A TERRÍVEL ILUSÃO DA PRIMAVERA ÁRABE

Ilustração de Marlon Anjos

Entrevista com Gilbert Achcar

(Tradução Alvaro Bianchi)

[Beirute] No início da Primavera Árabe, um punhado de analistas apontaram que o que começou na Tunísia e se espalhou para o resto da região foi apenas o começo de um processo de longo prazo que necessariamente passaria por altos e baixos – irrupções revolucionárias e reveses contrarrevolucionários.

Cinco anos depois das revoltas, ativistas e analistas dizem que a história está longe de terminar, com uma série de questões complexas e difíceis em jogo. Mas apesar de todo o pessimismo que assola a região, ainda há esperança.

Gilbert Achcar, professor de Estudos do Desenvolvimento e Relações Internacionais na School of Oriental and African Studies (SOAS), da University of London, e autor de The People Want: A Radical Exploration of the Arab Uprising, ensinava seus alunos a respeito do potencial explosivo no mundo árabe muito antes da Primavera Árabe. Ele acredita que as questões centrais no coração da “explosão” eram principalmente socioeconômicas, e que o processo revolucionário deve continuar nas próximas décadas.

Al Jazeera – Em seu livro e em suas análises em geral, você não se refere ao que aconteceu em 2011 como a “primavera árabe” ou uma revolução. Por quê?

Gilbert Achcar – A maioria das pessoas têm usado o termo “revolução” para referir-se a sequência inicial de eventos, como quando se fala da “Revolução de 25 de janeiro” no Egito, como aquela que termina em 11 de fevereiro, ou mesmo nomear a “revolução” o dia que o autocrata caiu, como ao se referir à “Revolução de 14 de janeiro” em Tunis. O que venho enfatizando desde 2011 é que estávamos apenas no início de um processo revolucionário de longo prazo que vai continuar por anos e décadas. Como em todo processo histórico, haverá altos e baixos, revoluções e contrarrevoluções, revoltas e retrocessos. Minha visão dos eventos é baseada na análise de questões reais no centro deste processo revolucionário, que são questões que tenho estudado e ensinado por vários anos.

A meu ver, a explosão não era, em primeiro lugar, o resultado de uma crise política, como tem sido amplamente retratado, nem foi provocada por uma sede de liberdade política. Esta foi uma importante dimensão da revolta, certamente. No entanto, as raízes mais profundas da explosão foram socioeconômicas, na minha opinião. Durante várias décadas, o mundo árabe teve as menores taxas de crescimento económico de todas as regiões da Ásia e África e as maiores taxas de desemprego no mundo, especialmente o desemprego juvenil e feminino.

Esses foram os ingredientes cruciais da grande explosão. E eles não são problemas que podem ser resolvidos com uma nova Constituição ou uma simples mudança de presidente. Eles só podem ser resolvidos através de uma mudança radical das estruturas sociais, políticas e econômicas. Eles pedem uma verdadeira revolução social, que não pode ser meramente política.

O problema é que não havia forças organizadas que representassem um objetivo tão radical e o perseguissem com uma estratégia coerente. É por isso que era óbvio para mim que levaria um longo tempo antes que o processo fosse concluído. E não há certeza alguma de que o processo vai acabar com o tipo de mudança necessária progressiva. O que é certo é que, longe de uma tal mudança, a região vai continuar a viver mergulhada no tumulto e na violência.

Al Jazeera – Mas o que dizer do relatório divulgado pelo Banco Mundial dois meses antes da revolução egípcia, o qual tinha uma avaliação positiva das perspectivas econômicas no Egito?

Achcar – Bem, acontece que dois anos antes da revolução egípcia, em 2009, escrevi uma crítica da avaliação da economia egípcia pelas instituições financeiras internacionais, num momento em que os indicadores econômicos mostravam uma tendência positiva. Na minha crítica, eu expliquei que isso era apenas um resultado do aumento dos preços do petróleo nesse momento, que não ia durar, e que as tensões sociais no Egito foram realmente pioravam.

Dito isso, uma explosão política da magnitude da que ocorreu em 2011, deve, necessariamente, ser desencadeada por uma convergência de vários fatores. Nunca é uma questão única que produz uma grande explosão regional, como já vimos.

