UMA JUÍZA FOI PUNIDA POR NOSSA CAUSA



“Ela deixou que seus valores pessoais prevalecessem sobre o interesse da criança", diz relator.

Não é todo dia que um juiz é alvo de uma investigação. Muito menos é punido. Mas isso aconteceu nesta semana – e foi por nossa causa.

Na terça-feira, 18, o Conselho Nacional de Justiça decidiu aplicar a pena de censura à juíza catarinense Joana Ribeiro Zimmer por sua atuação para impedir que uma menina de 11 anos tivesse acesso ao aborto legal. O caso, revelado em junho de 2022 pelo Intercept Brasil em parceria com o portal Catarinas, chocou o Brasil – e se tornou um marco na luta contra a gravidez infantil e a liberdade de imprensa no país.

Na época, nós mostramos como Zimmer e a promotora Mirella Dutra Alberton atuaram em uma audiência para tentar dissuadir a menina, que havia engravidado aos 10 anos, de fazer o aborto. “Você suportaria ficar mais um pouquinho?”, questionou a juíza. A menina, vítima de estupro, havia sido obrigada pela juíza a ficar em um abrigo enquanto a gestação avançava. Uma gestação naquela idade é perigosa – e quanto mais o tempo passava, maior o risco para a vida da menina.

Os vídeos da audiência foram enviados ao Intercept por uma fonte anônima e são um registro raro da conduta do judiciário nesse tipo de caso. As gravações mostram a juíza e a promotora tentando induzir a menina a segurar a gestação por mais algumas semanas para aumentar a chance de sobrevida do feto, usando termos apelativos e chamando o feto de “bebê", enquanto a vítima segue reticente e sua mãe suplica para que a menina volte para casa.

Depois que publicamos a reportagem, houve uma forte reação do público. Após semanas de dor e separação da sua mãe, a menina conseguiu voltar para casa e realizar o procedimento após um pedido do Ministério Público Federal. Investigações foram abertas no CNJ e na corregedoria do MP para avaliar a conduta da juíza, da promotora e do hospital que negou o procedimento à criança.

Mas a história não terminou ali. O caso seguiu com desdobramentos insanos – encabeçados, principalmente, pela extrema direita fundamentalista, que resolveu atacar o nosso jornalismo. Para isso, foi usado todo tipo de munição – de ataques em sites de fake news a uma CPI aberta na Assembleia Legislativa de Santa Catarina, a Alesc.

Talvez você não tenha acompanhado. Mas, daqui de dentro da redação do Intercept, foi quase um ano lidando com ataques e ameaças à liberdade de imprensa e a direitos básicos, como o aborto legal em caso de estupro, previsto há mais de 80 anos no Código Penal, e o direito ao sigilo da fonte, consagrado na Constituição.







O primeiro ataque foi quando o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, na época liderado por Damares Alves, atual senadora pelo Republicanos do DF, formalizou ao Ministério Público pedidos de investigação contra os médicos e contra nós para “apurar a responsabilidade cível e criminal do site The Intercept por veicular as imagens e o áudio do depoimento especial sigiloso”.

Depois, na Alesc, a deputada Ana Caroline Campagnolo, do PL, foi a principal responsável por não deixar a história de terror vivida pela menina terminar. A deputada, que se orgulha de ser antifeminista, abriu a CPI não para investigar a juíza e a promotora, mas “a divulgação de informações incorretas, o vazamento de dados sigilosos sobre o caso e a dúvida sobre se houve cometimento de crime”. Ou seja, o nosso jornalismo, que a deputada classificou como parte de um “lobby abortista e feminista”.

A CPI era tão absurda que várias de entidades humanitárias acionaram em nossa defesa a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a ONU, que se manifestou condenando a “intimidação de três mulheres jornalistas e defensoras de direitos humanos por cobrirem o caso de uma menina vítima de estupro, cujos direitos de saúde sexual e reprodutiva teriam sido violados”.

A CPI terminou com um relatório que sugere que uma rede, que nos incluía, teve ações deliberadas para “fomentar o crime de aborto”. Naquele caso, vale lembrar, a criança havia sido vítima de estupro de vulnerável, ou seja: o aborto está previsto na exceção da lei brasileira.

Se você pensa que acabou, está errado. A polícia de Santa Catarina seguiu muito empenhada em caçar as fontes que nos permitiram o acesso ao processo judicial – uma arbitrariedade grotesca que atropela a proteção da fonte prevista na Constituição para que o jornalismo possa expor abusos de poder como esses.

Quase um ano depois da publicação da reportagem, sem provas, a polícia catarinense indiciou duas advogadas que atuaram na defesa da menina – um pedido tão absurdo que foi arquivado poucas semanas depois.

Como você percebeu, tem sido uma longa história que se desdobrou muito depois de apertarmos o botão “publicar” – e é possível que ainda não tenha terminado.

Essa reportagem foi finalista do prêmio Gabo, o mais importante de língua portuguesa e espanhol. Mas ter chegado lá não chega perto dos impactos concretos que o nosso jornalismo provocou.

A pena imposta à Zimmer pelo CNJ é mais um deles. Na prática, a juíza catarinense será impedida de ter promoções por um ano, segundo a Lei Orgânica da Magistratura. A pena de censura é considerada uma pena intermediária – mas, ainda assim, é incomum. O número de magistrados punidos por ano, seja com penas leves ou severas, costuma ir de seis a 21.

A defesa de Zimmer alegou que a juíza queria preservar a menor. E, adivinha, atacou o nosso jornalismo – pela milésima vez. “Foi a exposição midiática que causou um problema familiar”, declarou seu advogado. Mas, para o relator do processo, conselheiro Bandeira de Mello, Zimmer se concentrou em seus valores pessoais e “deixou de lado os interesses da menor, uma menina de 10 anos, vítima de estupro”.

“O que choca em particular nessa audiência é a tentativa da magistrada de humanizar a situação de gravidez decorrente de estupro", disse o relator. Uma audiência que, se não fosse a nossa coragem, jamais teria vindo a público.

Mas essa coragem só é possível graças a milhares de leitores como você, que reconhecem o poder do jornalismo e decidiram apoiar nosso trabalho. Suas doações são o único escudo que temos para continuar de pé em meio aos constantes ataques.

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