OLAVO SEM PARTIDO E GRAMSCIANISMO CULTURAL

Na análise da chamada “base social” do governo Bolsonaro, as loucuras aparentes podem apontar para combinações ainda mais insólitas. Quem achava que já tinha visto de tudo não acreditava que os degraus em direção a porteira do inferno fossem tantos

Olavo de Carvalho


Rogério Mattos*

Na análise da chamada “base social” do governo Bolsonaro, as loucuras aparentes podem apontar para combinações ainda mais insólitas. Quem achava que já tinha visto de tudo com os glamourosos economistas do Plano Real (mistura própria aos anos 90, “requinte” e “cultura popular”, como em programas da Hebe), a nova virada política (sem contar o tosco parênteses chamado Michel Temer), não acreditava que os degraus em direção a porteira do inferno fossem tantos.

Já que comecei a abordar o tema por baixo, vou rapidamente contar o caso do “emérito” Divaldo Franco, médium espírita, que bem antes do “escândalo do WhatsApp”, cerrava fileira junto aos piedosos olavetes. Depois veremos como isso se insere no contexto geral do programa Olavo sem Partido e do Gramscianismo Cultural.

No vídeo, Allan Kardek é apresentado como um cruzado contra o “materialismo marxista”. Marx era um OCIOSO, nunca trabalhou! Viveu às expensas da esposa rica. O primeiro comunista já era um vagabundo. Pregou uma doutrina revolucionária que tem levado o mundo a falência a família e as nações, baseado em uma doutrina pseudo-científica. Por que? O seu princípio central seria “destruir a família e degradar a sociedade”, como se tem feito no Brasil governado pelo PT (leia-se “corrupção”). Depois ele começa um lenga-lenga, uma sub-versão (das tantas que há) da teoria da mamadeira de piroca, que teve como condutora a “digníssima” Dilma Rousseff. Quem tiver paciência que veja o resto do vídeo.

Entretanto, já que se pedem tantas autocríticas da esquerda e tratamos de assuntos piedosos, farei uma breve concessão. A virtude da paciência deve ser exercida mesmo quando vemos uma configuração de poder mais favorável (sim, vale a pena ver o vídeo do Divaldo até o fim; mais uma peça de comédia rara).

Georges Bataille, intelectual francês que se moveu entre o surgimento das vanguardas artísticas do século XX e levou sua influência até a escola chamada de pós-estruturalista, fez a teoria, em livro homônimo, a respeito da Parte Maldita. Em suma, todo processo social que produz riqueza material ou cultural em abundância acaba por gerar um excedente, um sem número de novas tecnologias, referências culturais, assim como acumulação de riquezas, que, em determinado momento, podem ser usadas não só para frear o desenvolvimento virtuoso obtido até então, como ser usado como máquina mortífera contra essa sociedade mesma.

O surgimento das bombas atômicas era o caso em questão naquele momento.

O caso atual, pelo contrário – e é o contexto que quero destacar -, diz respeito a “parte maldita” durante o governo Lula e os sucessos do Ministério da Educação. Com todas as vantagens que minimamente se conhece – e se reconhece – em amplos setores sociais, gerou sua parte maldita pelo menos em duas frentes. De um lado, o modelo quantitativista do Capes, algo meramente importado do exterior e sem cuidado às áreas não tecnológicas, ou seja, às humanidades (não detalharei isso aqui). De outro, por causa do aumento nunca antes visto nas vagas em universidades, houve uma proliferação de sistemas de ensino controlados por empresas transnacionais. Tudo isso calcado numa economia que triplicou seu PIB e se tornou a 6ª maior economia do planeta.

Quem é professor e lida com esses “sistemas”, seja na rede pública ou privada, sabe que aquilo é a implantação neoliberal da Escola sem Partido. O preparo da aula por parte do professor vira algo praticamente descartável. Um muitos casos, o docente parece que precisa ser somente alfabetizado para poder ministrar as aulas. O modelo dos sistemas de ensino é uma espécie de Telecurso da Fundação Roberto Marinho, porém dentro da estrutura escolar tradicional. Divagar para além das APOSTILAS é heresia. Cada professor arranja um jeito de poder educar para além dessas diretrizes dacronianas, que por si só são maléficas, mas aumentam seu grau de perversão ao multiplicar a quantidade de matérias a serem ministradas em pouquíssimo espaço de tempo. O tempo do professor é diminuído ao mínimo possível.