Se a revolta fosse limitada a um único país árabe, poder-se-ia acreditar que nenhum fator em especial foi a causa principal nesse país. Mas a agitação tomou conta de toda a região árabe, um fato que nos obriga a investigar que fatores explosivos são comuns a todos estes países. O mais importante deles é a crise socioeconômica estrutural.

Naturalmente, outros fatores estão envolvidos, tais como vários fatores políticos: por exemplo, o efeito desestabilizador da ocupação do Iraque pelos Estados Unidos, em 2003, que afetou toda a região.

Al Jazeera – Mas essas condições socioeconômicas recessivas existem há muito tempo. Por que elas desencadearam a mudança neste momento particular e não antes?

Achcar – A questão não é por que a região explodiu em 2011, mas sim por que demorou tanto tempo para explodir. Digo isto porque a situação regional foi explosiva por um longo tempo. Se colocarmos a questão de forma diferente e perguntássemos: “Por que é que começou na Tunísia, por que o Egito a seguiu, o que é peculiar a estes dois países?”, veremos que estes são os dois países árabes, nos quais a crise social encontrou sua expressão mais clara na luta.

Na Tunísia, houve uma série de revoltas locais antes daquele que se tornou o levante nacional. As revoltas anteriores permaneceram regionais, mas elas foram, entretanto, muito importantes. O levante de Sidi Bouzid em dezembro de 2010 começou também como uma questão regional: Espalhou-se em nível nacional como resultado do longo acúmulo de raiva e lutas que o precederam. A Tunísia tem o movimento operário organizado mais forte e genuíno de toda a região. Nas bases e nos intermediários, ele estava agindo como uma força de oposição que não foi controlada pelo regime do [ex-presidente tunisiano Zine El Abidine] Ben Ali.

O sindicato dos trabalhadores tunisianos desempenhou um papel fundamental na organização da extensão da revolta, e, em seguida, na derrubada o presidente. O Egito, por sua parte, tinha visto a onda mais importante de greves dos trabalhadores na sua história a partir de 2006 até 2011. Assim, nos dois países onde a agitação regional começou, um acúmulo de lutas sociais havia preparado o terreno para a insurreição, uma confirmação do fato de que o problema central é socioeconômico.

Al Jazeera – Em sua pesquisa, você enfatizar o papel desempenhado pelo movimento dos trabalhadores. Por que o movimento operário é um componente importante no processo revolucionário?

Achcar – Seria difícil chamá-lo um “movimento” no caso do Egito, porque não é organizado, por isso é melhor falar de uma luta dos trabalhadores. Essas lutas são importantes porque são a expressão mais direta do problema central, do problema socioeconômico. No Egito e na Tunísia greves e lutas sociais podiam se desenrolar, ao contrário de muitos países da região, como a Líbia ou a Síria, que eram tão repressivos que tais lutas não eram possíveis neles.

No Egito e na Tunísia, era possível um movimento social desenvolver-se, bem como um a oposição política, embora dentro de certos limites. Nestes países, quando a revolta começou pode assumir a forma de mobilizações de massas gigantescas, ao contrário dos regimes sírio e líbio que usaram a lógica da proibição estrita de qualquer luta social para lidar com protestos, tentando esmagá-los de uma maneira muito mais sangrenta do que ocorreu na Tunísia ou no Egito. Apesar disso, a derrubada dos presidentes nestes países preservou a maior parte do aparato repressivo do Estado.

Al Jazeera – O que deu errado neste caso, então? Você diria que as pessoas estavam muito ingênuas, que os revolucionários não estudaram suas próprias sociedades e não sabiam que tipo de estado combatiam?

Achcar – Bem, isso é exatamente o problema da liderança, das vanguardas políticas que são capazes de dar a orientação política a movimentos sociais. Por exemplo, pegue a chamada “Revolução de 25 de janeiro”: foi um grande momento, um grande evento histórico, mas a revolta foi dominada pelas enormes ilusões que o movimento de protesto alimentava.

