UM LIVRO DE DIREITO DIGITAL NA REFORMA DO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO


O senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG) protocolou no dia 31/1/25 o projeto de lei de reforma do Código Civil. O PL 4/25 é baseado em um anteprojeto elaborado por uma comissão de juristas a pedido do próprio senador, enquanto presidente da Casa.


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O texto havia sido entregue pela comissão em abril do último após oito meses de trabalho da comissão formada por 38 juristas, responsável por propor a revisão do Código Civil, promulgado em 2002, com sugestões de mudanças e atualizações no conjunto de regras que impactam a vida do cidadão desde antes do nascimento e produzem efeitos até depois da morte do indivíduo, passando pelo casamento, regulação de empresas e contratos, além de regras de sucessão e herança.A proposta de reforma do “Código Civil Reale” foi recebida com entusiasmo, na expectativa de atualizar conceitos fundamentais do Código, sob o argumento de atender às novas exigências dos tempos atuais, especialmente o impacto das novas tecnologias.

Miguel Reale e o Código Civil de 2002

O Código Civil de 2002, coordenado pelo professor Miguel Reale, substituiu o Código de 1916 após mais de 80 anos de vigência, refletindo sua teoria tridimensionalista e visão culturalista do direito, que busca uma compreensão integral e ética do fenômeno jurídico em situações concretas (CARVALHO, 2022). Estruturado sobre os princípios de efetividade, sociabilidade e eticidade, o Código adotou um modelo exegético que privilegia soluções para casos concretos em vez de uma abordagem puramente positivista (CARVALHO, 2022). Ants críticas iniciais quanto à sua omissão em regulamentar relações telemáticas, Reale argumentou que o Código Código, como “a constituição do homem comum”, deve tratar de normas gerais consagradas e evitar a adoção precipitada de inovações (CASTRO, 2002).

Juristas de renome, como o professor José Eduardo de Campos Faria, afirmam a necessidade de atualização do Código Civil, argumentando que as transformações tecnológicas ocorrem com velocidade crescente, enquanto os Estados nacionais costumam ser lentos na adaptação legislativa em direito privado. Faria (2023) observa que os autores do projeto do Código Civil de 2002 não previram fenômenos como os negócios eletrônicos, o comércio virtual, as moedas alternativas, a revolução biotecnológica, as novas formas de constituição da família, bem como a necessidade de regulamentação de matérias inéditas em responsabilidade jurídica.

Teria, então, chegado o momento desta revisão e consolidação do Código Civil?

Posto que foram quase mil alterações sugeridas pela comissão que redigiu o anteprojeto neste breve artigo nos propomos a analisar especificamente a proposta relativa à matéria do Direito Digital.

O ‘Admirável Mundo Novo’ e a necessidade de sua regulação

Em apenas duas décadas de vigência do Código Civil, o mundo mudou significativamente, especialmente com a interconexão global promovida pela Internet, que transformou a comunicação, os negócios e as cadeias produtivas, evidenciando o papel catalisador das tecnologias nas atividades humanas. Nesse contexto, Lúcia Santaella (2022: 13) argumenta que as tecnologias não são corpos estranhos ao humano, mas são atualmente uma extensão de sua natureza, ampliando suas contradições e paradoxos.

Na tentativa de assegurar direitos, conter ações malévolas, coibir práticas tidas como inadequadas, ou mesmo perigosas, e também de regular as relações no ambiente digital, muitas legislações foram aprovadas pelo mundo afora, incluindo no Brasil, onde sobressai o “Marco Civil da Internet” de 2014, lei pioneira e referenciada como marco normativo dos direitos dos usuários da rede, a “LGPD — Lei Geral de Proteção de Dados” de 2018, que objetiva preservar a privacidade dos indivíduos, além de inúmeras iniciativas de lege ferenda para regular a atuação das plataformas (como provedores de serviços de redes sociais), combater a propagação de mentiras na rede, e mais recentemente, para controlar o uso das técnicas de inteligência artificial, que sabidamente podem representar ameaças a direitos humanos, às relações de trabalho e mesmo a vários setores da atividade humana.

A proposta do Anteprojeto de Código Civil para a nossa vida no meio digital: em que medida se faz necessária?

