco, o senhor não era molestado. Da mesma forma, o senhor escolhia um dos escravos e o premiava com um barrete vermelho, cujo significado é que seria o opressor do plantel e caso recusasse, escolheria outro.

Em Ruanda, os belgas utilizaram procedimento similar. Dividiram os habitantes em identidades étnicas Hutus e Tutsis e ofereceram o poder de oprimir aos Tutsis, caso recusassem, bem, já sabemos. Os nazistas também copiaram o bem sucedido procedimento. Em sua expansão pela Europa, empoderavam grupos nos países invadidos e permitia que esses grupos oprimissem seus concidadãos. Assim foi na França com os colaboracionistas de Vichi, na Tchecoslováquia, na Polônia, etc.

Portanto, o empoderamento não é novo quando se trata de opressão entre os iguais.

Morei no bairro de São João Clímaco, depois do Ipiranga, com meus pais quando viemos pra São Paulo, no final dos anos 1970 inícios dos 80. Explorando o bairro, num dos domingos de dezembro, testemunhei um evento que me recordo agora com um misto de sensações.

Era um jogo de futebol que pesquisando agora está sendo repetido desde aquele tempo, em que amigos auto declarados pretos e brancos (“Preto X Branco”) se enfrentam em times opostos.

Hoje já virou um evento, com faixas e canecas comemorativas. Típico do futebol de várzea, normalmente ocorre quatro partidas nesse dia de domingo, separadas por critérios técnicos relativos à idade dos participantes.

Esse é um lugar simbólico marcado pelo significado que os moradores dessa periferia entendem como uma forma de celebração que rompe com os estereótipos ao exacerbá-los num confronto entre um grupo de amigos cuja dimensão racial se dilui na diversão tensa de uma partida de futebol. Uma partida de futebol, afinal, demanda sempre uma simetria, que é parte de seu ritual.

Nesse lugar social da periferia em que ocorrem essas partidas, portanto, a oportunidade de fazer gols é dada a todos os competidores, independente da cor da pele. Sobre esses lugares e rituais desse porte, Roberto DaMatta escreveu na página 34 de Carnavais, malandros e heróis que

[…] é ali que nós, brasileiros, deixamos de lado nossa sociedade hierarquizada e repressiva, e ensaiamos a viver com mais liberdade e individualidade. Essa é, para mim, a dramatização que permite englobar numa só teoria, não só os conflitos de classes (que são compensados e abrandados no carnaval), como também a invenção de um momento especial que guarda com o quotidiano brasileiro uma relação altamente significativa e politicamente carregada.

*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) e permacultor

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