Apesar de ter sido iniciado por grupos de oposição, com setores muito radicais, a maior parte desse movimento de protesto foi composta por forças políticas tradicionais, que se juntaram ao movimento, como a Irmandade Muçulmana e os salafistas. Estas forças desempenharam um papel fundamental na promoção de ilusões, particularmente a respeito do exército.

Assim, o movimento de protesto acabou solicitando que o exército removesse [ex-presidente egípcio] Hosni Mubarak. Houve uma repetição disso em uma sequência muito mais curta entre 30 de junho e 3 de julho de 2013. Em ambos os casos, vimos uma mobilização de massas gigantesca pedindo ao exército para derrubar o presidente em seu nome.

A terrível ilusão é que, enquanto o slogan principal da revolta foi “O povo quer derrubar o regime”, muito poucos entendiam que o exército é a espinha dorsal do regime, e que tem sido assim há décadas. O regime não poderia ser reduzido a Hosni e Gamal Mubarak e seus comparsas. Estes eram apenas a ponta do iceberg. A espinha dorsal do regime era justamente o exército, que foi transformado desde a época Sadat em um grande grupo de negócios e em uma força econômica que age do alto de seu papel político.

Não se pode culpar as pessoas comuns por alimentar tais ilusões e comprar a imagem que as forças armadas projetam de si mesmas, mas este é o ponto no qual faltava de liderança radical capaz de explicar às pessoas o que estava em jogo. A esperança é que a grande massa do povo possa aprender com sua própria experiência, mas não é assim tão fácil.

O povo no Egito pode chegar a entender que o exército é parte do problema e não parte da solução, mas o velho-novo regime o assusta, afirmando que a alternativa para o problema que ele representa é um problema ainda pior. Esta é a cartada ideológica final de todos os regimes árabes hoje em dia. Eles afirmam: “Somos nós ou a Síria, a Líbia, ou o Daesh [Isis]”.

Al Jazeera – Alguns argumentam que o próprio fato de que esses eram movimentos sem liderança foi uma das principais razões para o seu sucesso. Como você responderia a isso?

Achcar – Aqueles que dizem isso confundem a ausência de lideranças carismáticas com a ausência de lideranças em geral. O fato, porém, é que as redes e coalizões políticas e sociais têm conduzido a revolta em todos os lugares. O problema é que mesmo aquelas forças que considero progressivas oscilaram entre o antigo regime e a oposição religiosa fundamentalista. Em última análise, tanto o antigo regime como sua oposição religiosa foram profundamente contrários ao processo revolucionário, e as forças de esquerda e liberais progressistas passaram de uma aliança com a oposição religiosa contra o ex-antigo regime para uma aliança com o ex-antigo regime contra a oposição religiosa. Essa oscilação foi desastrosa.

A falta de visão dos movimentos progressistas existentes na região é o principal problema que precisa ser superado para que possa haver qualquer evolução progressiva do processo revolucionário. Sem isso, vamos ver mais deste processo profundamente degenerativo que estamos testemunhando agora, com regimes ditatoriais brutais por um lado e, por outro lado, a emergência de Daesh e similares – o que eu chamo o “choque de barbarismos “.

Al Jazeera – Você está chamando de progressiva a oposição liberal/secular, não-religiosa?

Achcar – Chamo de progressivos todos os que são pela igualdade social e pela democracia, sabendo que não há verdadeira democracia sem um secularismo devidamente compreendido. Não pode haver democracia sem uma separação entre religião e Estado. A religião não deve interferir com o Estado, e da mesma forma o Estado não deve se meter com religião.

A religião deve estar na esfera da liberdade individual: se uma mulher quer usar o hijab ou não, esta é a sua liberdade pessoal; ninguém deve impor-lhe isso, seja o estado ou seja até mesmo da família. Liberdade vai nos dois sentidos. Então, a questão não é religiosa contra secular, na qual o secular seria progressivo e o religioso seria o opressivo. Pode-se muito bem ser religioso e progressivo, ou secular e opressivo.

Al Jazeera – Uma das questões levantadas durante a Primavera Árabe foi precisamente esses códigos binários, como secular contra islâmico, e os revolucionários estavam atolados em tais debates polarizadores.

