NÃO VAI TER GOLPE: A IMPORTÂNCIA DA DISPUTA SIMBÓLICA



Rafael Sampaio*

Surpreendentemente, nos últimos dias, boa parte das discussões a respeito do impeachment não se centram em contagens de deputados a favor ou contra à medida ou nas estratégias deste ou daquele posicionamento para barrar ou aprovar o impeachment. Considerável parte das discussões debatem se o impeachment é golpe ou não e os motivos para tanto.

Apesar de sua considerável incapacidade na comunicação política, o governo Dilma foi capaz de 2015 emplacar o enquadramento “impeachment sem crime é golpe”. E, atualmente, a cada evento que permanece, a afirmação é repetida pela presidente e pelos seus apoiadores: “impeachment sem crime de responsabilidade é golpe”. Além, claro, do mantra “não vai ter golpe”, que recebe cobertura midiática e repercussão online.

Da mesma maneira, os defensores do impeachment tem vindo constantemente a público para afirmar que o mesmo consta na constituição e é, portanto, uma decisão legal. Da mesma maneira, argumenta-se que é uma prerrogativa do Legislativo utilizá-lo e que as pedaladas fiscais junto com os decretos para crédito suplementar (em um cenário sem superávit primário) utilizadas pelo Executivo sem a ciência do Legislativo podem ser vistas como crime de responsabilidade.

Os cientistas políticos mais pragmáticos dirão que isso nada importa. O que importam são as negociações, as barganhas e os acordos políticos a portas fechadas. O que importa é o número final de deputados favoráveis ou contrários. A opinião da população e esta suposta disputa simbólica pouca importa. A decisão é puramente política e o PDMB e a oposição já estão fechados em sua intenção de derrubar a presidente Dilma. A questão seria apenas quais dos lados conseguirá capitanear os votos dos indecisos.

E é justamente neste ponto que a disputa simbólica importa. Independentemente da motivação dos deputados, há, evidentemente, um grande custo político para a aprovação de um impedimento da chefe do Executivo. É, evidentemente, uma ruptura, uma exceção e como tal precisa ser visto como excepcional. É difícil prever como a população, movimentos sociais, corporações sociais, mercado, atores midiáticos e afins vão reagir. Diferentemente de outras negociações políticas, há um alto custo simbólico em tal decisão, pois ela afetará diretamente a vida de todos os brasileiros.

Meu ponto é que o custo político se torna ainda mais alto se a opinião pública e se a opinião publicada (aquele presente nos media) definem o impeachment sob o enquadramento de “golpe”. Em um país que já vivenciou tantos golpes de Estado e que apresenta uma história democrática tão recente, aprovar um impeachment que está sendo visto como golpe tem um custo político muito maior. Penso, em especial, para os deputados indecisos ou que não estão “ganhando” qualquer coisa com sua aprovação. É importante lembrar que são necessários 342 votos para aceitar o processo na Câmara. Desta maneira, todos que não estiverem presentes ou se absterem de votar estarão, em alguma medida, votando contra o impeachment. Lembrando que o voto será aberto nesta seção, então é preciso assumir o custo para si.

Neste sentido, o governo ganhou nos últimos dias importantes aliados na disputa simbólica. Não apenas os clássicos movimentos sociais e estudantis, mas representantes da academia, intelectuais e representantes diversos da cultura se manifestam para dizer que “não vai ter golpe”. Posso apostar que o leitor, independentemente de sua posição sobre o impeachment, vê diariamente uma notícia ou postagem tratando de algum grupo em defesa da presidente, em defesa da democracia e contra o golpe. Circulam também vários vídeos realizados por artistas, intelectuais e celebridades que afirmam “não vai ter golpe”. Pessoas que não podemos definir de outra forma, senão como influentes na esfera pública e na formação de opinião. Aqui, já nem mais penso em figuras históricas ligadas ao PT, como Chico Buarque ou Gilberto Gil, mas em manifestações espontâneas de Wagner Moura e Leticia Sabatella (para ficar apenas em celebridades globais), além de cantores e artistas como Emicida, Chico César, Criolo, Otto, Elza Soares, Geraldo Azevedo, Yamandu Costa, Mart’nália, conforme o vídeo baixo.