A Comissão Especial propôs a criação de um novo Livro no Código Civil dedicado ao Direito Digital, abrangendo desde princípios gerais até normas específicas para o ambiente digital. Essa reforma estaria justificada pela crescente importância da tecnologia, especialmente da Internet e das mídias sociais, e pela introdução de sistemas inteligentes na vida social e econômica, que exigem respostas legais adaptadas à realidade atual do Brasil e às inovações internacionais. Contudo, o Direito Digital não é propriamente uma novidade; desde a década de 1980, o “Direito da Informática” já abordava muitos dos temas atualmente incluídos no escopo do Direito Digital (CASTRO, 2006: 16) [1].

Antes da criação de marcos legais como o Marco Civil da Internet e a Lei Geral de Proteção de Dados, questões jurídicas relacionadas ao ambiente digital já eram tratadas na jurisprudência com apoio nos códigos e normativas já existentes [2]. Embora muitos defendam que novas leis resolveriam conflitos digitais, outros, na linha do pensamento de Quintarelli e Santaella, questionam a necessidade de regulação específica, apontando que o digital é uma extensão da vida física. Apesar do clamor por legislações exclusivas, não existe vazio normativo. O desafio está na aplicação efetiva das normas já estabelecidas no ordenamento jurídico aos “novos fatos sociais”. De acordo com a lição do professor Reale (2003), os artigos de um código devem ser interpretados uns pelos outros, e a falta dessa mentalidade hermenêutica leva a certas interpretações errôneas do Código Civil.

Das normas propostas

Novas figuras no ordenamento pátrio são introduzidas pela proposta de Livro de Direito Digital, dentre as quais os neurodireitos, o patrimônio digital e a conceituação minuciosa das plataformas digitais, além de serem reafirmadas várias disposições anteriormente encontradas em outras legislações, como o Marco Civil da Internet ou a LGPD.

O relatório final da Comissão (BRASIL, 2024a: 289) sustenta a autonomia do Livro de Direito Digital, destacando a proposta de um novo regime de responsabilidade civil que amplia a compreensão de dano para além do individual e patrimonial, e estende a responsabilização do causador do dano para além da responsabilidade subjetiva. A atualização proposta visa adotar um sistema de “gestão de riscos” e “contenção de comportamentos antijurídicos” de maneira pedagógica e preventiva (BRASIL, 2024a: 292), englobando ilícitos digitais e a responsabilidade das plataformas, incluindo possíveis responsabilizações relacionadas aos riscos da IA, com uma futura regulamentação para a classificação desses riscos.


Mas tal responsabilização já não estaria coberta pela regra do parágrafo único do artigo 927 do Código Civil que positivou a Teoria do Risco Criado [3]?

Nos parece existir um esforço legislativo excessivamente detalhado e redundante nesta proposta do Livro de Direito Digital, com repetições desnecessárias de princípios já presentes na Constituição Federal de 1988, no Código Civil de 2002, e na Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/2018), sem a devida revogação das normas repetidas (BRASIL, 2024b: 432). Ives Gandra da Silva Martins Filho (1999: 17) defende que, em conformidade com a Lei Complementar nº 95/1998, deve-se evitar a proliferação de legislações extravagantes, sendo preferível inserir novos comandos legais em leis existentes sobre o mesmo tema, garantindo que cada tema tenha uma única lei disciplinadora (artigo 6º), e que as leis incorporadas sejam revogadas para atualização e homogeneização terminológica (artigo 13, § 1º e § 2º) [4].


Sabe-se, com amparo na Dogmática Jurídica e na Ciência do Direito, da influência pandectista na codificação brasileira, que buscou construir um sistema jurídico lógico e coerente, privilegiando conceitos e categorias bem definidos, inspirados no rigor científico e na racionalidade do iluminismo e do positivismo. Isso se reflete no Código Civil, cuja estrutura é organizada por livros que tratam de temas específicos, como o Direito das Coisas, Direito das Obrigações, e Direito de Família, como divisões temáticas que organizam os principais assuntos tratados pelo Código, facilitando a classificação e interpretação das normas.