Achcar – Mas estes são debates completamente falsos. Por exemplo, [o presidente egípcio] Abdel Fattah el-Sisi é secular? O partido salafista Nour, que o apoia, é um partido secular? Aqueles que retratam Sisi como sendo secular estão, na verdade, buscando uma desculpa para apoiá-lo. Isso inclui muitos dos progressistas autodeclarados que tentam justificar a sua posição de apoio aos militares.

Nem Sisi, nem [o presidente sírio] Bashar al-Assad são secularistas. Sisi, como Mubarak antes dele, depende dos salafistas, enquanto na Síria Assad permitiu salafismo anos antes do levante, porque ambos acreditam que os salafistas são as forças conservadoras que podem atenuar a oposição. Isso não é secularismo de modo algum.

A questão aqui é que aqueles que são motivados por uma fobia do fundamentalismo islâmico, por qualquer razão, estão cometendo um enorme erro ao acreditar que a ditadura é o remédio ou antídoto para este movimento religioso.

Al Jazeera – Você concorda com aqueles que dizem que nem tudo foi perdido na revolução egípcia?

Achcar – Eu diria que não só que ela ainda não terminou como, na verdade, estamos ainda em seu início. Eu não sou nem otimista nem pessimista, mas o que tenho dito desde o início é que este é um processo longo, com altos e baixos. Reconhecer que é um processo histórico impede-nos de cair em uma constante mudança de humor. Os dois primeiros anos do processo revolucionário foram anos de ascensão, que foram seguidos por uma reação.

Haverá muitas outras fases, no entanto. O potencial revolucionário ainda está muito presente. Tomemos o caso do Egito: o fato de que, na última eleição, a taxa de participação no Cairo foi de 19%, segundo dados oficiais, indica que a maior parte das pessoas não aderiu ao regime. Claro, muitas pessoas caem na passividade e resignação, porque acreditam que a alternativa a este regime intragável seria ainda pior. Isso é precisamente o que o regime quer que eles acreditem: a “guerra ao terror” tornou-se o principal argumento de todos os regimes repressivos.

No entanto, as lutas dos trabalhadores estão ocorrendo no Egito, violando a lei antiprotesto que é mais repressiva do que a legislação sob Mubarak. Isso nos diz que o argumento da “guerra ao terror” só irá funcionar por um tempo, mas eventualmente, mais cedo ou mais tarde, a crise socioeconômica que levou à primeira explosão vai provocar novamente a novas explosões. Os recentes protestos na Tunísia são a melhor ilustração do que estou dizendo.

Meu único medo é que os regimes ditatoriais, com o pano de fundo da crise económica e social, alimentem a forma de terrorismo que o Daesh representa. Os jovens podem procurar qualquer tipo de força que pareça ser radicalmente contra a ordem existente.

Sabemos por vários estudos que muitos daqueles que se uniram ao Daesh não o fizeram por motivos religiosos, mas porque foram atraídos pela sua posição radical e violenta contra o velho regime, que passaram a odiar a um alto grau. O único antídoto para esse perigo é o surgimento de uma alternativa radical realmente progressiva.

Al Jazeera – O que você ensina a seus alunos sobre a Primavera Árabe hoje?

Achcar – Eu não a chamo de Primavera Árabe, mas de revolta árabe. O que eu ensino ainda é o mesmo, em parte, partindo da necessidade dos alunos compreenderem as raízes estruturais profundas e causas da turbulência regional, para que entendam sua natureza como um processo histórico e a natureza da fase que estamos testemunhando agora.

Meu próximo livro, Morbid Symptoms: Relapse in the Arab Uprising, que vai sair na primavera [o outono no hemisfério Sul], analisa o atual estágio da contrarrevolução e a reação. Haverá várias outras fases e episódios até que vejamos o surgimento de lideranças progressistas realmente capazes de governar a região em direção a uma alternativa progressista à velha ordem, como eu disse anteriormente, ou então toda a região árabe vai afundar em um colapso civilizacional. Aconteceu uma vez em sua história com o saque de Bagdá, em 1258, e pode acontecer novamente. Esta deve ser uma inspiração para ações decisivas para construir uma alternativa progressista, ao invés do desespero.

(Entrevista publicada originalmente em Al Jazeera)

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