Quando o ministro da Educação indicado por Bolsonaro, Ricardo Vélez Rodríguez, propõe uma descentralização do ensino com maior participação dos municípios na formulação do ensino público, abre espaço para que os cartéis transnacionais formado por essas “novas escolas” tomem de vez o ensino público municipal, por já serem presentes nessa esfera e porque, tendo em vista a pulverização de pontos de vista e a fragmentação e escassez de recursos dessas entidades, a âncora continuará a ser o capital privado. Substitui-se o “pseudo-cientificista” e marxista MEC pela entropia ou pelo livre-mercado. Ao final, claramente, essas duas linhas se encontram…

Leia também: Uma aula com Ricardo Vélez, novo ministro da Educação

O que se propõe, portanto, com Ricardo Vélez, é a continuidade da “parte maldita” da gestão Haddad, mas agora com ameaças a integridade física dos professores e as que podem vir através de um processo judicial. Os professores não tem mais que temer apenas serem demitidos por não seguirem as metas dos infalíveis “sistemas de ensino”…

O outro lado da questão – e é tão tosca quanto breve, ainda que central a todo esse debate – é a concepção olavete de “gramscianismo”. Não se iludam. Como tudo no governo Bolsonaro, recende a púlpitos e oratórios. O “gramscianismo” teria chegado no Brasil através da Teologia da Libertação, criada por um setor da Igreja Católica.

Gramsci teria dito que não se pode derrubar a Igreja num embate frontal. Portanto, deve-se combatê-la “por dentro”. Toda a doutrina social dos padres da igreja são diretrizes vindas diretamente do Politburo, engenhada por Nikita Kruschev. Seria, segundo o astrólogo e filósofo de internet, uma maneira de camuflar os argumentos comunistas com palavras do evangelho.

Esse é o fundo religioso do chamado “marxismo cultural” que teria uma variante na Escola de Frankfurt. Nesse último caso, Olavo se acha o único capaz de dizer a verdade sobre o marxismo, por ele ter sido marxista mas também porque, ao ter estudado as doutrinas no Oriente Médio, os Vedas e o islamismo – para dar só alguns exemplos – ele é capaz de, “iluministicamente”, refutar “por fora” todo o “culturalismo marxista”. Vê-se que não se sai da atmosfera das igrejas, porém, ao se descer ainda mais os degraus do inferno, passa-se a se sentir seus odores místicos.

Um ponto estratégico acaba por se salientar: o ataque da igreja católica aos “padres sociais”, ao seu trabalho de base, abriu caminho para a substituição da Teologia da Libertação pela Teologia da Prosperidade. Por isso as igrejas evangélicas e católicas abençoam umas as outras pelo trabalho em conjunto. Com toda certeza, isso não tem só relação com o trabalho com os camponeses (onde os “padres sociais” ainda tem relativa força), mas com as bases urbanas, indo diretamente de encontro à crítica de Mano Brown no ato público de campanha na Lapa. As periferias dos grandes centros são, como todo processo de autofagia social, severamente atingidas. E foi nesses “centros periféricos”, por assim dizer, principalmente no Rio e São Paulo – antigos redutos tanto petistas quanto brizolistas (a Baixada Fluminense) – que Bolsonaro “matou a pau”.

E foi só nisso também (e tanto foi…), com seus pouco mais de 30% dos votos totais.

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Por honestidade intelectual, digo que não é menos grotesco e irreverente ouvir palestras ou entrevistas de Pérsio Arida ou Gustavo Franco. A única diferença entre esses dois campos é que um é laico e outro não. Por isso o Plano Real é um dogma ainda a ser superado, com seu sistema da dívida e a manutenção de baixas taxas de inflação através de medidas econômicas recessivas. “Pagar a dívida eterna” (afirmativa da igreja); viver no mundo com “choro e ranger de dentes” (o éthos medieval).

PS: Todo o governo produz saldo positivos e deixa passivos. É inevitável e não se precisa recorrer à teoria econômica de Bataille. O fato é que existiria muito a se avançar na parte educacional com a continuidade de um governo trabalhista. Sem dúvida, esses malefícios criados como efeitos colaterais (o governo não é uma pequena empresa e, ao contrário do Power Point curitibano, não dá para se controlar tudo e ainda mais de uma só vez) não se tornariam um “sistema fechado”, covarde e deseducador, como se vê na conjunção da plataforma olavete com a proposta de pulverização do ensino público pelo suposto inspirado de Anísio Teixeira (como são piedosos!), Vélez Rodriguez. Como plano geral, não é por nenhum acaso que houve um movimento massivo de espíritas para a ultra-direita. Todos compartilham um “sentimento de classe”. Média. Como diz a página do Facebook, Espiritismo de direita é assédio!

*Rogério Mattos é professor e tradutor da revista Executive Intelligence Review. Formado em História (UERJ) e doutorando em Literatura Comparada (UFF). Mantém o sitehttp://www.oabertinho.com.br, onde publica alguns de seus escritos.

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