No entanto, a proposta de um Livro de Direito Digital não segue essa estrutura lógica, levantando questões sobre como integrá-lo de forma coesa ao Código. Como já destacado, espera-se que o operador do direito, diante de conflitos no ambiente digital, saiba qualificar os casos em conformidade com as normas existentes, identificando no próprio ordenamento jurídico as soluções para o caso concreto que se apresenta. E apenas na ausência de modelos jurídicos adequados, a criação de normas específicas para regulamentar questões emergentes deve ser considerada (CASTRO, 2006:18).

Considerações finais

As especificidades e novos bens criados pela proposta de Livro Digital, em análise, tais como relações jurídicas de plataformas, atos notariais eletrônicos, patrimônio digital e neurodireitos, caberiam ser realocados a Títulos nos Livros correspondentes da Parte Especial do Código. Dedicar ao campo do Direito Digital um regime autônomo dentro do Código Civil, sob a forma de Livro, implica dizer que os instrumentos jurídicos em vigor não atendem às demandas impostas pelo ambiente digital, o que não nos parece ser o caso.

Eventuais incorporações ou atualizações legislativas podem e deveriam ser feitas nos textos específicos das leis já existentes, como o próprio Código Civil, em seus capítulos específicos sobre o tema, ou nas leis especiais que já tratam da matéria, como exemplificado ao longo deste artigo. Espera-se que a competente assessoria técnico-legislativa do Congresso Nacional possa intervir como guardiã da boa técnica e fazer seguir os preceitos da Lei Complementar nº 95/1998, acima referida, que dispõe sobre a elaboração, a redação, a alteração e consolidação das leis. A transposição de comportamentos do ambiente físico para o virtual não destrói os fundamentos do direito, mas simplesmente adiciona uma nova dimensão à existência humana e social. A mera produção legislativa, complexa, sintética e detalhista, historicamente tende a dificultar o real avanço na resolução dos novos temas que pretende acolher, ainda mais quando o assunto é o meio digital, que evolui muito mais rapidamente do que o tempo legislativo.


É necessário cautela para evitar que tentativas de modernizar o Código Civil de 2002 resultem em redundâncias, ou mesmo em obsolescência acelerada com os contínuos avanços tecnológicos, como a inteligência artificial generativa, a computação quântica, e as constantes inovações trazidas pelas grandes empresas de tecnologia.



Referências Bibliográficas

BRASIL. Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil – CJCODCIVIL. Relatório Final dos trabalhos da CJCODCIVIL: anteprojeto de lei para revisão e atualização da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, que institui o Código Civil. Brasília, DF: Senado Federal, 2024a. Disponível em: <https://legis.senado.leg.br/comissoes/comissao?codcol=2630> Acesso em: 10 maio 2024.

_____. Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil – CJCODCIVIL. Quadro Comparativo do anteprojeto e legislações. Brasília, DF: Senado Federal, 2024b. Disponível em: <https://legis.senado.leg.br/comissoes/comissao?codcol=2630> Acesso em: 10 maio 2024.


_____. Lei Complementar nº 95. Dispõe sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis, conforme determina o parágrafo único do art. 59 da Constituição Federal, e estabelece normas para a consolidação dos atos normativos que menciona. Brasília, DF: Presidência da República, 1998. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp95.htm>. Acesso em: 10 maio. 2024.

_____. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Brasília, DF: Presidência da República, 2018.Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13709.htm>. Acesso em: 10 maio. 2024.

_____. Lei do Marco Civil da Internet. Estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil. Brasília, DF: Presidência da República, [2014]. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12965.htm>. Acesso em: 10 maio. 2024.

CASTRO, Luiz Fernando Martins. Direito da Informática e do Ciberespaço. In: Revista de Direito das Novas Tecnologias, nº 1, p. 9-19. São Paulo: jan-jun, 2006.


