Para Laryssa Nogueira, com esperança de que os livros de viagem me (nos) consolem pelas viagens que não fizemos
Continuo a minha famigerada — não no
sentido rosiano — lista de melhores livros de 2012. Relendo o que
escrevi na primeira parte, percebo que maltratei os exauridos leitores:
mais de 5 mil páginas sobre a Segunda Guerra, calhamaços como “Ulysses” e
os vários volumes de “A Comédia Humana”. Bem, é preciso um refrigério,
até porque dezembro, e não abril, é o mais cruel dos meses, e portanto
deve-se dar rédeas à imaginação para que se possa superá-lo incólume. O
negócio é o seguinte: o camarada se cansa do ramerrão das vistas da
planície da prosa em excesso e resolve espairecer. Apóio a estratégia,
ou, como diz um amigo, adiro ao plano. Assim, como a Companhia das
Letras publicou coletâneas de Rainer Maria Rilke, Adonis e Elizabeth
Bishop, recomendo esses poetas para quem quiser tomar novos ares nos
píncaros da poesia (ando lendo poesia goiana, daí o uso de “píncaros”),
pois não é possível viver como um Esteves sem metafísica. Àquele que não
gosta de poesia, apenas digo: precisas mudar de vida.
Há também os relatos de viagem, talvez o
tema literário mais em ascensão do momento (ao lado do sado-masô soft, é
claro, e dos livros em que filósofos são usados para ajudar os
atrapalhados leitores nas mais diversas atividades, tipo “Cozinhando com
Sêneca” ou “Aprendendo a Vender com Heidegger”). Nos países de língua
inglesa é uma tradição respeitada, pois histórias de viagem têm um apelo
imediato para nós, é certo, já que estamos sempre palmilhando vagamente
— ou planejando palmilhar — uma estrada pedregosa de Minas. Leio esses
relatos com a avidez de quem não conseguirá fazer todas as viagens que
planeja. Mas, sobretudo, leio-os porque é preciso confirmar a existência
de Isfahan — realmente existe ou esse nome apenas surge inesperado dos
entulhos acumulados das minhas leituras da adolescência? E existem
também nenúfares, samovares e caravançarais, palavras que me perseguem
dos mesmos debris de leituras absurdas e lembranças improváveis? Onde,
afinal, encontro cimitarras e seljúcidas? Cheio de dúvidas desse tipo,
constato que surgiu material de qualidade neste ano, como “Dias de Mel:
uma História de Amor, Guerra e Pratos Deliciosos”, de Annia Ciezadlo
(Paz e Terra), que, apesar do título de livro de auto-ajuda amorosa
(“auto-ajuda” agora é com ou sem hífen, Santa Maricotinha dos
Transtornados Com a Nova Ortografia?), é um retrato preciso da vida em
Bagdá e Beirute. Já a Companhia das Letras pôs no mercado “Nove Vidas:
em Busca do Sagrado na Índia Moderna”, de William Dalrymple, um dos mais
prestigiados autores de travelogue, como se diz em inglês. É um livro
de grande erudição, mas segue uma onda que me desagrada: todos agora
voltaram a viajar para o Oriente em busca de um Graal que a corrompida
civilização ocidental supostamente não mais poderia fornecer, fato que
me causa estranheza e pena: é preciso avisar a essa turma que está
procurando por Katmandu com cinquenta anos de atraso. Confesso que
hippies tardios e o Oriente, às vezes, ou quase sempre, me exasperam (“O
Oriente”, disse-o algum sábio, não sei se Kant ou Cantiflas, “é o ópio
do ocidental decadente e desocupado”). Meu cosmopolitismo de pobre
anseia por Paris, Madri, Londres e Roma, o que me fez ler com esperanças
de novas viagens “Paris Sobre Trilhos: Viajando de Trem Pela História
da França”, de Ina Caro (Leya), esposa de Robert Caro, o grande biógrafo
de Lyndon Johnson. Por fim, um livro curioso: “A Construção do Brasil
na Literatura de Viagem dos Séculos XVI, XVII e XVIII: Antologia de
Textos (1591-1808)”, de Jean Marcel Carvalho França (José Olympio e
Unesp).
