O ciclo progressista da AL pode estar batendo no teto de
suas ferramentas, mas está longe – muito longe – de ter esgotado a sua
pertinência histórica. Para ir além, todavia, talvez necessite renovar o
instrumental com uma novafamília de políticas e contrapesos
Henrique Capriles lotou ruas de Caracas neste domingo, num gigantesco comício de encerramento da campanha de oposição a Chávez.
Como diz Lula, as elites não brincam em serviço. Na média, os
prognósticos dão a Chávez a dianteira no pleito do dia 7, mas um fato é
inegável: a reação não fala mais apenas aos trogloditas.
Capriles construiu um discurso para atrair descontentamentos
explícitos e difusos; ademais dos endinheirados, ecoa aspirações de
setores populares catapultados pelo próprio chavismo. A direita agora
adotou o idioma dos que querem mais.
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Henrique Capriles, adversário
de Hugo Chávez na eleição
do próximo dia 07 de outubro.
Foto: divulgação
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Não é exagero enxergar no ‘burguesito’ (foto ao lado), como o
denomina Chavez, um drone político sobrevoando os céus da América
Latina. Se bem sucedido – e para isso não necessariamente precisa
atingir em cheio o alvo do próximo domingo – servirá de referência a
outros da mesma cepa que cruzarão os ares; inclusive os do Brasil, em
2014, onde o fenômeno Russomano, em São Paulo, confirmou a receptividade a artefatos do gênero.
Drones, como se sabe, são aqueles aviões teleguiados que permitem
cometer atentados e fulminar adversários sem precisar desembarcar tropas
ostensivas.
O golpismo cool concentra recursos em ações pontuais de sabotagens e
outras façanhas seletivas, ancorando-se em intensa guerra psicológica
& midiática e, claro, fluxos de caixa a lideranças com potencial
‘caprílico’
É o salto no processo de seleção. Não se pode enfrentar um Chávez,
Lula, Cristina, Evo etc com a mão pesada aplicada contra Kadafi ou
Assad. Além de consagrados pelo voto, os líderes latinoamericanos
promoveram mudanças efetivas e m curvas de distribuição de renda
secularmente congeladas como o eletrocardiograma de um morto.
Chávez tirou uns 3 milhões de miséria e permitiu a outros tantos
ascenderem na escala da renda. Num país com 29 milhões de habitantes,
fez da Venezuela a sociedade menos desigual da América Latina.Quem diz é
a ONU.
No Brasil, sob Lula, a renda dos mais pobres cresceu 90%; a dos mais
ricos, 17% ( Ipea). O Brasil é hoje o país menos desigual de toda a sua
história. Néstor e Cristina Kirchner fizeram o mesmo na Argentina onde o
triturador neoliberal havia empurrado mais de 40% da população para a
pobreza.
Sem ter como negar tais feitos, o gigantesco aparato intelectual e
logístico que guia os drones ensaia uma vacina para enfraquecer essas
conquistas.
“É insustentável’, dizem os conservadores sobre a ênfase nas ações de
transferência de rendas, adotada pelos governos progressistas.
O perigo desse raciocínio é que ele envolve pedaços de verdade
apontados por uma parte da própria esquerda. Desses pedaços os Capriles
extraem sua credibilidade para desidratar a dos adversários.
A simples transferência de renda não gera dinâmicas autônomas que
possibilitem aos excluídos ocupar um espaço de inserção emancipadora
para superar padrões estreitos de consumo e bem-estar.
O pulo do gato dos drones está em omitir que as reformas requeridas
para esse salto são, ao mesmo tempo, fuziladas no berço pelos seus
atiradores de elite.
É o caso, por exemplo, da taxação adicional sobre a riqueza, seja ela
de natureza financeira ou patrimonial, assentada em latifúndios rurais e
urbanos.
Os Capriles desviam o foco quando se trata de discutir essas rupturas
históricos. E iluminam vitrines de acesso rápido ao repertório
consumista. Garantem: basta trocar o governante (como se troca o cartão de crédito) e limpar a corrupção da ‘financiadora’. Pronto:
isso feito, no idioma dos drones, a engrenagem modernizante começa a
funcionar ampliando o circuito das gôndolas no acesso ao supermercado
global.
A contrapartida dos cidadãos envolve frequentemente outra ardilosa
meia verdade: a emancipação social à frio, através da educação.
A idéia é que é possível anistiar o estoque de iniquidade patrimonial
e superpor a ele um outro relevo histórico; e que isso se faz sentado
nos bancos escolares.
Escola é crucial em qualquer etapa da vida de uma sociedade, mas o truque oculta uma contradição em termos.
Um Estado privado de recursos tributários adicionais seria incapaz de
atender às obrigações correntes e, ademais, promover um efetivo salto
educacional de qualidade nas periferias conflagradas. Isso, sem falar do
caixa necessário para implantar políticas de desenvolvimento que
assegurem a absorção dessa nova mão-de-obra tecnificada.
Nem Chávez e tampouco Lula afetaram o estoque ou o fluxo da riqueza
dos 20% mais ricos de seus respectivos países. Mesmo assim são caçados
implacavelmente.
Chávez que venceu meia dúzia de eleições e plebiscitos é repugnado
como um ditador grotesco; Lula é tratado como um meliante por Serra que o
acusa de ‘poderoso chefão’ –da quadrilha do dito ‘mensalão’.
Jesse Chacon, ex-ministro das Comunicações venezuelano, um quadro
qualificado do país, em recente entrevista ao jornal Valor, admite que o
modelo ancorado sobretudo em políticas de transferência de renda flerta
com o esgotamento.
O diagnóstico se assemelha ao dos conservadores, mas as conclusões se
bifurcam. Chacon evoca o passo seguinte da história. Chama a atenção,
por exemplo, para os efeitos políticos de programas de acesso ao consumo
que não alteram a lógica do consumismo capitalista.
Dá a entender que drones como Capriles levitam nessa corrente de ar que sopra permanente insatisfação material e psicológica.
Chávez desfruta de uma válvula de escape não reproduzível: a
Venezuela tem as maiores reservas de petróleo pesado do mundo (230 bi de
barris); o caixa da PDVSA dilata seu horizonte político apesar da ira
da elite, que antes ficava com todo o resultado da empresa. Mesmo assim,
há limites no bombeamento da estatal,cuja infraestrutura se ressente de
investimentos pesados.
Nos demais países o poço é bem mais raso. A inércia da desigualdade
não será vencida sem políticas de renda que alterem a posse do estoque
da riqueza já existente. Alterar a carga fiscal é o primeiro passo; na
América Latina ela não excede a média de 18% do PIB. No Brasil é quase o
dobro; mas cai substancialmente se contabilizados incentivos e
renúncias fiscais.
Pior que isso: aqui, como na maior parte da AL, a receita disponível
provém de uma base que acentua desigualdades em vez de corrigi-las. Na
média regional, mais de 50% da receita do Estado é baseada em impostos
indiretos, pagos de forma linear por toda população com efeito
socialmente nulo ou regressivo.
O ciclo progressista da AL pode estar batendo no teto de suas
ferramentas, mas está longe – muito longe – de ter esgotado a sua
pertinência histórica.
Para ir além, todavia, talvez necessite renovar o instrumental com
uma novafamília de políticas e contrapesos. Os drones está chegando:
independente dos resultados dia 7, Capriles antecipa o esquadrão que
aprendeu a jogar no campo do adversário.
Saul Leblon, Carta Maior
GAZETA SANTA CÂNDIDA,JORNAL QUE TEM O QUE FALAR
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