_______. A informática e a Internet no Novo Código Civil. 2002. Disponível em:<htps://www.jusbrasil.com.br/noticias/a-informatica-e-a-internet-no-novo-codigo-civil/1645357?msockid=27d1f219ba2e68d80e3ae253bbfb69a8>. Acesso em: 11 nov. 2024

CARVALHO, Carlos E. V. Código Civil faz 20 anos! Obrigado por não ser nada positivo, Miguel Reale. Blog Advocacia Hamilton Oliveira, Artigos, 03 de mar. 2022. Disponível em:


FARIA, José Eduardo Campos. O Código Civil aos 20 anos. Jornal da USP, 14 de março de 2023. Disponível em: <https://jornal.usp.br/articulistas/jose-eduardo-campos-faria/o-codigo-civil-aos-20-anos/> Acesso em: 27 nov. 2024.

MARTINS FILHO, Ives Gandra. Consolidação e Redação das Leis: Lei Complementar nº 95/98 e Decreto nº2.954/99 aplicação à Lei no 9.756/98 sobre processamento de Recursos nos Tribunais In Revista Jurídica da Presidência, vol. 1, n. 1, maio 1999. Brasília: Revista Jurídica Virtual. Disponível em: <https://revistajuridica.presidencia.gov.br/index.php/saj/issue/view/11/120> Acesso em: 19 nov. 2024.


QUINTARELLI, Stefano. Instruções para um Futuro Imaterial. São Paulo: Editora Elefante, 2019.

REALE, Miguel. Visão geral do Projeto de Código Civil. Jus Navigandi, Teresina, a. 4, n. 40, mar. 2000. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/509/visao-geral-do-projeto-de-codigo-civil/2> Acesso em: 19 nov. 2024

_____. Invencionices sobre o Código Civil. Fev, 2003. Disponível em: < https://www.miguelreale.com.br/artigos/invcc.htm> Acesso em: 19 nov. 2024

SANTAELLA, Lúcia (org.). Simbioses do Humano e Tecnologias: Impasses, Dilemas, Desafios. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo/IEA-USP, 2022.

[1] No artigo acima referido, defendemos que a grande maioria das questões que hoje se observam no mundo digital podem e devem ser solucionadas com apoio nas regras gerais da Constituição Federal, no Código Civil, ou do Consumidor, sem prejuízo da adoção de leis que se mostrem necessárias em alguns caso específicos, notadamente no caso de ilícitos, em razão da reserva legal em matéria penal, seja quando o legislador reconhecer a existência de alguma lacuna legal que não possa ser adequadamente suprida pelos métodos tradicionais previstos no próprio ordenamento jurídico, cuja completude se presume, e que prevê formas de autointegração, como o artigo 4º do Decreto-Lei n. 4.657/42 – Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.


[2] Vide exemplos recentes de decisões que não foram fundamentadas com base nas legislações mais específicas do meio digital: REsp n. 1.880.344/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 9/3/2021, DJe de 11/3/2021; REsp n. 2.057.908/SC, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 2/4/2024, DJe de 10/4/2024; REsp n. 2.029.976/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 12/11/2024, DJe de 14/11/2024; REsp n. 1.836.349/SP, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 21/6/2022, DJe de 24/6/2022

[3] Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei,ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.


[4] Algumas perguntas se fazem necessárias: 1) é necessário o reconhecimento da identidade e existência no ambiente digital? O próprio uso dos meios virtuais não demarca esta existência? Como é possível assegurá-la judicialmente? ; 2) a proteção de dados e informações não é o mote da LGPD? O novo livro de Direito Digital tem como objetivo substituí-la? Incorporá-la por completo? Revogá-la?

Luiz Fernando Martins Castro

é advogado e engenheiro pela Universidade de São Paulo, mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP e doutor em Direito Privado (Direito da Informática) pela Universidade de Montpellier – França, coordenador acadêmico-adjunto da Cátedra Oscar Sala sobre Internet e Sociedade, do IEA-Instituto de Estudos Avançados da USP

Mateus Henrique Amorim Moura Rocha

é advogado, pesquisador bolsista da Cátedra Oscar Sala do Instituto de Estudos Avançados da USP, mestrando em Sociologia pela Universidade de São Paulo (Economia, Trabalho e Sociedade), com pesquisa ligada ao C4AI (Fapesp-USP-IBM), mmbro do projeto U.A.I - Understanding Artificial Intelligence (IEA-USP).

GAZETA SANTA CÂNDIDA, JORNAL QUE TEM O QUE FALAR

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