Não nos esqueçamos dos livros de
história, pois não queremos repetir o passado por não conseguir
recordá-lo, não é mesmo? Tenho afeição especial por eles. Na velha casa
de minha família no Setor Sul, depois de ter assaltado a sabedoria e o
prazer nos livros que eram mantidos num cômodo nos fundos do lote
(muitos livros acumulados por meus pais, ambos leitores infatigáveis),
foi aos livros de história que voltei para as primeiras releituras.
Gostava tanto deles que até copiava trechos enormes, criando um hábito
de leitura que, não sabia à época, ira se transformar em razão de vida.
Ai de mim.
Pois foram muitos e bons os livros de
história em 2012. Logo no início do ano apareceu “As Famílias que
Construíram Roma: um Guia Histórico e Cultural”, de Anthony Majanlahti
(Seoman). Estou apenas iniciando sua leitura, mas ele já evocou
lembranças da leitura antiga de “Amor a Roma”, do grande Afonso Arinos
de Melo Franco, e dos desvãos da minha memória surgem sombras de
histórias dos Chigi, Collona, Della Rovere, Borghese e de outras
famílias romanas tradicionais, e daí me imagino com Lucrécia Bórgia
envenenando com cantarela algum Orsini conspirador — afinal, civis
Romanum sum. Leitura obrigatória, como percebem. (Para os que apreciam:
saiu em DVD a primeira temporada da série “Os Bórgias”, que tem Jeremy
Irons tentando interpretar o Papa Bórgia, Alexandre VI, mas conseguindo
ser apenas Jeremy Irons.)
Para o alto e avante. Por conta do
aniversário da quase centenária Semana de Arte Moderna, tivemos “1922: a
Semana Que Não Terminou”, de Marcos Augusto Gonçalves (Companhia das
Letras). E gostei especialmente de dois livros sobre a vida durante a
Segunda Guerra em duas cidades que me emocionam: “Paris, a Festa
Continuou: A Vida Cultural Durante a Ocupação Nazista, 1940-4”, de Alan
Riding (Companhia das Letras), e “Lisboa, 1939-1945: Guerra nas
Sombras”, de Neill Lochery (Rocco). Já Timothy Snyder, em “Terras de
Sangue” (Record), compara os regimes de terror de Stálin e Hitler — não o
li, mas voto no russo.
Para confirmar se o passado é mesmo um
país estrangeiro onde as coisas são feitas de modo diferente, também
aguardam na minha fila de leituras planejadas: “O Chapéu de Vermeer: o
Século XVII e o Começo do Mundo Globalizado”, de Timothy Brook (Record),
uma surpreendente análise da globalização a partir de quadros de
Vermeer; “A Bandeira Vermelha: uma História do Comunismo”, de David
Priestland (Leya); e “No Jardim das Feras: Intriga e Sedução na Alemanha
de Hitler”, de Erik Larson (Intrínseca), sobre o período em que o
embaixador norte-americano William Dodd serviu na Alemanha nazista
(Dodd, assim como Churchill, não se deixou enganar pelo Hitler dos
primeiros anos de governo nacional-socialista).
Há atualmente livros de história sobre
todos os temas imagináveis: cidades, doenças, emoções, amizades — longe
está o tempo em que só se historiavam guerras e reinados. Neste largo
campo, ao menos duas obras-primas apareceram em 2012, ambas pela
Companhia das Letras: “Atlântico: Grandes Batalhas Navais,
Descobrimentos Heroicos, Tempestades Colossais e um Vasto Oceano com um
Milhão de Histórias”, de Simon Winchester, e “O Imperador de Todos os
Males: Uma Biografia do Câncer”, de Siddhartha Mukherjee. Mas também
sugiro a leitura de “Reagan e Thatcher: uma Relação Difícil”, de Richard
Aldous (Record), sobre a dupla que nos livrou da ameaça comunista, e
“Mentes Apaixonadas”, de David Bodanis (Record), história do amor entre
Voltaire e Émilie du Châtelet. Em “O Diabo na Água Benta ou A Arte da
Calúnia e da Difamação de Luís a XIV a Napoleão”, publicado pela
Companhia das Letras, Robert Darnton analisa, com erudição assombrosa, o
papel da literatura difamatória em eventos históricos — no fundo, um
estudo sobre a força da palavra.