O PT, por exemplo, divulgou uma lista de 760 artistas e intelectuais contra o golpe. Não é difícil encontrar, também, a manifestação de várias associações acadêmicas, que se posicionaram contra o golpe ou, no mínimo, temerosas da situação política, ligadas às Ciências Sociais, Antropologia, Ciência Política, Economia Política, Comunicação, Comunicação Política, Jornalismo, Cinema, escritores e editores de livros, entre outras. Isto para não mencionar os próprios departamentos, conselhos universitários e mesmo universidades, que estão ativamente se posicionando.

Alguns poderão argumentar que a mídia é aliada dos defensores do impeachment. Eu mesmo já defendi como a ação de determinados veículos têm sido temerária e em certos casos até golpista. Entretanto, a “mídia golpista” é muito mais complexa que o alardeado. Há um grande conjunto de interesses e conflitos existentes nas diferentes empresas jornalísticas. Mesmo se determinada empresa possa ter se posicionado a favor do impeachment, o mesmo não pode ser estendido a todos os jornalistas e funcionários presentes na mesma, que podem se expressar em seus blogs e contas de redes sociais, por exemplo. Além disso, tais empresas precisam constantemente reavaliar seus posicionamentos. Afinal, o jornalismo se assenta em princípios de objetividade e apartidarismo e, mesmo ciente de que este modelo de jornalismo independe é cada vez mais raro, isso não diminui o custo de apoiar, exclusiva ou descaradamente, um lado da discussão, afinal há o perigo de ser acusado de parcial, partidário ou, ainda pior, “golpista”. Há, por exemplo, um movimento de acadêmicos que se recusam a dar entrevistas a veículos considerados golpistas, como a Rede Globo, Veja, Folha, Estadão e Isto é. O #naovaiterentrevista é um problema para o jornalismo, uma vez que parte de sua legitimidade advém da legitimidade emprestada de intelectuais e especialistas nos assuntos diversos tratados. Além, claro, da perda de legitimidade cotidiana, quando um grande grupo de pessoas passa a considerar este ou aquele veículo como golpista, que tende a significar perda de audiência, outro insumo vital para tais empresas. Isso sem enfatizar a cobertura internacional, que está enfatizando esta face golpista do impeachment (lembrando que tanto Lula quanto Dilma discursaram recentemente para mídias internacionais, enfatizando o impeachment como golpe).

Portanto, em minha visão, o governo ganhou força nesta disputa simbólica nos últimos dias. Ao contrário do esperado, a saída do PMDB não fortaleceu o impeachment simbolicamente, mas o enfraqueceu, pois tonificou outro argumento importante para sua desconstrução: a de ser um oportunismo do PMDB. Michel Temer também sofreu fortes perdas nesta seara com a campanha do #RenunciaTemer (que chegou ao topo dos trend topics no Twitter). Afinal, se um partido abandona um governo no seu momento de maior necessidade, como pode seu vice permanecer no mesmo? Não seria um simples oportunismo para esperar a queda da presidente? Da mesma maneira, simbolicamente os aliados contra o impeachment tem bem feito em lembrar que o PMDB pode chegar pela terceira vez ao poder (depois de Sarney e Itamar) sem nunca terem elegido um único presidente, o que reforça o enquadramento de oportunistas.

“Importa pouco” – decretará o carrancudo cientista político. Possivelmente. Não serão as redes sociais ou mesmo o jornalismo aqueles que definirão a votação final. A esta altura serão os indecisos, aqueles deputados não fechados com um lado ou outro que tenderão a definir (aqui um interessante modelo que busca prever o impeachment). E para estes a pressão é ainda maior (ha, por exemplo, duas boas iniciativas que mapeiam os indecisos e ajudam a pressioná-los, o não vai ter golpe e o mapa da democracia). Todavia, em uma decisão política que somente é aceita com o voto aberto de 2/3 dos deputados, decisão esta que receberá enorme cobertura midiática e ganhará gigantesca repercussão instantânea nas redes sociais e nas ruas, “pouco” é muito.

*Rafael Sampaio é professor do Departamento de Ciência Política da UFPR e colaborou paraPragmatismo Político.

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