SER MULHER NO JORNALISMO DE 'SUPER-HOMENS'


Uma visão pessoal do nosso trabalho no 8 de março.

Hoje essa newsletter vem de um lugar muito particular. Aos sábados, você já deve saber, nós apresentamos o ponto de vista dos nossos editores, repórteres e colunistas sobre os fatos da semana.

Mas hoje é 8 de março, e não é sempre que tenho a oportunidade e a energia de escrever sobre isso. Bem no Dia Internacional das Mulheres.

A última vez escrevendo sobre a data no Intercept, veja só, foi com ex-colegas no longínquo ano de 2019. Sei que, em tempos de Trump 2 e desmonte de políticas de igualdade e inclusão, pode soar fora de moda voltar a esse assunto

Mas é aquilo: os problemas não resolvidos estão fadados a voltar mais fortes (e fingir que eles não existem não é muito do nosso feitio).

De 2019 para cá, muito mudou. Bolsonaro terminou seu governo, quase deu um golpe, e caminhamos para o final do terceiro governo de Lula sem os avanços que pareciam se anunciar quando ele subiu aquela rampa em janeiro de 2023.

Eu sigo aqui no Intercept, de editora sênior para editora geral e, desde o início de 2024, como editora executiva – e posso dizer, contrariando as estatísticas.

Sim, porque embora as mulheres representem mais da metade (58%) dos jornalistas no Brasil, esse número cai para 13% nos cargos de chefia, segundo o estudo ‘Mulheres e liderança na mídia: evidências de 12 mercados’, publicado em 2023 pelo Instituto Reuters. Deve ser por isso que eu só tive chefes homens em 20 anos de carreira, seja em revistas, mídias digitais e jornais.

Dos 12 países pesquisados, só não estamos pior do que Quênia e México. “A sub-representação das mulheres na liderança das redações faz com que suas vozes permaneçam silenciadas em uma indústria global ainda dominada por homens”, diz o estudo.

Chama atenção o fato de que, em geral, o Brasil já tem 40% dos cargos de liderança ocupados por mulheres – ou seja, o terreno do jornalismo parece particularmente mais pantanoso para nós.

E chegar lá não é suficiente. De maneira geral, a disparidade salarial de gênero é comum em vários países e profissões. No jornalismo brasileiro, não é diferente.

As mulheres jornalistas ganham em média 5% menos que os homens, segundo uma pesquisa encomendada pela Federação Nacional dos Jornalistas, a Fenaj. Parece pouco – mas, ao subir na carreira, a disparidade aumenta: as editoras-chefes ganham em média 41% a menos que seus pares homens.

(Não preciso nem dizer que, fazendo outros recortes de raça, classe e gênero, as disparidades aumentam ainda mais, mostram os dados.)

Há várias razões para essas desigualdades. A primeira é a necessidade que as mulheres têm de se dedicar às tarefas domésticas e de cuidado – e que, por isso, não podem passar longas horas numa redação ou precisam de alternativas mais flexíveis de trabalho, como meio período.

Nesse sentido, é fundamental destacar o trabalho da economista Claudia Goldin, ganhadora do Nobel de Economia em 2023, que olhou para a entrada das mulheres na força de trabalho em uma perspectiva histórica ao longo dos séculos 19 e 20 – e os mecanismos que perpetuam as desigualdades nesse processo.

Uma delas é chamada “penalidade da maternidade”, ou seja, o impacto negativo nos rendimentos das mulheres após terem filhos – o que não acontece com os homens (pelo contrário, pode até aumentar).

Assim, Goldin demonstrou as barreiras que impedem as mulheres de ascenderem como seus pares masculinos.

E também mostrou as possíveis soluções para isso: jornadas mais flexíveis e mecanismos de trabalho que não remunerem a produtividade por horas trabalhadas, por exemplo. Voltando para nosso tema inicial: o contrário do que o jornalismo costuma ser, o que explica muita coisa.





Em sua tese de mestrado de 2011, em que mergulhou no cotidiano de redações para entender as dinâmicas de poder e gênero, a pesquisadora Marcia Veiga cravou: o gênero do jornalismo brasileiro é masculino.

Essa é outra razão que, para mim, impede o avanço das mulheres. As convenções masculinas permeiam as estruturas organizacionais e as decisões – e, mais profundamente, o que merece ou não ser considerado pauta, ou seja, relevante para a sociedade.

Em uma conversa com Fabiana Moraes, jornalista premiada, professora da Universidade Federal de Pernambuco e nossa colunista, Veiga detalha sua visão.

“As convenções e hierarquias de gênero no jornalismo também incidem nos conhecimentos dos jornalistas, nas formas como interpretam o mundo, a realidade e os sujeitos.

Esses saberes, fundamentalmente de senso comum, permeados pelas ideologias dominantes e estruturantes da sociedade, tais como o machismo, o racismo, o classismo, eram parte dos conhecimentos predominantes dos profissionais, e como tal serviam como lentes inconscientes pelas quais a realidade e os sujeitos eram interpretados”, ela explicou. (Leia a entrevista inteira, que considero imperdível.)

No começo do ano passado, Fabi publicou outro texto sobre o tema aqui mesmo no Intercept que me tocou profundamente. A redação era “boa para caralho”, ela ouviu. É esse o adjetivo. E ele diz muito.

“Para muita gente, o jornalismo foi, ou ainda é, a profissão do super-homem: uma atividade que requer frieza, coragem, alguma arrogância, competitividade.

Estas características, que não são específicas de nenhum gênero, estão atreladas aos caras, presentes em nosso imaginário como os desbravadores por excelência do espaço público”, ela escreveu. “Frequentemente, para ser respeitada nesse ambiente muito competitivo, as mulheres e homens que não operam nessa dinâmica precisam performá-la”.

E cita uma frase de Marilene Felinto com a qual ela se identificou: “jornalismo foi o que os homens fizeram comigo, uma espécie de endurecimento”. Senti o mesmo arrepio na espinha.

Perdi as contas de quantos gritos, horas intermináveis de trabalho, desconsideração com tarefas de cuidado e necessidade de performar valores ditos masculinos foram cobrados nesses vinte anos de profissão. Resistir a eles é um trabalho duplo, e muitas vezes cansativo e dolorido.

Fabiana lembra, ainda, que as mulheres negras são as que mais sofrem assédio e recebem os menores salários do país – algo que ela viveu.

É um desafio imenso ser uma mulher liderando o jornalismo de “super-homens”.

Mas ele fica mais fácil quando há inspiração e conforto de outras, como Goldin, Marcia Veiga e Fabiana Moraes, que abriram e iluminaram esses caminhos – e nos ajudam a entender as engrenagens machistas para, a partir daí, lutar contra elas.



GAZETA SANTA CÂNDIDA, JORNAL QUE TEM O QUE FALAR

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