Um belo e criteriosamente pesquisado
livro saiu pela Editora 34: “Os Artistas Brasileiros na Escola de Paris:
Anos 1920”, de Marta Rossetti Batista. Porém, em relação à história da
arte, o lançamento que deve ser comemorado é o de “Arte e Humanismo em
Florença na Época de Lourenço, o Magnífico”, de André Chastel (Cosac
Naify), um tour de force sobre o Renascimento e as relações entre
filosofia e arte.
Sigo adiante, pois fazer listas é
preciso, viver não é preciso. Dedico-me seriamente à leitura de
biografias, memórias, diários e coletâneas de cartas, pois, como o degas
aqui vive atarefado com picuinhas processuais, preso eternamente numa
espécie de Ilha das Abelhas Diligentes (ao Google, desinformados
leitores), o jeito é me desoprimir vivendo vidas alheias. Uma espécie de
transubstanciação de minha vida apagada em outra, mais aventurosa e
recheada de eventos feéricos, para usar um adjetivo (de modo errado,
imagino) que há anos não ouço, já que a vida é sonho, e os sonhos,
sonhos são. Portanto, se quiserem me obsequiar, deem-me biografias, pois
leio até as dos tipos mais obscuros — este vosso criado agradece. Pois
bem: 2012 presenteou-me com o relançamento de livros que venho lendo e
estudando há anos: a Companhia das Letras adquiriu os direitos da obra
de Pedro Nava e a está publicando, tendo lançado neste ano os três
primeiros volumes de suas memórias, “Baú de Ossos”, “Balão Cativo” e
“Chão de Ferro”, com estudos de André Botelho, Davi Arigucci Jr. e Paulo
Mendes Campos que ajudam a compreender a vastidão dos temas tratados,
pois os livros são uma espécie de grande museu — um Louvre — que pede
repetidas visitas. O velho Nava é minha obsessão: fecho as páginas dos
seus livros e eles continuam sussurrando nos meus ouvidos. Uma sinfonia
mineira e carioca, alguém já disse, ou uma sinfonia brasileira, melhor
dizendo, uma vez que as memórias de Nava são as memórias de todos nós
(com eles, minhas madeleines, volto à perdida Palmeiras de Goiás de
minha infância, repleta de tias e tios safra entre-guerras). Quem não as
conhece que trate logo de as ler e se diluir nesse cante hondo
lancinante sobre a vida e a morte (Nava, ao contrário de outros
memorialistas, não minimiza o seu lado escuro, pois que o tem, assim
como vocês e eu – eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas
vezes vil).
Mas não apenas isso, já que neste campo a
colheita de 2012 foi farta. A Companhia das Letras publicou as memórias
de Salman Rushdie do período em que esteve condenado à morte pelo
aiatolá Khomeini, “Joseph Anton: Memórias” (Joseph Anton é nome sob o
qual viveu escondido). Já “Entre sem Bater: a Vida de Apparício Torelly,
o Barão de Itararé” (Casa da Palavra), Cláudio Figueiredo narra a vida
do engraçadíssimo Torelly, o nosso proto-humorista. Dois dos nossos
grandes políticos ganharam minuciosas biografias que já estavam a fazer
falta, ambas publicadas pela Companhia das Letras: “Getúlio: dos Anos de
Formação à Conquista do Poder (1882-1930)”, de Lira Neto, e “José
Bonifácio”, de Miriam Dolhnikoff. Também da Companhia é “Mahatma Gandhi e
sua Luta com a Índia”, de Joseph Lelyveld, que ainda não li, mas creio
ser a biografia que gerou certa polêmica por ter insinuado traços
homossexuais em Gandhi. O homem que melhor compreendeu os Estados Unidos
ganhou uma biografia estupenda: “Alexis de Tocqueville: o Profeta da
Democracia”, de Hugh Brogan (Record). “O Príncipe Vermelho”, do
historiador Timothy Snyder (Record), narra a vida fabulosa de Wilhelm
von Habsburgo, que nasceu arquiduque austríaco, viu o fim do Império
Austro-Húngaro, quis ser rei de uma Ucrânia ainda inexistente, passou
confuso pela Segunda Guerra e morreu sob tortura soviética. Também li
com imenso prazer “A Talentosa Highsmith”, de Joan Schenkar (Globo) —
Highsmith, autora de aclamados romances policiais, foi outra figura de
vida aventurosa.
Dois dos maiores intelectuais das
últimas décadas, ambos falecidos há pouco tempo, tiveram livros de
lembranças trazidas pela proximidade da morte publicados postumamente.
Em “O Chalé da Memória”, da Objetiva, Tony Judt, então já acamado por
causa da doença — esclerose lateral amiotrófica — que acabaria por
matá-lo, passa em revista momentos marcantes da sua vida. Já Christopher
Hitchens, em “Últimas Palavras”, da Globo, relata com dignidade ímpar
seus dias de doente terminal. Outro livro que apreciei bastante foi
“Como Viver ou Uma Biografia de Montaigne em uma Pergunta e Vinte
Tentativas de Resposta”, de Sarah Bakewell (Objetiva), que parte da
análise dos ensaios de Montaigne para também contar a vida do genial
francês, o primeiro homem moderno. E li fascinado “Sinatra: a Vida”, de
Anthony Summers (Novo Século), pelo prosaico motivo de que não quero ser
John Malkovich, quero ser Frank Sinatra.
Como escrevi, ler biografias e diários
nunca é para mim perda de tempo, daí porque compro tudo o que consigo, a
exemplo de “Diário da Berlim Ocupada, 1945-1948”, de Ruth
Andreas-Friedrich (Globo), que me fez sofrer com o povo alemão e também
me impediu de continuar sendo romano, como afirmei ali atrás — sim,
Kennedy, Ich bin ein Berliner. Uma leitura feita para comprovar que
nenhuma vida é inútil: “O Conde Ciano, Sombra de Mussolini”, de Ray
Moseley (Globo), conta a vida de Galeazzo Ciano, genro de Mussolini e
seu ministro do Exterior; Ciano era um playboy que alternava apoio a
Hitler com momentos de exasperação com os nazistas, numa espécie de
sístole e diástole de amor e ódio, e que viveu de modo um tanto errante e
fútil, redimindo-se um pouco ao final de sua vida, quando foi executado
por conspirar contra o sogro. Outra leitura, agora para provar que os
mais inteligentes não permanecem apegados às teses de esquerda: “O Filho
Radical: a Odisseia de uma Geração”, de David Horowitz (Peixoto Neto),
um radical nos incendiários anos 60 que se tornou talvez o mais odiado
ex-esquerdista dos EUA (sim, sofro de uma espécie de levofobia em
relação a doutrinas políticas). Por fim, para provar que no Brasil
sempre pegamos atrasados o bonde da cultura, “Martinho Lutero, um
Destino”, um clássico de Lucien Febvre lançado aqui pela Três Estrelas e
publicado originalmente na França no longínquo 1928.
Também estão no alto das minhas pilhas,
talvez aguardando um tempo para leitura que nunca virá: “Frida: a
Biografia”, de Hayden Herrera (Globo); “O Profeta da Inovação”, de
Thomas K. McCraw (Record), sobre Joseph Schumpeter; “Matisse: uma Vida”,
de Hilary Spurling (Cosac Naify); “Piotr Tchaikovsky: Biografia”, de
Alexander Poznansky (G. Ermakoff); “City Boy: Minha Vida em Nova York”,
de Edmund White (Benvirá); “A Esposa Secreta de Luís XIV: Madame de
Maintenon”, de Veronica Buckley (Objetiva); e “Van Gogh, a Vida”, de
Steven Naifeh e Gregory White Smith (Companhia das Letras).
Vejam só, penelopianos leitores,
estendi-me novamente além do necessário e não terminei a lista. Fica
para a próxima semana. Talvez vocês se perguntem: por que tanto
trabalho? Pois insisto porque creio com convicção sempre renovada que
vivemos, todos nós, nossas vidas cheias de som e fúria — significando
nada — eternamente à deriva e esperando um Godot que nunca chegará, mas
também acredito que, de algum modo, podemos ter a literatura como uma
forma de explicar o mundo. Se não é exatamente um consolo — ler muitas
vezes machuca —, a literatura talvez seja o mais eficaz instrumento de
um adulto para sobreviver relativamente são neste imenso cenário de
dementes que é a saga humana (e propósito das citações, também creio que
Montaigne e Shakespeare disseram tudo o que era necessário, e o pouco
que faltou foi dito por Proust, Joyce e Faulkner). Por isso não capitulo
— je ne capitule pas, caros rinocerontes (ao Google, leitores!). Ademã.
Por Marcelo Franco
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